quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Bragança à Luz da História e da Fantasia

– Então somos primos?!... Ora venha de lá um abraço, seu primo dum anjo! – galhofava o Albino Nogueiro, levantando os braços.
E o João Vaz Taborda Pessanha deixou-se abraçar, correspondendo a esta expressão com um sorriso de convencido e vencido.
– O primo dá-me licen ...
– Ora essa, «inter amicos non habet geringonças»!
– José Canto de Oliveira.
– Que, segundo se me afigura, também é lisboeta – replicou o Nogueiro, assentando-lhe uma palmada no ombro.
– Pois esta terra, meus caros, é deliciosa. É um ambiente muito diferente do de Lisboa. Mas, em se familiarizando com os aspectos másculos destes montes, acostumados ao perpassar dos séculos, nas suas vagas de ódio e de sangue, sentir-se-ão bem, perante a imensidade histórica desta região. Depois... os museus, as bibliotecas...
– Museus?! Bibliotecas?!
– Sim senhor... Bibliotecas e museus à farta! Admiram-se? Fiquem sabendo que estão numa cidade milenária e de nobres tradições, numa cidade, talvez, da idade das pirâmides do Egipto. Riem-se? Mas esperem.
Aí vem o Teles, que, apesar da sua grande inclinação para a matemática, também nutre certa afeição pela História.
– Ó Teles, vem cá ensinar a estes alfacinhas que Portugal também se estende por estas serranias e montes.
– Então onde está a dúvida? – observou, sorridente, o interpelado.
– É verdade, sim, senhores. Esta região de Trás-os-Montes tem cenários históricos de grande apreço e fama. Não contemplaram ainda as faces morenas das vetustas muralhas na nossa Vila? Pois vale a pena...
– E se nós fôssemos até lá? – lembrou o Nogueiro.
– De facto, o dia está bonito e como não temos aulas...
– Pois vamos lá embora.
E os quatro rapazes, num impulso unânime e afoito, puseram-se a caminho do seu objectivo, descendo a Rua Direita. Chegados, porém, ao fundo da rua, o Nogueiro suspendeu a marcha e, sorrindo maliciosamente, disse:
– Nunca ouviram dizer que ao fundo das costas fica o Principal?
Neste momento, os dois lisboetas entreolharam-se, enquanto o Teles explicava:
– Decerto. Estas duas ruas, chamadas Costa Grande e Costa Pequena, vêm terminar neste largo chamado o Principal.
– Então ides levar os calouros ao tanque? E as pobres bestas que hão-de beber depois? Levai-as antes ao «Marcial».
Ao proferir estas palavras, o Políbio da Costa Ferreira dirigia-se para o pequeno grupo, onde se ria francamente pela sua saída, que, como sempre, fora num tom majestosamente sério.
Os cinco rapazes fitavam agora a parede da Igreja de S. Vicente, ao mesmo tempo que o Teles explicava:
– Este quadro representa uma cena histórica, passada no tempo das invasões francesas. Simboliza a figura brilhante do general Sepúlveda, lançando do cimo destas escadas o primeiro grito de revolta contra a invasão avassaladora dos bandos armados de Napoleão.
– Esta igreja parece já muito antiga... – comentou o Pessanha.
– Lá isso é. Tem... tem... afirma-se mesmo que foi aqui que se realizou o casamento clandestino de Inês de Castro com D. Pedro I.
– Não queres vir até à Vila, Políbio?
– Só vou com a condição de pagarem um copo na «Piedade».
– Lá por isso... Faz-se uma subscrição, se for preciso.
Depressa as escadinhas da Costa Pequena foram subidas e em breve se patenteava aos olhos dos cinco estudantes a entrada principal da Cidadela, ali ainda cercada de bem conservada muralha.
– Bem se vê que por aqui não entrou o «Cavalo de Tróia»! – exclamou o Pessanha.
E, assim conversando, os jovens estudantes, através do pequeno dédalo de ruas ali existentes, chegaram, finalmente, ao Largo da Porca da Vila, onde o majestoso castelo, do alto dos seus trinta e três metros, falava pela boca do Teles, como outrora as pirâmides do Egipto, pela boca de Napoleão, dos seus quarenta séculos de existência.
Segundo a versão histórica de Pinho Leal, Bragança foi fundada (ou reedificada) por Brigo, quarto rei de Espanha, no ano dois mil e noventa (2 090), ou seja, 1914 anos antes de Cristo.
– O quê?!... 3 836 anos?! – objectou o Pessanha, pondo ao serviço da Matemática as suas faculdades mentais.
E o Teles, sorrindo à estupefacção, continuou:
– Há quem afirme que estes Brigos são muito longinquos. Mas, como temos que admitir uma origem, admitamos, pois, a inserida no Portugal Antigo e Moderno.
– É estupendo! Como se pode existir tanto?! – interrompeu o Canto de Oliveira.
– Isto não é bem existir; é renascer das próprias cinzas, como a própria Fénix. Se estas pedras, enegrecidas e gastas pelos séculos, pudessem falar, que belas e que horríveis narrações nos não fariam!... A estadia, como governador desta praça, do herói das Astúrias, Pelágio, a presença dos mouros, romanos e outros povos, são a nota mais valiosa da importância histórica desta velha e nobre Vila, cujas muralhas tantas vezes foram derrubadas e outras tantas zelosamente erguidas e repovoadas.
Mas não quero maçá-los com a longuíssima história delas...
– Maçar?... Nós até ficamos muito gratos pela proveitosa lição que nos está dando, e pedimos que continue, pois o estamos escutando atentamente.
– Obrigado. Pois Bragança, após a sua inclusão na definitiva nacionalidade portuguesa, foi reedificada por D. Afonso Henriques e povoada por D. Sancho I, que lhe deu foral em 1187, bem como D. Manuel I em 1514. Em 15 de Maio de 1762, depois de aturadíssimo cerco, foi obrigada a render-se aos espanhóis; e ainda, quando ocupada pelos franceses, contra eles se revoltou, na memorável data de 12 de Junho de 1808.
O primeiro duque de Bragança foi D. Afonso, filho natural reconhecido por D. João I, e feito duque por seu irmão o príncipe regente D. Pedro. Este D. Afonso casou com D. Beatriz (ou Brites) Pereira, filha única do Santo Condestável, D. Nuno Álvares Pereira.
O primeiro Duque de Bragança o teve D. João I de Inês Fernandes Esteves, natural da Guarda. O pai desta era um judeu converso, natural de Castela, sapateiro de profissão, chamado Mem da Guarda, por alcunha «O Bardadão», que morreu e está sepultado na vila de Veiros.
Foi deste sapateiro que procederam muitas casas reais da Europa, e grande número das principais casas titulares de Portugal e a dos condes de Arandel, na Inglaterra.
– Sim senhor, lindo aspecto! Avista-se a cidade toda. E aquela torre ao lado do castelo?
– Chama-se a «Torre da Princesa», por nela ter estado cativa certa princesa à ordem de um tal D. Jaime...
Diz a lenda que, certa noite, a enclausurada se evadiu com o auxílio de um guarda-chuva, atirando-se lá do alto, sendo levada pelo vento para terras de Espanha.
Também se conta que essa dama se apaixonara por um homem do povo, recusando-se, por isso, a casar com um fidalgo que seu pai lhe escolhera. Daí, a irritabilidade do seu progenitor, o cativeiro, as mais severas ordens para lhe impedir qualquer comunicação, e, finalmente, a solidão... os sonhos e as quimeras do amor a esmaecerem na penumbra
do impossível! E sei apenas que o «Romeu», numa noite tempestuosa, a conseguiu raptar, fornecendo-lhe uma espécie de guarda-chuva com o qual ela se lhe lançou nos braços.
– E daí… a invenção do pára-quedas… – Estas últimas palavras fizeram voltar bruscamente os estudantes que, atentos à narrativa do Teles, tinham naquele momento os olhos fixos no mesmo ponto.
– Olha o Matos! Que andas a fazer por aqui?... Buscando o velho Sileno, o néctar do Baco?
– Fui ali ao quartel falar com o meu pai, e, como vos avistasse, «aprocheguei-me», na esperança de molhar a palavra, pois os camelos, quando vão em excursão pelo deserto, costumam levar mantimento líquido para 15 dias.
– Vale d’Álvaro!... Tanque de S. Vicente!
– Deus me livre. Antes quero passar sede, até chegar ao «Marcial» ou ao Simão e Teresa. Lá diz a cantiga:

Dá-me binho, dá-me binho,
Que auguas não sei buber,
A auga tem samessugas,
Tenho medo de morrer.


No dia 3 de Outubro de 1904, na freguesia de Santa Maria, nascia em Bragança José Benedito de Santa Rita Xisto. 
Expoente máximo da boémia académica de então, Santa Rita Xisto, repetiu todos os anos liceais, até à  idade de ingressar na tropa, altura em que pensou enveredar pelo "bom caminho", seguindo a magistratura, sonho que não pode concluir, devido a uma retinite pigmentar, que o levou à  cegueira.
Recolheu ao Lar do Comércio, no Porto, onde viria a falecer e onde começou a versejar e a escrever, talvez movido pela centelha de seu primo, Camilo Pessanha. 
Colaborou em várias revistas e jornais, de Norte a Sul do País -entre os quais "O Mensageiro de Bragança"- e pertenceu à tertúlia política da Quinta do Anjo - ARCÁDIA DA FONTE DO ANJO -, pela mão do seu grande amigo e médico, Dr.Cabral Adão, vilaflorense de gema, brilhante escritor e poeta: 

"Vês, no Liceu, aquelas três janelas? 

Meu exame final prestei ali, 
Que me levou às fitas amarelas 
E à  nobre profissão que eu escolhi" 

(Do "Meu Liceu, Minha Saudade") 

Santa Rita Xisto, além de "Bragança, Coimbra em Miniatura" publicou também "Expressões da alma",livro financiado pelo banqueiro Afonso de Magalhães. 

A modéstia da sua obra é inversamente proporcional ao enorme carinho que sempre nutriu pela sua terra natal, bem patente em tudo o que escreveu. 

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