quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O padre, arqueólogo historiador que legou um museu a Bragança

O Abade de Baçal é a figura-emblema deste museu que, além do previsível acervo de arqueologia e arte sacra, reserva ao visitante inesperadas pérolas de artes plásticas, de José Malhoa a Almada Negreiros.
Ainda que a entrada esteja dependente da boa vontade dos actuais proprietários, o casal Leonor e Luís Doutel — a primeira, sobrinha-neta do padre Francisco Manuel Alves (1865-1947) —, há ganhos em iniciar a visita ao Museu do Abade de Baçal (MAB) pela casa que o seu mentor habitou nesta pequena aldeia dez quilómetros a nordeste de Bragança. Aí se entenderá melhor como o abade Francisco — “uma figura muitíssimo improvável, com um pensamento muito progressista dentro de uma estrutura, a Igreja, muito conservadora”, como se lhe refere o director do museu, Amândio Felício — apostou em viver nesse lugar quase fora do mundo, e daí fazer as suas viagens, tanto à capital do distrito transmontano, como aos sítios onde recolhia as memórias arqueológicas da região. Vista de fora (e depois também por dentro), a casa mostra agora duas faces: uma, de paredes brancas e de xisto, portas e travejamentos originais, tudo criteriosamente cuidado pelo arquitecto Luís Doutel; do outro lado do muro diagonal que dividiu a propriedade para um segundo herdeiro sem descendência, é a ruína, com os telhados de lousa a cair e a vegetação a tomar conta do edifício.
“Do nosso lado, está tudo igual, o chão térreo, as traves centenárias…
Fizemos alguns melhoramentos para podermos morar aqui. Mas não deixei meter cimento, mantive o xisto, as mesmas paredes tortas.” “O que aqui estava está aqui”, sintetiza Luís Doutel, arquitecto reformado da Câmara de Bragança, lamentando o estado de abandono em que o seu vizinho, que já não pertence à família, deixou chegar a outra metade da casa.
“Já houve tentativas de avançar com projectos de turismo, mas sem sucesso”, conta o arquitecto, que verbera também a apatia da autarquia e da cidade perante este património deixado pelo Abade de Baçal.
Mas no “lado bom” da casa há algo que por si só justifica a visita e nos dá a conhecer a dimensão cosmopolita do padre Francisco: nas paredes brancas do balcão que circunda o pátio interior vemos inscritos dezenas de nomes dos amigos e visitantes do seu domicílio, assinalando as datas e mesmo o número das visitas. Ao lado de muitas figuras locais e do círculo mais próximo do abade, podemos ler nomes como os do arqueólogo Leite de Vasconcelos, do escritor João Araújo Correia, dos pintores Henrique Tavares e Alberto de Sousa e, com o maior número de visitas assinaladas, Raul M. Teixeira (1884-1955), magistrado, e José A. F. Montanha (1882-1976), banqueiro, dois vultos indissociáveis da história do museu de Bragança.
Um padre papa-léguas
Os dez quilómetros que distam de Baçal a Bragança o padre Francisco percorria-os, uma vez por semana, a pé — um hábito tão regular da sua vida, que, pouco tempo antes de morrer, aos 82 anos, contabilizou mesmo ter calcorreado… 32.211 léguas! —, para ir cuidar do “seu” museu.
E se é só em 1935, no final de uma década em que dirigiu a instituição, que o nome do Abade de Baçal é atribuído ao então Museu Regional de Obras de Arte, Peças Arqueológicas e Numismática de Bragança, a verdade é que desde 1915 ele esteve ligado a este projecto a que dedicou grande parte da sua vida, em paralelo com a publicação daquela que é a sua obra maior, Memórias Arqueológicas Históricas do Distrito de Bragança, iniciada em 1910 e levada até à sua morte.
Historicamente, o museu nasceu cinco anos após a instauração da República, resultado da compra pelo Estado, em hasta pública, do património de mobiliário e arte sacra do antigo Paço Episcopal de Bragança. Um acervo que seria associado às colecções de arqueologia que já pertenciam ao museu municipal, fundado em 1897 por Albino Lobo.
Durante uma década, entre 1915 e 1925, o museu foi ainda dirigido por Álvaro Carneiro — “uma escolha politizada e contra o sentir local”, explica o site do museu —, mas manter-se-ia fechado ao público. Abriu as portas em 1927, já sob a direcção do Abade de Baçal, ao qual sucedeu o seu amigo Raul Teixeira (1935-55), então director da Biblioteca de Bragança, e de quem o padre Francisco disse ser “a alma artística do museu”.
Ao espólio histórico da instituição, que José António Montanha, presidente do Grupo de Amigos dos Monumentos e Obras de Arte de Bragança, ajudou a fazer crescer, bem como o restauro das peças, foram sendo sucessivamente acrescentadas as descobertas arqueológicas do padre etnógrafo e vários legados e doações:  pintura de Abel Salazar; ourivesaria e mobiliário do conselheiro Sá Vargas; mobiliário e pintura de Guerra Junqueiro; a colecção de numismática do coronel Ramires, etc…
Conhecer o território
“Na generalidade dos casos, as pessoas que nos procuram desconhecem em boa medida aquilo que vão encontrar num museu como este”, explica Amândio Felício, no final de uma visita em que nos guiou pelo percurso da exposição permanente do MAB. É verdade que a arte sacra e a arqueologia são as imagens de marca do museu, por via do pefil do seu patrono, “um padre investigador que desde cedo se interessou pelas áreas cientificas, com um enfoque especial na História e na Arqueologia, mas que rapidamente se foi alargando para outras áreas”, diz o director, lembrando a sua obra monumental atrás referida e que já só podemos encontrar em alfarrabistas.
Amândio Felício, 40 anos, historiador e gestor cultural nascido em Lisboa, foi nomeado director do MAB em 2018, mas já aí trabalhava desde 2015, depois de quatro anos a coordenar o Gabinete de Extensão Cultural do Museu da Presidência da República, na capital. A sua mudança para Bragança foi determinada por razões familiares, mas facilmente encontrou ali “uma cidade de adopção”, diz. “A vinda para Bragança trouxe-me diversas coisas muitíssimo interessantes também a nível profissional.” E cita, como exemplo, a alteração dessa “imagem pré-concebida sobre aquilo que se encontra fora dos principais centros urbanos do país”. Conhecer e compreender “um território que tem um conjunto muito diverso de elementos históricos, etnográficos, geográficos, que lhe dão uma identidade muito forte” foi uma das suas descobertas, e o director do MAB dá como exemplos “os rituais de Inverno com as máscaras” e a língua mirandesa, formas de os habitantes da região criarem “vínculos de identidade muito próprios, além da relação muito especial com as terras transfronteiriças”.
Marcas que o visitante pode ver documentadas na visita tanto ao MAB como a outras instituições da cidade.
“Há aqui um corpo de pessoas a trabalhar na área da cultura com um conhecimento muito elevado do que está a fazer, um trabalho sério e dedicado”, atesta Amândio Felício, responsável por um museu situado no centro histórico da cidade, na Rua de Abílio Beça, onde encontramos também o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, o Centro de Fotografia Georges Dussaud e o Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano.
Cinco peças obrigatórias
O MAB ocupa hoje o edifício que foi a Casa da Mitra e depois paço episcopal. Após a nacionalização com a instauração da República, acolheu a GNR e as Finanças, foi biblioteca e arquivo, até finalmente ser adaptado aos serviços do museu — depois de várias campanhas de obras de remodelação, em 2006 foi-lhe acrescentado um novo corpo para funcionar como recepção e permitir a distribuição para a dezena de salas distribuídas por dois pisos.
Desafiado a sintetizar o percurso da visita em cinco peças/salas, Amândio Felício teve a preocupação de contemplar na escolha os diferentes tempos e disciplinas representados pelas três centenas de objectos que hoje  fazem a exposição permanente.
Começa pela bula papal, o pergaminho com que, em 1545, o papa Paulo III fundou a diocese de Miranda do Douro, que no século XVII se irá transferir para Bragança. “É um documento muito simbólico do que foi a evolução da região de Trás-os-Montes nos anos posteriores”, comenta.
O retrato do Abade de Baçal é também uma peça carregada de simbolismo. É uma pintura de grandes dimensões, de Henrique Tavares, que representa o criador do museu enquadrado por livros, um tinteiro e uma estela funerária de Picote, ou seja, o padre, o investigador, o escritor, o homem da cultura e da ciência.
A tal “figura improvável”, que nunca subiu na estrutura hierárquica da Igreja e parece não se ter importado com isso. “Foi sempre o pároco, ou, como ele assinava, ‘o reitor’ de Baçal”, realça Amândio Felício.
Já no piso superior, na sala dedicada ao comendador Sá Vargas, o guia chama a atenção para o contador indo-português, “uma peça vinda de Goa, muitíssimo interessante e valiosíssima pelo trabalho ao nível das madeiras e do encastramento dos marfins, assente em pés esculpidos em forma de ‘nagini’ (divindade hindu)”. Este legado inclui pintura e ourivesaria civil dos séculos XVIII-XIX.
Por entre o acervo de arte sacra, o director do MAB chama a atenção para a Arca dos Santos Óleos. Feita em pau-santo do Brasil, é uma jóia do mobiliário barroco português. Resultou de uma encomenda de frei Aleixo de Miranda, que esteve no Brasil antes de se tornar o 23.º bispo de Miranda.
O móvel guarda as três ânforas em prata que são ainda usadas na Semana Santa para a distribuição dos Santos Óleos pela diocese de Bragança.
Já no final do percurso, o visitante vai ser surpreendido, em duas salas, por uma inesperada pequena “história” da pintura portuguesa do séculos XIX-XX. Nelas, Amândio Felício enfatiza — chama-lhe mesmo “a cereja em cima do bolo” — as mais de meia centena de ilustrações que Almada Negreiros realizou para a edição das Fábulas (1936), de Joaquim Manso (1878-1956), escritor e jornalista que foi o fundador do Diário de Lisboa.
“São desenhos que têm uma delicadeza, uma modernidade na definição do traço” que testemunha bem a qualidade do trabalho que Almada realizou também nas artes gráficas. Esta colecção, única, inclui meia dúzia de desenhos positivo-negativo para impressão a duas cores, e chegou também ao museu de Bragança por via da amizade de Raul Teixeira com o poeta Luís de Montalvor, que foi o editor do livro de Joaquim Manso.
Mas antes de entrarmos nesta (última) sala, passamos por obras de Silva Porto (Cebolas é “uma das primeiras pinturas naturalistas no país”, realça o guia), Marques de Oliveira (Praia de Leça e Medas), José Malhoa (Provocando), Veloso Salgado (Primavera), Artur Loureiro, Joaquim Lopes, ao lado de um friso de pinturas do (e no) feminino, com quadros de Aurélia de Sousa (À sombra) e Sarah Aèonso (Camponesa). E há ainda uma parede integralmente dedicada à já referida doação ao museu de uma dezena de obras de Abel Salazar, amigo especial do Abade de Baçal e de Raul Teixeira.


Sérgio C. Andrade (texto)
Nelson Garrido (fotografia)

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