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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

NOVENTA ANOS DE RESIGNAÇÃO DE UMA TRANSMONTANA

Telhado - 1983 - Georges Dussaud
O Verão estendeu-se, parece que as castanhas podem sair fulecras, nas vinhas foram muitos os cachos secos, as pavias não encheram os ares com o aroma do desejo, nem pão nem palha, nem vacas da cor do ouro, nem novelos de lã alvos a cirandar animam o Outono menino.

Aos noventa anos, uma mulher deste nordeste, de preto vestida, como as suas avós, cabelo branco ordenado pela trança, resiste a desligar-se da sua casinha na aldeia onde nasceu, da cortinha farta de batatas, couves-galegas, pêras de inverno, tomates aos molhos, salsa e salva que lhe reinaram na cozinha, onde não faltaram galinhas de carne firme e houve noites épicas de caldeiros carregadinhos de alheiras a fumegar ou a acolher dezenas de salpicões e chouriços, prontos a pingar das varas sobre a pedra do lar, enquanto brasas quentes refilavam à geada que tornava brancas as telhas vãs.

Resiste, apesar de sentir que lhe vai faltando a força, os médicos não perdem a oportunidade de lhe recomendar cuidados, chazinhos e pés quentes.

Quando o sol desce, de olhos perdidos no horizonte da solidão, depois da novela da tarde até à da noite, se alguém quiser ouvir há-de falar da vida áspera desde a infância, dos tombos pelos montes, chuva e frio a moer os ossos, da cama de palha, das sacas a servir de cobertor, dos socos duros a soar nos lajedos.

Lembra-se de ouvir, há pouco, que nalgumas aldeias já não vive quase ninguém, mesmo de uma onde resta um único homem, de mais de oitenta anos. Lamenta-lhe a sorte, pior que a sua, que também já só se cruza com velhos, cada vez menos, mas não aceita que se abandone alguém assim. O Estado não devia permitir, pobre dos pobres, coitado.

Ao aproximar-se da meia idade seguiu o destino de muitos outros e procurou vida pela estranja, com o homem de sempre, desde crianças. Ele já cá não está. Agora acomoda-se às dificuldades da prole que criaram para lhe fazer companhia cada um de todos os dias.

Na aldeia ainda passa, durante o tempo de aulas, uma carreira duas vezes por dia, que transporta os últimos garotos para as escolas, concentradas na sede de concelho. Mas, para ir ao médico, à farmácia, ao banco ou ao correio não vale a pena passar o dia inteiro na vila. Já está preparada para pagar trinta euros a um táxi. Ainda não percebeu bem que na capital e noutras cidades grandes, os mesmos trinta euros vão pagar um mês inteiro de transportes a toda hora, à vontade do freguês.

Não pôde aprender a ler e já lhe vai fugindo o ouvido. Pouco importa, já não espera grandes novidades no futuro que lhe resta. O que ainda lhe põe um brilhozinho nos olhos são os netos e bisnetos, alguns já vão longe na vida profissional e estudantil. O tempo estará para eles. Infelizmente vêm pouco e à pressa, porque as cidades são exigentes e não lhos dispensam como gostaria.

Por vezes deixa perceber uma resignação atribulada com o destino, que poderia ter sido menos doloroso e mais empolgante. Havemos de reconhecer que não lhe falta razão porque os anos que já viveu não lhe permitiram sentir-se cidadã de corpo inteiro de um país proclamado da liberdade, da justiça, da igualdade e do desenvolvimento para todos.


Teófilo Vaz
in:jornalnordeste.com

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