Preocupando-se em inutilizar definitivamente as obras defensivas, dinamitando panos das muralhas e abrindo os ângulos de alguns baluartes, os espanhóis foram capazes de alterar a substância da relação da cidade com as construções que até aí tinham sido olhadas como redutos capazes de oferecerem segurança máxima em momentos de crise aguda. Só que não demoraria muito tempo para o conceito se alterar tanto interna como externamente dado que tanto a voracidade dos acontecimentos como a inevitabilidade do seu eco evidenciava o cansaço de grande parte das soluções tradicionais e a imanência de uma outra Europa que se anunciava nas metamorfoses de um radicalismo que os teóricos da teoria do direito divino da autoridade nunca suspeitaram.
Se internamente tem significado o esmorecimento do poder do poderoso Pombal, no plano externo um fundo temor invadia a alma dos privilegiados do Antigo Regime à medida que se evidenciavam os frutos nascidos da sementeira do novo ideário. Por isso, o que se anunciava em cada Primavera da parte final da décima sétima centúria, ainda que as atmosferas regionais fossem diferenciadas, era o fim de uma época, aquela que os historiadores costumam designar como Época Moderna.
Inúteis para a guerra, que agora se processava noutros moldes, as linhas das muralhas e barreiras tendiam também a ser olhadas como sinais de um tempo de repetidas sujeições, muitas vezes cegas e absurdas, por derivarem da cepa da injustiça em que assentava a ordem social do Antigo Regime.
Em Bragança, na parte final do século XVIII a documentação conhecida deixa ver o surgimento de novos interesses acompanhados por autorizações para a apropriação dos solos até aí ocupados pelas barreiras. Com a particularidade desses chãos possibilitarem, especialmente na Rua do Tombeirinho, a edificação de novas casas.
A tendência para o casario se aproximar paulatinamente do antigo cordão defensivo, o preenchimento dos espaços vazios que continuavam a bordejar as ruas e as adaptações do tecido edificado, como o acrescentamento de mais um piso às casas dos principais eixos viários, davam resposta às necessidades demográficas de uma urbe que continuava a manter uma relação muito estreita com o mundo rural. No essencial, seria esta estrutura urbana que permaneceu quase intocável durante mais de um século, até à altura em que os agudos silvos da locomotiva - a primeira locomotiva chegou a Bragança em Outubro de 1906 - não só alvoroçou os espíritos pelas esperanças no proclamado progresso mas ainda inculcou em todos uma noção, a do tempo regular e preciso que passou a ser determinado, inexoravelmente, pelos ponteiros dos relógios.
A presença da banda de Infantaria 10 na estação ferroviária no dia da inauguração do caminho-de-ferro, mostra a importância que a tropa continuava a manter nesta cidade por razões de ordem económica e também pela continuada capacidade dos seus elementos exercitarem as suas ideias entre o espaço castrense e as poltronas da municipalidade. Uma presença na urbe quase permanente e com objectivos que obrigavam a maior atenção aos ritmos das conjunturas.
Por isso, ainda antes de ter sido assinado o diploma relativo à nacionalização das ordens religiosas, os militares cobiçavam as casas do convento de Santa Clara e das Oblatas do Menino Jesus, no Loreto. Os edifícios das duas instituições religiosas seriam a base de projectos para a edificação de um hospital militar que se desejava maior e com aptidões que escasseavam no existente, levantado no século XVII, no tempo de D. Pedro II.
Sob o ponto de vista urbano, o apaziguamento social e político de meados do século XIX traduzir-se-ia numa maior atenção sobre a rua e a praça pois há notícia da obra do calcetamento do Largo das Eiras e da Rua do Passo. Estes empreendimentos corriam em 1854 e eram acompanhados pela vontade de se iluminar a cidade com seis lampiões de azeite que seriam colocados nas Eiras de S. Bento, Rua da Amargura (junto a S. Vicente, depois Rua de S. João), proximidades das Portas da Vila, numa viela da Costa Grande, na Rua do Passo e ainda na Rua dos Ferradores. Preocupações que, alargando-se, analisavam as vantagens de «se evitarem obras desllocadas, e sem nexo, que muitas vezes tolhem, ou impecem que se fação de futuro, obras de grande utilidade». Na mesma sessão, datada de 26 de Junho de 1856, consideravam-se ainda outras medidas de gestão urbana que se projectavam nos termos de um hipotético plano urbanístico que devia consignar, a par com o alinhamento das ruas e das praças, a canalização das águas. Seria nesta linha de preocupações que, no Verão desse ano, quando se construía um novo acesso entre a Rua dos Oleiros e o Forte onde estava o quartel de Cavalaria nº 7, se manifestavam orientações urbanas efectivas, registando-se no livro das actas da Câmara como a Rua do Espírito Santo, «huma das melhores da cidade, se acha deformáda e deturpada, com a saliência da caza chamada do Corpo da Guarda velho e com o coberto» de outro edifício particular que além de «tolhe(r) a vista da mesma rua» possibilitava a acumulação de lixos.
Em 1861, alguns vereadores insistiam na urgência de algumas obras que enfatizavam ambições urbanas: definição e traçado dos arruamentos, abastecimento de água potável, edificação de um novo edifício para sede do município, levantamento de uma carta topográfica da cidade e acessibilidades para as povoações do concelho e dos concelhos limítrofes.
Mas era regra que as perspectivas dos programas municipais não fossem acompanhadas pelos recursos da tesouraria. Daí que o património da igreja que tinha sido nacionalizado fosse muito apetecido. Entretanto, na pacata cidade alguns manifestavam em voz alta as preocupações relacionadas com a higiene urbana, clamando pelas vantagens de desinfectar as ruas, largos e becos, numa altura em que a cólera e o tifo andavam à solta.
O eco de alguns temas nacionais levaram as autoridades locais a solenizarem, em 10 de Junho de 1880, a alteração do nome do largo contíguo à Praça da Sé, o Largo das Eiras do Colégio, para Praça Camões. Dois anos depois, comemorava-se o centenário do Marquês e, em Maio, a antiga Rua do Terreiro passava a ser designada pelo nome de Marquês de Pombal. A ambiciosa pugna – não de todos - pela linha férrea não distraía a Câmara de lançar mão da cerca e convento das freiras de Santa Clara, espaço para o qual a cidade projectou realizações tão diferentes como uma praça-mercado e uma nova catedral. Atractivo era também o património edificado do convento de freiras de S. Bento, onde o município tentou instalar a sua sede a par com a acomodação de outras repartições públicas e equipamentos como uma estação telegráfica. Em Maio de 1859 o claustro do convento de Santa Escolástica seria desmontado e as suas colunas desbaratadas em outras aplicações.
As várias ocorrências com importância nacional e internacional provocaram o fervilhar das ideologias e a agitação do ambiente político finissecular transitaria para o século XX. Mas localmente o tema do caminho-de-ferro continuava com grande actualidade. Nos primeiros dias do ano de 1905, o engenheiro construtor da linha, Costa Serrão, incentivava a continuação dos trabalhos, promovendo terraplanagens, que foram empreitadas por João Lopes da Cruz, no espaço que se designava Largo de Santo António e Toural. Então, um ermo onde seria edificada a Estação, cujo prospecto seria, como escrevia um plumitivo local, «d‘huma perfeita belleza architectonica». Em simultâneo, apontava-se a necessidade de se rasgar a Avenida, uma nova via capaz de dar «vasante ao movimento que se há de estabelecer entre a estação e Bragança e para que é evidentemente insufficiente a estreita Rua do Conde Ferreira». Embora localizada a escassas centenas de metros da principal praça da cidade, a Praça da Sé, a estação ferroviária era sentida como um corpo relativamente estranho, talvez porque o sítio da sua implantação estava «fora de portas». Parecendo notório o peso da antiga atmosfera urbana, a verdade é que a Avenida foi sendo ladeada, mais de um lado do que do outro, por casario que respondia a um novo surto urbano a que o Estado Novo acabaria por se associar com o programa de uma nova praça, a que não faltava a famosa calçada portuguesa e um decorativo fontenário, monumentalizada com edifícios de risco estudado que davam pública mostra de alguns dos valores assinalados pelo regime em vigor.
Luís Alexandre Rodrigues – BRAGANÇA NA ÉPOCA MODERNA. MILITARES E ECLESIÁSTICOS. A RUA, A PRAÇA, A CASA.
Actas do Seminário Centros Históricos: Passado e Presente, pp. 70 a 96
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