Nasceu em Ponte de Lima por 1481. Ignoramos o nome judeu que os pais lhe deram e que ficaria escrito nos livros da sinagoga. Terá sido batizada pela Páscoa de 1497, no cumprimento da ordem do rei D. Manuel, recebendo o nome cristão de Isabel Dias. Em 11.6.1556, sendo já viúva e moradora em Braga, foi presa pela inquisição de Lisboa, acusada de ser “judia rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”.(1)
Muitos cristãos-novos de Braga ficaram assustados com a sua prisão, pois que Isabel era mesmo “rabina” que “ensinava coisas dos judeus a todos os cristãos-novos entre Douro e Minho” e que, sendo parteira, “tinha circuncidado muitas infindas crianças”.
Defendeu-se bastante bem das acusações que lhe faziam dizendo que era mulher de 75 anos, que, efetivamente andou errada na fé, mas que abjurava dos erros passados e prometia ser boa cristã. Saiu no auto-da-fé celebrado em 27.2.1557.
Como de costume, ficou no cárcere da penitência, frequentando o colégio da doutrina da fé, para ser bem instruída na doutrina cristã. Foi um alívio para a “nação” de Braga onde, a notícia do auto foi levada por Gaspar Oliveira, “que estivera presente no auto passado e levara a nova a Braga, como Isabel Dias sua sogra não culpara ninguém”. E Gaspar Lopes, falando com Gaspar de Ceia, ourives de Braga, faria um comentário bem elogioso, dizendo:
— Isabel Dias merecia muito porque, podendo falar de muitas pessoas, não falara senão naquelas que a acusaram, que eles estavam em Braga mais cagados que lavados, pelo temor que tinham da dita Isabel e João Gomes dizerem deles.(2)
Em vez de fazer penitência pelos pecados que os senhores inquisidores lhe tinham perdoado, Isabel andava pelo cárcere a doutrinar companheiros e companheiras, ensinando-lhes orações, dizendo-lhe as datas em que caíam os jejuns judaicos e avivando-lhes a fé na lei de Moisés. E nesta missão doutrinadora, Isabel tinha muitos aderentes, a fazer fé na seguinte declaração de Pero Fernandes, solicitador, que andava pelos cárceres a espreitar:
— O dito Pero Fernandes, de Braga, louvando uma Isabel Dias, que era mulher discreta e avisada e que nunca dela puderam (os inquisidores) tirar nada, por mais apertos que lhe fizessem, porque pudera ele dizer muito, porque mais era ensinar e fazer, e então começou a nomear Fulano e Fulano e (…) outros muitos até 17 pessoas, dizendo isto como que sabia ela Isabel Dias destas pessoas segundo as práticas que tinham e que lhe ouviu dizer mais que Isabel Dias tivera cá muita aderência.(3)
Naturalmente que o proselitismo de Isabel Dias deu nas vistas e os inquisidores decretaram o seu regresso à prisão. E Isabel decidiu proclamar abertamente a sua crença na lei de Moisés. Assim, no dia 12 de Março de 1558, Isabel Dias apresentou-se perante os “senhores inquisidores, deputados e bispo do Algarve”. Perguntada como se chamava, respondeu que seu nome era “Donoyro porque as judias depois que tinham filhas casadas, tinham sobrenome”. Convidada a colocar a mão sobre a Bíblia, cuja capa ostentava uma cruz, respondeu “que tirassem dali aquela cruz, se queriam que ela jurasse”. Tiraram a Bíblia e ela jurou sim, mas “por Deus todo-poderoso que fez o céu e a terra e nunca quis pôr a mão sobre o livro dos Evangelhos”. Perguntaram-lhe se sabia o Credo e ela respondeu:
— Creio em Deus Todo-Poderoso, que fez o céu e a terra – E que não podia dizer mais.(4)
Antes contou que, em vez do Credo, rezava com as companheiras o “Shemah Israel” e outras orações que ela “rezava em hebraico e as tornava em português para que elas entendessem”. Perguntou-lhe o inquisidor Jerónimo de Azambuja, a razão por que decidira revogar as confissões que tinha feito e afirmar-se judia. Respondeu:
— Porque Nosso Senhor, Rei celestial, a movera a vir desdizer as falsidades que tinha falado contra a Sua Majestade! Disse que cria no Deus de Abraão, de Isaac, Jacob, Moisés, Aarão, David, Salomão e dos santos profetas (…) Que esperava ainda que Nosso Senhor vai mandar o Messias a livrar os filhos de Israel donde estão cativos.(5)
Referiu depois muitas situações de práticas judaicas, no seu ofício de parteira que chegou a ir de Braga a Matosinhos a catequizar uma Catarina Vaz, que também estava no cárcere. Apenas um episódio muito significativo do amor à cultura e aos livros, por parte de Isabel e dos judeus, em geral. Disse que Grácia Pires, de Viana do Castelo, também companheira no cárcere, lhe falou de um livro que lhe deram “que tratava de toda a lei do Senhor” e que seu irmão Francisco Álvares, com medo que lhe apanhassem o livro e o prendessem, o lançou ao rio e que, a partir daí “só lhe vieram infortúnios”.
Escusado será dizer que Isabel Dias foi queimada no auto-da-fé celebrado em Lisboa em 15.5.1558, contando 77 anos de idade. Morreu porque quis afirmar-se “judia rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”. O seu nome bem merece ser inscrito entre os mártires do judaísmo.
Voltemos aos cárceres da inquisição de Coimbra, onde então se encontravam muitos “judeus” Trasmontanos, nossos conhecidos. Em particular 3 mulheres que, de algum modo, se relacionaram com a Bracarense Isabel Dias. Veja-se esta apresentação de uma delas, feita pela própria Donoyro:
— No tempo em que esteve nestes cárceres, antes de ir para o colégio, esteve presa com Isabel Lopes, de Torre de Moncorvo, mulher de João da Trindade; e praticando ambas, Isabel Lopes disse que dava graças a Nosso Senhor porque a pusera em companhia dela, Isabel Dias, para a alumiar, porque ela, Isabel Lopes não sabia coisa alguma destas, porquanto tivera dois maridos que não sabiam nada destas coisas, nem seu pai nem sua mãe lhe ensinaram; mas pedira a Isabel Lopes que não dissesse que a ensinara.(6)
Beatriz Lopes foi outra das suas companheiras de cárcere e aparece referida por Isabel Dias nos seguintes termos:
— E assim disse Beatriz Lopes, de Vila Flor, que era verdade o que ela declarante dizia do Messias, e que esperava por ele, ela Beatriz Lopes e que a lei do Senhor era boa e a cantava.(7)
Ignoramos também o nome que os pais lhe deram quando nasceu em Vila Flor, cerca de 1492. Seria “batizada em pé” na Páscoa de 1497, recebendo então o nome de Beatriz Lopes. Os pais, esses faleceram judeus, segundo o testemunho de Beatriz. Opinião diferente tinha a sua conterrânea e companheira de prisão, Ana Gonçalves, dizendo que seu pai “casara suas filhas fora, sendo rabi dos judeus”, em Vila Flor.(8)
Na verdade, Beatriz Lopes foi casar em Bragança, com um criado (escudeiro) do alcaide Lopo de Sousa,(9) chamado Rui Lopes.
Maria Álvares foi outra companheira de Isabel Dias nos cárceres da inquisição, e que a denunciou perante os inquisidores, na forma seguinte:
— Disse que, no colégio jejuou com Maria Álvares o Tisabeth, que tem dito no começo, não comendo senão à noite e disse que se aparecera o Senhor naquele dia, e outras coisas, de quando em quando, como era dizer que andava em penitência em aflição.(10)
Do libelo apresentado pelo promotor de justiça, retiramos a acusação relacionada com Isabel Dias:
— Além das culpas atrás, sobre que estava já riziado, acresceu à ré agora a culpa de Isabel Dias, de Braga, que diz que cantava diante dela (Maria Álvares) coisas de judia, e ele ré folgava e chorava, que é grande sinal de quem tem ainda lembrança daquelas coisas. E diz mais a testemunha que lhe dizia a ré que o Messias havia de vir e que a havia de livrar…(11)
Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 1330, de Isabel Dias.
2 - Pº 1330-L, tif 111.
3 - Idem, tif 107. Se, porventura, pode dizer-se que as celas da inquisição eram fábrica de judeus, o caso de Isabel Dias é verdadeiramente exemplar.
4 - Idem, tif 130.
5 - Idem, ttif. 134-135.
6 - Idem, tif 153. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES, Isabel Lopes a estalajadeira de Torre de Moncorvo que esperava a vinda do Messias, in: Terra Quente, de 15.2 2007; IDEM, Nós Trasmontanos, Sefarditas e Marranos, Isabel Lopes (c.1503-depois de 1585), in: Nordeste n.º 1075, de 20.6.2017.
7 - Idem, tif 141.
8 - Inq. Lisboa, pº 13299, de Beatriz Lopes, tif 96.
9 - Lopo de Sousa (1501-1564), alcaide-mor de Bragança, era filho de Pedro de Sousa, da descendência do rei D. Afonso III e de Maria Pinheira, filha de Pedro Esteves Cogomilho, ouvidor da Casa de Bragança, tido como descendente de judeus. Em 1503, Lopo de Sousa era proprietário do edifício que fora sinagoga dos judeus de Bragança, a qual vendeu naquele ano à câmara de Bragança, para servir de cadeia. Ver: ALVES, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança.
10 - Pº 1330-L, tif 146. Tisabeth será o Tishá B’Av, o 9.º dia do mês de Av, o dia de luto mais pesado e rígido entre os judeus, o culminar de um período de 3 semanas de introspeção e penitência, expiando os pecados e lamentando os 5 acontecimentos mais terríveis da história do povo judeu como foram a destruição do Templo de Jerusalém pelos Babilónios e depois pelos Romanos. É tempo de abstinência e expiação, não devendo comer-se carne ou beber vinho, vestir roupas lavadas e tomar banho. Devem também evitar-se as atividades agradáveis e promotoras de explosões de alegria. É também ocasião de ler o Livro de Job e das Lamentações, não outros, nem mesmo da Torah.
11 - Inq. Lisboa, pº 2893, de Maria Álvares, tif 155.
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