Para mim, o limite geográfico de Trás-os-Montes sempre foi a passagem de um rio. Pouco depois de passar Amarante, lá estava o rio “Canhona”, como anunciava o meu pai. Claro que não existe nenhum curso de água com este nome. Existe, sim, o rio Ovelha, que nasce na imponente Serra do Marão (esta a marcar a autoridade transmontana com o célebre adágio “Para lá do Marão, mandam os que lá estão”) e se estende por pouco mais de 20 quilómetros até se lançar no Tâmega, já em território marcoense.
Qual, então, a relação entre os dois termos? Por que motivo se deturpava (e se deturpa!) propositadamente e em jeito de brincadeira o nome ao pequeno rio? Porque, muito simplesmente, para os transmontanos uma canhona é uma ovelha (há quem acrescente que é uma ovelha velha), num dialeto de ternura (Maria Leal, não me processes), mas, ao mesmo tempo, gerador de cumplicidade, pois, para entender a “private joke”, há que pertencer ao Reino Maravilhoso que Torga imortalizou.
O que muitos desconhecerão é que este é um vocábulo pertencente à língua mirandesa, que, obviamente, mesmo sem ser por muitos anos considerada como língua e, em diversas alturas, falada por muito poucos, sempre influenciou o léxico dos transmontanos. Mais no distrito de Bragança, como é natural, pela proximidade, mas também em Vila Real e mesmo nas Beiras e nos concelhos raianos do Minho e do Douro Litoral (para referirmos apenas território luso). E assim palavras deliciosas como Canhona ou Carranha entraram no vocabulário de todo um povo.
Ovelha
Falar dos regionalismos transmontanos sem uma (enorme) referência ao mirandês é, obviamente, um erro, pois, de forma direta ou adulterada, muitas são as palavras e expressões que sofrem essa influência.
Um dos termos identificativos de um transmontano é, claro, canhona. As gerações com mais de 50 anos saberão quase de certeza o que é e será, seguramente, familiar aos mais jovens. Claro está que se trata do empréstimo da língua do nordeste para designar uma ovelha (daí, por brincadeira, os transmontanos digam, quando saem de Amarante e entram no Marão, que estão a cruzar o rio Canhona – rio Ovelha).
A palavra vai buscar a sua génese ao vocábulo “canha”, que aponta para “cabelo branco” ou cãs, ou seja para a brancura que, por norma, define as ovelhas com a sua lã.
Macacos do nariz
O transmontano nunca tem macacos no nariz. Para ele, lugar de macaco é na selva ou no jardim zoológico. Nunca no nariz, porque aí o que por vezes habita são as carranhas, que é o que acontece quando a monca solidifica e mais ou menos discretamente se mostra ao público pelo orifício nasal.
A explicação desta curiosa e nojenta palavra poderá estar também na zoologia, embora longe dos símios. Tem mais a ver com os suínos, pois carranha é a carne calosa que existe no céu-da-boca dos porcos. A associação faz-se, obviamente, pela ideia da falta de higiene do animal e pela localização aproximada no corpo. Mas podemos ainda trazer à baila a língua mirandesa para tentar explicar o mistério deste termo. É que, nesta língua, carranha, além de ser um adjetivo sinónimo de malandro ou falso, também caracteriza algo de pouco valor, como pouco (ou nenhum) valor têm os macacos do nariz!
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