Foto: Ana Marques Maia |
Hoje acordei, senti a interioridade e li o jornal. Do alto no meu quinto andar, vi a paisagem outonal aquecer com tons amenos o nevoeiro que, levemente, pousava nas ameias do castelo, fazendo com que o café fumegante me parecesse ainda mais agradável. Do meu café para o jornal: os jovens não querem ir para o interior. Iniciei o meu sentimento da interioridade. Do qual não sofro, estejam descansados. Porque essa doença que dá nas vidas dos que para lá estão, bem para lá do Marão, que os consome em penosas preocupações grupais com as quais fazem sessões legislativas para nos salvar da nossa interioridade, não chega a tocar nos corações firmes dos que para cá estão. Que sabem esses homens de Lisboa do que por aqui sentimos, questionava António Reis no seu filme Trás-os-Montes. Quem se posiciona com calma para sentir sabe que o interior é o lugar ideal para aquecer ideias, emoções e pensamentos. Sabe que o interior tem silêncios, tem pureza, tem um traço genuíno que se vê nos olhos emoldurados por rugas e por alguns lenços pretos. Sabe que o interior se sente num aperto de mão capaz de selar compromissos para a vida, herança da firmeza das rochas dos montes, habituadas à aspereza das geadas.
Não sofrem de interioridade. Sofrem da ideia que a maioria tem da interioridade. Nesse seguimento, a ideia de isolamento tem germinado e enraizado socialmente, talvez numa herança da necessidade de defesa contra sucessivos invasores e da dureza da necessidade de emigração que avós e pais carregaram consigo, quando a pobreza de um país enclausurado nos fazia virar mais para o mar do que para nós mesmos. Ao longo dos anos, o litoral foi-se tornando mais apetecível do que os montes, fazendo com que poucos quisessem manter-se, como se mantêm as agulhas dos pinheiros. Foi-se evolutivamente privilegiando e acarinhando o anonimato, fomo-nos habituando a viver mais facilmente num sítio onde a máscara possa cair, fomo-nos habituando a sentir, como sendo liberdade, uma experimentação constante do que pensamos ser. Livrámo-nos das raízes porque é mais fácil assim. E está tudo bem, para quem está bem assim.
No entanto, às vezes parece ser mais fácil culpar quem legisla o mal de interioridade, sem que queiramos nós próprios reparar que guardamos uma ideia de inferioridade relativamente ao interior. Nessa ideia, só germinam ervas daninhas, poucas giestas, que não permitem limpar os olhos e sentir que somos todos da pólis e que, acima de tudo, somos todos potenciais responsáveis por nos "desinteriorizarmos". A cultura é produto de quem a faz, o hype é produto de quem o alimenta, os amigos são produto de quem os nutre e os empregos podem ser produto de quem ouse pensar fora do habitual. Sofre-se muito, por aí, do mal do idêntico, do instagramável, do cool onde todos os que estão à nossa frente são visões distorcidas do que queremos ver de nós, fruto desta ideia pós-moderna de individualidade, onde o ser parece não precisar do outro para ser visto. Falta a negatividade do silêncio, a ausência na sobre-presença virtual, falta o ar puro e quem não lhe tenha medo. Falta-nos a interioridade, essa que alimenta quem por cá se vincula e que passa a ter o privilégio de saber que o tempo não é um inimigo velocista e que a perenidade também é favorável ao homem.
Faltam pessoas no interior, faltam. Faltam investimentos, faltam médicos, falta cultura. Falta. Seria bom que externalizássemos menos as nossas faltas e olhássemos mais para o que podemos fazer em nome próprio. Se assim o desejarmos. Ou quisermos. Ou estivermos disponíveis para lutar. Faz parte de quem tem boa saúde mental, esta capacidade de nos actualizarmos.
Sorvo o último travo deste café e continuo a saber amar Lisboa desde esta interioridade que é tão nossa.
Joana Raposo Gomes
Médica Interna de formação específica em Psiquiatria. Transmontana de gema.
Jornal Público
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