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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Camilo Castelo Branco: "A Morgada de Romariz"

Vi esta morgada, há três anos, em Braga, no Teatro de S. Geraldo. Estava em  cena  Santo  Antônio,  o taumaturgo.  A comoção era  geral.  Tanto  a  morgada  como  o seu marido,  o comendador  Francisco José  Alvarães,  choravam,  às  vezes; e, outras vezes, riam-se.

Era  uma  senhora  de  espavento,  avermelhada,  com as frescuras  untuosas e  joviais  dos  quarenta anos  sadios,  seios altos e atlantes,  pulsos  roliços  e  averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis.  

Riu-se a  morgada  quando aquele Santo  Antônio  do século  XIII  recitou  às  raparigas uma poesia madrigalesca de Brás Martins —bom homem que esteve  quase a regenerar o teatro nacional como ele deve ser. A poesia rezava assim  nesta prosa inocente:

Mimosa nasce a flor e vive ainda,   

Se arrancada não foi logo ao nascer; 

Assim a virgem nasce e vive pura, 

Se o vício não trabalha pra perder 

Et etecetera, com a mesma unção e música.

A morgada  sorrira-se  para  o marido;  e ele,  para  lhe  provar  que também  percebera  o chiste,  formou um  tubo  com os  beiços carregados  de chalaças  mudas e disse com aticismo velhaco:

— Versalhada..   

Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com inteligência na prosa da oratória,  assim que algum personagem pegava de rimar, ria-se. Persuadira-se de que a  missão dos  versos  era  como a  das cócegas.  A natureza  dera-lhe ao espírito  aquele feitio.

Remirei-a de esconso por sobre a espádua do esposo.  

Ela bocejava nos entreatos, até mostrar as campainhas; ele tosquenejava, e às  vezes, espreguiçando-se, grunhia:

— Estou maçado.  

— Pudera. . — obtemperava a esposa —, a comedia bonita e... mas não há  nada como estar a gente na sua cama, Zezinha!  

E dava tons lúbricos ao diminutivo.  

— Quem me lá dera... — respondia Alvarães, deslocando as botas e dando  folga e  frescor aos pés no aprazível túnel  dos canos.  —  O  polimento  estorcega-me os calos..   —  queixava-se  com azedume.  —  Comédias..   Ora  adeus! Patranhas... 

— Modos de vida, homem...

E abriam juntos as bocas espasmódicas.

— Ao menos se eu viesse ceado...  — dizia ele.

— Fizesses como eu...

— Não me cabia cá... — E batia com os dedos dobrados no alto ventre  como se faz às melancias suspeitas.

— Já agora, hemos de ver acenada glória, que é o mais bonito... — opinava  a esposa.

Neste comenos, visitou-os um o meu conhecido de Famalicão. Ao erguer do  pano, saiu de lá e entrou no meu camarote. Foi ele quem me disse o nome das  duas pessoas, acrescentando:

— Ali, onde a vê, tem romance; dá matéria para dois temos...  

— Picarescos?  Não me  servem...  Eu quero  filosofia:  os meus leitores  querem filosofia, percebe o senhor?

— É o que ela tem mais que dar.  

— Ora essa!... O senhor sabe que ela tem isso? Queira apresentar-me...  

— Deus me defenda..  Eu disse à morgada que você era romancista. .  

— E ela que disse?

— Riu-se.  

— Riu-se?! É boa!... E o marido...  

— O marido disse: «Arreda!»   

***

Vejamos a filosofia que eles têm.

Melhor  que uma  estirada  narrativa, desfigurada talvez pela imaginação  do  informador,  li  um  processo que o  sujeito  me emprestou.  Correra  o pleito  entre panes que  litigavam em matéria  de casamento.  Figurava  uma donzela  depositada  judicialmente.  O  pai da  nubente impugna  e alega que o  pretendente a sua filha é um birbante de vilíssima relé. O noivo, contrariando,  expõe  que  o pai  da  sua futura  é de origem tão  canalha  que,  apesar de ser  fidalgo  da  casa  real, é  filho  de  um  salteador de  estradas,  como é público e  notório. dizia o noivo; e acrescentava «que não havia ainda vinte anos que o seu contendor exercitara  ofício  de fogueteiro  em Vila  Nova  de Famalicão».  Neste  conflito,  a  depositada  trancara  o pleito vergonhoso  aceitando outro  marido que o pai lhe inculcou.

A menina questionada  era  aquela  morgada  de Romariz e o marido o  comendador Alvarães.

Quanto  a  filosofia, este acontecimento  pareceu-me assaz chocho;  eu pelo  menos não fita encontrei, por mais que virasse do carnaz os personagens do  processo.  Louvei»  procedimento da  jovem  injuriada  na pessoa  do seu  progenitor; mas o fermento da tal filosofia não me dava para levedar massa de  cinquenta  páginas.  Abri  mão do assunto  e  larguei-o às  imaginações  florentíssimas  da  minha  pátria. Porém,  transcorridos dois anos,  num livro  impresso por 1815, li uns nomes que tinha visto nos autos escandalosos.  

Examinei de novo o processo e trasladei certas passagens que, alinhavadas a  outras do referido livro, deram esta novela, em que, por felicidade do leitor e a minha, não há filosofia nenhuma, que eu saiba.

***

Quando Vila Nova de Famalicão era um burgo de cem vizinhos com um juiz  pedâneo,  saiu dali  para  a  corte,  em 1744,  um  rapaz de quinze  anos, que  começara com o seu pai o ofício de pedreiro. Assinava-se Antônio da Costa  Araújo,  escrevia  limpamente  e  era  esperto.  Chamara-o  a  Lisboa  um  tio,  mercador de panos, estabelecido na Rua dos Escudeiros, que até ao terramoto  de 1755 ocupava parte do terreno hoje compreendido na Rua Augusta. Matias  da  Costa  Araújo,  irmão do pedreiro,  engraçou tanto com o  sobrinho  que,  apesar dos poucos meios, mandou-o às aulas dos Jesuítas no Pátio de Santo  Antão,  a  fim  de habilitar  para  o clérigo,  contra  a  propensão mercantil do  rapaz.

Matias tinha sido infeliz no comércio e dizia que era mau modo de vida aquele  em que a prosperidade se desavinha da honra.

No 1?  de Novembro  de 1755,  o constrangido destino  do  estudante  transtornou-lho a catástrofe em que o seu tio pereceu debaixo da abóbada da  Igreja  de  S.  Julião,  onde  assistia  às  missas  dos fiéis defuntos.  Os  seus  medianos  haveres  armazenados devorou-lhos  todos  o incêndio.  Ficou  portanto em desamparo grande o estudante, e tratou de amanhar a sua vida,  deixando arder sem saudade a  gramática  latina  do padre Álvares  com  os cartapácios correlativos.

Nicolau Jorge,  mercador  abastado,  vizinho  e amigo  do defunto Matias,  condoído do sobrinho, chamou-o, ouviu-o discorrer a respeito da espécie de  mercadoria  em que  mais seguro negócio deveria  tentar-se  na  crise  do  terremoto  e,  aplaudindo-o, emprestou-lhe  duzentas  moedas  de ouro.  Leiloavam-se então,  nas ruas  e praças,  fazendas avariadas  por  água e fogo.  Antônio da Costa Araújo arrematou por preço ínfimo fardos equivalentes ao  seu avultado capital,  pagando-os no mesmo ato  com grande  espanto do  desembargador  Torciles,  presidente  das  arrematações.  Estabeleceu-se Costa  Araújo no Campo de Sant'Ana e ganhou, no primeiro ano, com estas fazendas  avariadas, doze mil cruzados. Volvidos seis anos, era um dos mercadores mais  opulentos da  cone; morava  no primeiro  quarteirão da  Rua  Augusta,  à  esquerda,  indo do Rossio,  e era  geralmente  conhecido pela  alcunha de Joia. Tinha camarote efetivo na ópera, banqueteava personagens de alta condição,  recebia  nos seus  armazéns  a  mais luzida  sociedade de  Lisboa  com fidalga  cortesia:  chamava  «joias» às damas,  e daí lhe pegou a  ele a  alcunha  desmaliciosa.  Confluía  ao seu balcão a  flor  da  cidade,  porque  ninguém  o  excedia  na fina escolha dos atavios,  no primor do  gosto e em probidade de  contratos. «Ali vinham», diz o coronel Francisco de Figueiredo, «comprar-se  os  enxovais  para  os grandes  casamentos,  o vestuário para  todas as grandes  funções,  de  que  houve muitas,  entrando  neste número  os casamentos  dos  nossos soberanos,  nascimentos de príncipes,  os dias de  anos de  toda  a  real  família e os três dias das funções da inauguração da estátua equestre do Sr. Rei  D. José,  o 1º,  de tão gloriosa  memória.»  Costa  Araújo não compelia  os  devedores a pagarem-lhe judicialmente; que o infortúnio dos que não podiam  gozar a honra e o prazer da pontualidade fazia-lhe dó.

Quis  o marquês de Pombal nobilitá-lo  como fizera  a  outros  comerciantes,  mais para  abater a  fidalguia  histórica  do  que para  levantar a  burguesia  industriosa.  O  Joia  nunca  pediu nem aceitou distinções.  Foi toda a  vida  mercador, sempre ao balcão, ou encostado à ombreira da porta, como hoje o  não fazia um caixeiro com a cabeça cheia de socialismo e óleo de amêndoas  doces.

À volta  dos  sessenta  anos,  Antônio da  Costa  Araújo enfermou de paralisia.  Era solteiro. Chamou para a sua companhia um irmão que tinha na terra natal,  pedreiro como o seu pai e que nunca deixara de trabalhar, posto que o irmão  rico lhe desse boa mesada, sem todavia lhe aconselhar ofício menos grosseiro,  por entender que são muitos os pedreiros felizes e pouquíssimos os grandes  do mundo que a inveja dos pequenos não perturbe.

O paralítico fez testamento, em que repartiu o seu capital por diversos amigos,  e deixou ao seu irmão Bento da Costa três mil peças de 7$500 réis.

Falecido o Joia,  apareceu em Famalicão Bento pedreiro,  envergando um  tabardo velho de briche, que exibia com visagens consternadas, dizendo que  não herdara  outra  coisa  do irmão,  o qual tudo  gastara  e morrera  pobre.  O  pedreiro,  supondo que o  acreditavam, era  boçal à  proporção de avarento;  faltava-lhe a  velhaca  finura que hoje  em dia  ilustra  os  Minhotos.  Verdade é  que não havia ainda gazetas que assoalhassem as verbas testamentárias; mas a  notícia  da  herança  de Bento  chegara  a  Famalicão primeiro  do que ele.  Cinquenta  e seis mil cruzados e tanto!  Quem poderia  herdar secretamente  riqueza  tamanha num tempo  em que bazofiava  por Lisboa um  argentário a  quem  chamavam  o Trezentos Mil  Cruzados porque ele,  vindo do Brasil,  manifestara aquela colossal e quase fabulosa quantia! Cem contos de réis, hoje  em dia,  é quase  uma  vergonha  possuí-los; a  quem não fingir que tem essa  soma  quadruplicada  é um  homem  que,  se souber governar-se  com muito  prumo,  poderá  talvez dispensar-se  de ser  recolhido  para  um  asilo de  mendicidade.

O  pedreiro  era  viúvo,  vivia  só  e tinha um filho soldado de artilharia  do  regimento  do  Porto,  aquartelado  em  Valença.  Quando a  notícia  chegou ao  quartel, o rapaz, insano de alegria, desertou, confiado na herança. Entupiram-no,  porém,  o espanto e a  consternação  quando encontrou o pai à  orla  da  estrada  a  brocar uma  penedia  por conta de um  lavrador.  Recobrado do  assombro, perguntou-lhe se não herdara três mil peças de ouro.

O  velho  pôs  os olhos  espavoridos  no  céu, abanou a  cabeça como os  personagens da Ilíada, desfechou contra o filho um esgar desabrido e bradou:  

— Três  mil peças?!  Três mil diabos que te levem a  ti e mais a  quem  levantou essa aleivosia! O que eu herdei foi um reguingote de saragoça já no  fio. Se o queres, vai buscá-lo, que ele lá está pendurado num gancho..  Com  que então, Joaquim, vinhas ao cheiro das peças?

— Vinha pedir-lhe, Sr. Pai — respondeu o rapaz com tristeza e respeito — , que me livre de soldado, porque já não posso com o serviço. Estou doente e  preciso de mudar de vida.

— Trabalha, faz como eu, que também não posso, e estou aqui a furar este  calhau.

Quiseste ser soldado.., lá te avém.  

— Sr. Pai, olhe que eu saí da praça sem licença... sou desertor...  

— Não me digas isso segunda vez, que te rejeito esta broca à cabeça!  

— Faz-me vossemecê uma esmola  —  replicou serenamente Joaquim  —. que eu antes  quero a  morte que as chibatadas..   Sabe que mais,  Sr.  Pai?  —  prosseguiu  o desertor  limpando o suor e as lágrimas  —,  ou vossemecê  me  livra, ou eu vou juntar-me à quadrilha que anda na Terra Negra.  

— Capaz disso és tu, alma do diabo! Sai-me da vista dos olhos, que eu já te  não enxergo, ladrão!

E, arrojando a broca e o maço de ferro pelo respaldo do penedo, sentou-se  com os cotovelos fincados nas pernas e pensou alguns segundos com a cara  tapada pelas mãos esfoliadas e negras de terra.

O  filha  esperava,  indeciso  entre  o ódio e a  compaixão.  Pensava  que o pai  herdara as três mil peças e o deixava optar entre a chibata e a malta de ladrões,  Joaquim sentia-se tremer de raiva; se, porém, a herança era uma invenção, o ar  aflito do velho sujo, roto e quebrado de trabalho compungia-o.  

Nesta vacilação, ergueu o pedreiro o rosto menos descomposto e disse: 

— Vai para casa, que eu vou daqui falar com o teu padrinho... Aí tens a  chave; procura as peças, e leva-as, que eu dou-tas..   

Esta zombeteira liberalidade incutiu logo em Francisco dúvidas da herança.  

Entrou em casa  e examinou toda  aquela  antiga  e conhecida  pobreza.  Na  lareira, entre cinzas, a panela de barro desbeiçada e duas tigelas na trempe; o  escabelo corroído de caruncho e a espaços espumado de gorduras lustrosas; o  catre  de bancos e a  enxerga  rota  e arrepiada  de palhiço; a  candeia  de ferro  enganchada  na  parede;  por baixo,  pingada  de sal,  uma  banca  de pau-santo  com pés torneados, mas com as roscas esborcinadas e gavetas de pinho em  bruto com puxadores de corda. Sobre a miséria dos trastes, o lixo, a sordícia  que o filho do pedreiro  nunca assim vira,  porque  a sua  mãe  ainda vivia,  quando ele assentou praça. Aos pés da cama havia uma rima de cascabulho,  grabatos de lenha, ferramentas quebradas, rodilhas e cacos. numa forquilha de  quatro esgalhos pregada na trave mestra pendia, coberto da fuligem da lareira,  o albornoz poido que o irmão do Joia dizia ter herdado.  

O  desertor  sentou-se  na arca de pinho, contemplou aquela  indigência e  pensou consigo:

«Acho que me mentiram... O meu pai não herdou nada. . Dantes ainda nesta  casa  havia  uns lençóis lavados e pão à  farta,  quando recebíamos todos os  meses a moeda que o tio tios dava. . E agora que há de ser de mim?... Estou  perdido!.. » Neste comenos, assomou ao limiar da porta um vizinho, que vira  entrar o soldado.

— Estás por aqui, Joaquim Faísca?! — perguntou o Luís Meirinho.  

Convém saber  que o  filho de Bento ganhara  alcunha de Faísca  desde que  mostrou, aos dezoito anos, extraordinária destreza em ferir lume no fósforo  dos ossos dos  adversários.  O outro chamava-se o Meirinho, porque o  tinha  sido do corregedor de Barcelos, e na opinião pública passara de quadrilheiro  da  justiça  a  capitão da  quadrilha  que  infestava  a  Terra Negra.  Continuava  o  ofício, diziam alguns, ganhando na carreira três postos de acesso.  

— Vieste com licença? — perguntou o Luís Meirinho.  

— Não, senhor. Pedia-a, e não ma deram — respondeu Joaquim, com o  propósito de se acolher ao valimento do vizinho, se o pai lhe não acudisse. —  Eu estou doente do peito e não posso com esta vida de soldado. Ouvi lá dizer  que  o meu pai estava  muito rico  com a  herança  do meu  tio.  Desertei,  pensando  que ele me  livraria  com dinheiro;  mas  agora  mesmo  o topei no  Vinhal a quebrar pedra e ele me disse que herdara um albornoz velho que ali  está.

— E tu acreditaste? — atalhou o outro velhacamente.  

— À vista da miséria em que eu encontro esta casa...

— Pois fica  sabendo  que o teu pai herdou três  mil peças.  Sabes  quanto  fazem três mil  peças?...  Cinquenta e seis  mil  e tantos  cruzados.  Sabe toda  a  gente da  vila  que o teu pai  está  riquíssimo.  Posso.  mostrar-te a  cópia  do  testamento. O teu pai é um miserável, é a vergonha dos homens! Mata-se à  fome,  come duas tigelas de caldo por  dia e diz mal do  irmão  porque lhe  deixou um albornoz coçado,. quanto toda a gente sabe que o deixou rico.

— E o dinheiro? — acudiu Joaquim circunvagando os olhos pelos cantos  da casa e lareira.

— Dizem uns que o deixara em Lisboa a render e outros querem que ele o  tenha enterrado aí nesse chiqueiro; mas a minha opinião é que o teu pai, se   trouxe o dinheiro, não o tem em casa. Meteu-o debaixo de alguma fraga aí da  serra por onde ele anda sempre a quebrar pedra.

— E que hei de eu fazer, se. ele me não livrar? — perguntou Joaquim.

— Eu sei lá, rapaz! Se o teu livramento depende do dinheiro do teu pai,  não quisera eu estar-te na pele! Levas as chibatadas da lei tão certo como eu  quisera  valer-te e não  posso.  Conheço-te desde rapazito,  e nunca  me há de  esquecer que vai agora em dez anos, na romaria das Cruzes de Barcelos, me  acudiste num aperto e quebraste três cabeças, enquanto eu quebrei duas. Olha,  Faísca, se te vires em apuros, procura-me; livrar-te de desertor, isso não posso  eu; mas das chibatadas e da farda eu te livrarei.

— Como?

— Isso são contos  largos. .  Aí vem teu pai  ao  fundo  da  rua.  Vou-me  embora, que não posso encarar aquele sórdido avarento! Se eu soubesse que  ele tinha o dinheiro no bucho, tirava-lho pelas goelas e dava-to, rapaz!

***

O pedreiro ainda vira o vizinho a safar-se da sua testada.  

— Que fazia aqui o Luís Meirinho? — perguntou ele carranqueando.  

— Nada; conversávamos. .

— Eu cá à minha porta não quero conversas com ladrões, ouviste?

— Ladrões!... O Luís não me consta..  que...

— Passa tu na Terra Negra com dinheiro de modo que ele to bispe, e lá  verás quem  é o  Meirinho.  Há  de  haver três anos que deixou o ofício,  que  rendia  pouco;  e,  desde que  não tem ofício,  comprou casa,  tem cavalgadura,  trata-se à  regalona, come carne  do  açougue  e bebe do da companhia.  E eu,  que trabalho há  bons  quarenta anos,  custa-me a  amanhar para  uns  feijões  e  bebo água da fonte.

— O Sr. Pai assim o quer..  — atalhou Joaquim entre receoso e risonho.  

— Perca o amor às peças...  

— E tu a dar-lhe!. . — respondeu iracundo o pedreiro. — Já te disse que as  procures!. .

Não  herdei  nada!,  não herdei nada!  —  E berrava  convulsionado  freneticamente, sacudindo os braços.

— Não grite assim, que não faz mingua barregar! — atalhou o filho. — A gente está conversando..  às boas... Hem?

No aspeto  do Faísca  ressumbravam sentimentos  pouco filiais.  A ironia  franzia-lhe  os cantos  dos beiços,  ao mesmo tempo  que a  ira  lhe avincava  a  testa. No ar com que se sentara na arca, dobrando o corpo e bamboando as  pernas em gingações de tarimba, denotava quebra de respeito e disposição a  questionar faceiramente com o velho.

— Com que então..   —  prosseguiu  Joaquim.  —  Vossemecê não herdou três mil peças?

— Não! — bradou o pai. — Não!, com mil diabos (Deus me perdoe), não!  

— E se  eu lhe  mostrar a  cópia  do testamento..   —  respondeu  Joaquim esbugalhando os olhos, abrindo a boca e pondo fora a língua em todo o seu  comprimento. — Que me diz vossemecê, Sr. Pai?, se eu lhe mostrasse a cópia  do...

— Tu acho que vieste cá  para  dar cabo  de mim!  —  interrompeu Bento,  desentalando-se  da sua  aflição por  aquela  estúpida  réplica.  —  Amaldiçoado  sejas tu!..  — E, com os dentes cerrados e as mãos na cabeça, ia e vinha da  lareira  para  a  porta,  considerando-se o mais  desgraçado  homem que Deus  criara.

— Sr.  Pai!  —  continuou  mansamente  o filho  —,  isto não vai a  matar.  Tome fôlego e  escute  o seu Joaquim. Lembre-se  que não tem outro  filho a  quem deixar os seus cinquenta e seis mil cruzados...

— Olha o diabo! — regougava o velho.  

— O que eu lhe peço pouco monta. Livre-me de soldado e dê-me alguma  coisa para eu casar com a Rosa de S. Martinho. O pai dela decerto ma dá, se  eu levar mil cruzados. Vou ser lavrador, terei saúde e alegria, e nunca mais lhe  peço nada, Sr. Pai.

Joaquim, desde que proferira o nome de Rosa de S. Martinho, mudara de tom  e gestos. Os olhos imploravam e a voz tinha as modulações do respeito. O seu amor  de  dez  anos,  golpeado  de saudades, quebrara-lhe  os  pulsos.  Se  o  pai  naquele instante abrisse no rosto uma ténue claridade de esperança, Joaquim  acabaria a súplica de joelhos.

— Mil cruzados! — resmoneava o pedreiro. — Onde queres tu que eu os  vá roubar?

Esta interrogação varreu do rosto do Faísca os sinais da boa reação.  

— Eu não quero que os vá roubar, valha-me Deus! — respondeu Joaquim.  

—  Mas,  a  falar verdade,  quem tem três mil peças  do seu também pode  ser ladrão da felicidade de um filho que ainda lhe não custou seis vinténs desde  que pode trabalhar..  Olhe, Sr. Pai, repare bem no que vou dizer-lhe. . Eu para  a praça não torno. Sou desertor.  

— Venho de casa do teu padrinho — acudiu o pai menos torvo —; o Sr.  Coronel Lobo da Igreja dá-te uma carta para o comandante, e diz que tudo se  há de arranjar.

— Não torno para o quartel, já lhe disse. Estou doente, preciso mudar de  vida.

— Que te leve a breca... Não quero saber de contos. Lá te avém. Dinheiro  não tenho; sé se queres que eu venda a casa e me vá depois pedir um eido nos  palheiros dos lavradores à beira dos cães.

— Está bom — concluiu Joaquim erguendo-se e espreguiçando-se —, vou  ouvir  a  opinião  do Luís Meirinho, que,  de  um  modo  ou  doutro,  prometeu  livrar-me da farda e da chibata. .

— Vais falar com o Meirinho para isso, ó alma perdida?  

— Pois então!  Aquele  é  amigo  do seu amigo e se  me for necessário  dinheiro.. 

— Ensina-te a roubá-lo...  

— E ele que sabe onde o há. . — respondeu Joaquim bocejando e fazendo  três sinais da cruz na boca escancarada.

— Eu te deito  a minha  maldição  —  bradou  o velho  com solenidade  bastante para a cena final de um ato, porém insuficiente para abalar o 32 da 7ª  companhia do regimento de artilharia do Porto.

O Faísca sorriu e murmurou:  

— Vossemecê  parece que tem  mais  maldições  que pintos..   Pois cá  vou  com a sua maldição e depois... veremos se ela nos empece a ambos.  


Bento,  ao pular-lhe  o  coração em saltos  de ruim presságio,  ainda  deu três  passos para chamar o filho e avençar-se com ele mediante quantia necessária  ao livramento; mas a imagem de um pote de ferro cheio de peças bateu-lhe  rija no peito.

Quedou-se como empedrado a olhar para a soleira da janela de peitoril, cujas  portadas quatro travessas de castanho esfumado imobilizavam.

***

Poucos  dias depois,  o juiz-de-fora  de Barcelos  incumbia  ao ordinário do  julgado  de Vermoim  a  prisão do desertor Joaquim da  Costa  Araújo,  de  alcunha o Faísca. A gente mais grada de Famalicão, convencida da riqueza do  avarento sem entranhas,  advogou a  favor do infeliz rapaz,  rodeando o  pedreiro com rogos e até com insultos e ameaças. O pedreiro, assustado, foi  ter-se com  o seu compadre,  o coronel  Lobo da  Igreja  Velha;  e,  bem  aconselhado  pelo fidalgo,  cujo  credor era,  deu o dinheiro  necessário para  abafar o processo militar, comprar a baixa e substituir a praça no regimento.  

Em seguida, quando se viu esbulhado das economias que amealhara antes de  herdar as três mil peças, entrou-se de tamanha paixão, espicaçaram-no tantas  saudades do seu dinheiro, que morreria abafado se não desafogasse no ódio  ao filho.  As vinte  e  quatro moedas de ouro  que lhe custara  a  liberdade de Joaquim representavam fomes e  sedes,  desconfortos de frio em noites  de  Inverno, muitos suores em dias de Estio nó trabalho da serra a horas de sesta.  E lembrava-se com bastante remorso que a sua mulher padecera sem cirurgião  e morrera  sem botica  e fora  indigentemente  enterrada,  tudo isto  assim  desgraçado e infame,  porque ele não quisera  bolir naquelas vinte  e quatro  moedas.

No entanto,  Joaquim,  bem que muito grato ao  pai,  não  se  mostrou  tão  penhorado  que  prescindisse  de julgar  obrigado a  dar-lhe  modo de vida.  O  velho mostrou-lhe um ferro de monte, um pico, um camartelo, e disse-lhe:

— Se queres modo de vida,  segue  o meu.  Anda  daí brocar uma  fraga,  e  saberás quanto me custaram a ganhar as minhas vinte e quatro..  — E, ficando  entalado, esfregava os olhos debruados de roxo com o encodeado canhão da  jaqueta.

O  filho não se  compadecia  daquelas lágrimas;  antes se sentia  bravejar de  condição com remoques e até com ódio à avareza do pai. Mau foi convencer-se Joaquim da herança e supor que o velho podia morrer sem testamento nem  declaração do esconderijo do tesouro.

Debalde lhe espiava os movimentos, os olhares, as caminhadas no monte, a  fim de farejar a lota das mil peças. Bento de Araújo ia frequentemente quebrar  esteios de pedra nos penhascais de Vermoim e vendia-os aos lavradores para  especar parreiras. As desconfianças do filho seguiam o velho entre fraguedos, chamados o Castelo;  e o pai,  que  se julgou espreitado, alegrava-se  secretamente e não se mostrava ofendido.

Entretanto, continuara Joaquim a sua velha afeição a Rosa de S. Martinho; e,  confiando que a fama da riqueza do pedreiro seria bastante a que o abastado  lavrador,  esperançado  na  herança,  lhe cedesse a  filha, pediu-a  afoitamente;  mas o pai da Rosa tinha mediana confiança em sapatos de defunto e disse que  só daria a sua filha se o noivo trouxesse mil cruzados em dinheiro ou terras. O  novo  namorado abriu de novo  o seu peito ao pai,  que parecia  apertar os  cordões da  bolsa  à  medida  que o coração do rapaz se  abria.  Joaquim,  bem  aconselhado  pelo  seu amor,  socorreu-se  do padrinho, o coronel da  Igreja  Velha, pedindo-lhe que movesse o velho a dotá-lo.

Era  o fidalgo a  única pessoa  que exercia  influência  em Bento  de Araújo, e  tamanha que pudera arrancar-lhe alguns mil cruzados a juros, sob juramento  de não dizer a alguém que lhos devia. Mandou-o chamar e aconselhou-o a que  desse dote a Joaquim. Avultou-lhe as funestas consequências da sua teimosia  em querer passar por  pobre quando toda a  gente  estava  convencida  do  contrário; pintou-lhe  os  perigos  em  que  ele punha o filho sem  ofício  que o  salvasse da camaradagem de vadios suspeitos com que patuscava nas tabernas  da  Lagoncinha e outros  lugares  infamados.  Afinal,  como o  velho insistisse  desaforadamente  em  dizer que não tinha  senão o dinheiro  que  o seu  compadre lhe devia, o coronel rendeu-o com esta honrada deliberação:  

— Pois bem:  tudo se  arranja, querendo  Deus e  tu.  Devo-te três mil  cruzados; não tos posso pagar, enquanto algum dos meus filhos não trouxer esposa com dote; mas irei tirar quatrocentos mil-réis a juro nalguma confraria,  e esse dinheiro vais tu dá-lo ao teu filho para casar com a rapariga, que é de  boa gente, e há de ter dobrado ou mais do que ele tem.  

As últimas palavras de Bento,  nesta  pendência,  definem cabalmente  a sua  natureza. Quando o compadre lhe disse:  

— Tu virás de hoje a  oito dias receber os  quatrocentos  mil-réis para  os  dares  ao teu  Joaquim no ato  da  escritura  do  casamento  —Bento acudiu  impetuosamente:

— Eu não quero ver o meu dinheiro! Arranje a vossa Senhoria cá isso de  modo que eu não veja o meu dinheiro!. ..

Ele sabia que, no ato da contagem dos mil cruzados, seria capaz de agarrar a  saca e fugir com ela do escritório do tabelião.

Assim mesmo,  o pedreiro,  se  tinha  muitas maldades de avarento,  possuía  também algumas belas qualidades de pai; e uma, digna de bastante memória, é  que,  tendo ele em  casa  arsênico  para  matar os  ratos,  não o administrou ao  filho.

***

Joaquim de Araújo entrara  na  vida  por má porta.  Oito  anos  de caserna  bastariam a  degenerar-lhe as boas  qualidades:  mas,  com certeza,  o Faísca  já  tinha ganho esta alcunha à custa de turbulências, quanto assentou praça, e não  se regenerara, como é de supor, no ofício de soldado.

A sua nova posição de lavrador não lhe quadrava: a pesada rabiça do arado  dava-lhe engulhos no estômago, quando a sacudia do rego aberto para romper  outro;  o cabo  da  enxada  empolava-lhe as mãos;  de sáfaras  não  sabia nada;  ignorava todo o tráfego da lavoura; e, em vez de aprender, como queriam a  mulher e o sogro, ia bandarrear por feiras, quatro vezes por semana, na sua  égua rabona, de pau de choupa debaixo da perna, mão direita à cinta, chapéu  braguês na nuca e besta travada que não havia outra daquela andadura.  

As impertinências do sogro respondia que não precisava de labutar sujamente  na terra, porque o seu pai tinha o melhor de cinquenta mil cruzados em peças;  e aos  queixumes da  mulher amante e ciosa  voltava  as costas enfastiado.  O  lavrador de S. Martinho, a  fim de se  desfazer  do genro,  repartiu a  casa  por  três  filhos,  ressalvou uma  pequena  reserva,  deu em terras o dote  estipulado a  Rosa  e  mandou-os viver onde quisessem.

A libertinagem do Faísca foi até onde os dois mil e tantos cruzados da mulher  chegaram;  e naquele  tempo,  quem  os desbaratasse em  seis  anos  alcançava  reputação dos  que  no nossos dias derivam à  miséria  sobre ondas de ouro. Antes de conhecer as primeiras necessidades, Rosa morreu na flor da idade,  deixando um  filho de seis  anos  entregue  ao  avô,  porque  o marido  havia  muitos meses  que demorava  pela Galiza,  amaltado com jogadores de  esquineta, os seus antigos camaradas, uns com baixa, outros desertores.  

O  filho de Rosa  breve tempo  viveu da  caridade do avô,  que  faleceu pouco  depois.

Quando Joaquim de Araújo voltou a S. Martinho por saber que estava viúvo,  encontrou  o menino  de sete anos  esfarrapado,  sem amparo  de parentes, a  esmolar  o  pão  e o agasalho  dos vizinhos, porque  o seu pai  não tinha casa  própria  e todo o património  da  sua  mãe  estava  vendido.  Quem  recolhera o  rapazinho era um fogueteiro, o mais remoto e desprezado parente da sua mãe.  

O pequeno ajudava-o a afeiçoar as canas e encher os canudos para os foguetes  com bastante jeito e disposição para o ofício. Perguntara-lhe o pai porque não  fora procurar o avô a Famalicão. O fogueteiro respondeu que lá fora com ele quando a  mãe morreu, mas que o avô  dissera  que  estava  também muito  pobre, e apenas lhe dera estopa para umas calças e um chapéu de Braga mais  rapado que a escudela de um cão. Lembrou-se Joaquim do padrinho; mas a  morte cortara-lhe esse recurso. Foi ter-se com o filho sucessor na casa, a ver  se  quereria  protege-lo  como  o seu pai.  O  fidalgo  da  Igreja recebeu-o com  furiosas declamações contra o Bento pedreiro, a quem chamava ladrão porque  lhe pedia dois mil cruzados e juros que o pai lhe ficara devendo.

Neste tempo, o irmão do honrado Joia já não podia trabalhar. Passava os dias  sentado ao sol no degrau da porta e dava alguns chorados vinténs por semana  para uma vizinha que lhe levava as couves e a broa.  

Nesta  situação o achou o  filho, quando  voltou da  Corunha,  trajando  à  castelhana,  mas delatando  na  jaqueta  safada  e suja  a  miséria  que o trazia à  porta do pai. Pediu-lhe dinheiro com suplicante brandura, com muitos atos de  arrependimento e promessas de reformação de costumes.

— Se puderes reformar os teus costumes, fazes bem; eu é que não posso  desfazer-me em dinheiro — dizia o velho. — Tudo o que eu tinha estava na  mão do teu padrinho; ele morreu, e o ladrão do filho não me paga.

— O que o padrinho lhe devia — disse Joaquim — são dois mil cruzados;  mas vossemecê herdou cinquenta e tantos...

— Não sei o que herdei — replicou o pedreiro —; tudo o que tinha dei-o a guardar ao coronel, Deus lhe fale na alma, e tudo lá ficou.

— O  meu padrinho não era  capaz  de roubar,  Sr.  Pai!  Vossemecê está  metendo  a sua  alma  nas mãos do  Diabo! Há  de  morrer  para  aí  como um  mendigo e o seu dinheiro há de ajudá-lo a cair nas profundas do Inferno...  

No calor da discussão figurou-se ao velho que o filho seria capaz de praticar  alguma  violência. Teve medo  —  o medo que  devia  ser-lhe  uma  agonia  fulminante, se o gozo de sentir-se rico não prevalecesse às angústias de recear-se em perigo na presença do filho. Abriu com as mãos trémulas a arca, tirou  um pé de meia, atado pelo calcanhar com uma guita, deu-o ao filho e disse-lhe  com a voz cortada de soluços:

— É tudo quanto  tenho. Recebi ontem  esses  vinte cruzados novos dos  esteios que vendi. Se queres dar-me metade, dá; se não queres, leva tudo.  

Joaquim ficou  alguns  minutos a  olhar para  o pai com piedoso  aspeto;  e,  depois de pensar na repartição dos pintos, ouvindo filialmente a consciência e  a razão, deliberou.., não repartir nada. Saiu com mais duas maldições tácitas, e  foi relatar o caso ao Luís Meirinho.

Neste  tempo, o antigo aguazil  do.  corregedor  de Barcelos andava  muito  acautelado das justiças da comarca. A sua reputação de salteador de estradas  estava feita; mas as provas que legalizassem a captura eram insuficientes. Os  latrocínios de  encruzilhada  amiudavam-se  na  Terra  Negra,  na  Lagoncinha  e  nas serras distantes do  Ladário e da  Labruja.  Algumas casas afamadas de  dinheirosas eram assaltadas por  quadrilhas que venciam pelo  número a  resistência;  e,  quando  esses  roubos  estrondeavam, Luís  Meirinho  e outros  sujeitos  da  sua  familiaridade nunca  estavam em  Famalicão ou nas aldeias  circunvizinhas.  Era sabido que  as maltas se  reuniam  num grupo de cabanas  numa cafurna de pinheiros chamados os Ribeirais, não longe da vetusta igreja  dos templários de Santiago de Antas. Ainda hoje estão em pé, mas ninguém as  habita,  essas choupanas execradas pela  tradição de serem aí enterrados os  ladrões que voltavam mortalmente feridos dos seus assaltos.

Como quer que fosse,  a  maledicência  não caluniava  Luís Meirinho, nem ele  por modéstia escondeu do Faísca a superior categoria de capitão de ladrões a  que o promovera a voz pública.

Joaquim ouviu estas confidências íntimas sem pavor nem sequer estranheza. A  esquineta era-lhe bastante iniciação para ser admitido aos mistérios da Terra  Negra. O Meirinho encareceu-lhe as vantagens e desfez nos perigos do ofício.  Principiando pelo  argumento mais  insinuante a  favor dos  ladrões,  ofereceu-lhe,  de uma  grande  saca,  dinheiro  que  ele afiançava  ter adquirido sem  escândalo nem efusão de sangue. Umas das suas regras de bem viver era (dizia  ele ao Faísca) matar  somente um  última  necessidade:  talvez a  «justa  defesa»  que a  lei  indulta.  Rômulo,  o salteador que fundou  Roma,  não  exibia  ideias  mais benignas.

A granjeada de um bravo para a jolda foi fácil. O Faísca, numa das próximas  noites, foi apresentado na estalagem da Lagoncinha aos seus irmãos de armas  e achou-se  em melhor sociedade do que  ele previra.  Condecoravam a  cáfila  alguns  sujeitos  que  pareciam  andar  naquela  vida aventurosa  por amor  das  impressões rijas: eram artistas, como hoje diríamos. Filhos segundos de casas  honradas e coutadas desde os reis  da  primeira dinastia, recrutas foragidos,  desertores,  jornaleiros,  indivíduos barbaçudos  vindos  de longes  terras,  facinorosos escapulidos das cadeias ou dos degredos, gentes várias, como se  vê, mas todos alegres, chalaceadores, benquistos nas aldeias por onde residiam  temporariamente,  liberais nas tabernas com conhecidos e desconhecidos,  armados até aos dentes e, segundo a excelente máxima do capitão, matando  somente em última necessidade. A malta, por espírito de imitação, chamava-se  «Companhia  do Olho  Vivo».  Florescera  outra,  com igual denominação,  na  corte,  capitaneada  por José  Nicós  Lisboa Corte Real.  Quarenta  anos  antes  tinham sido enforcados os mais graduados da companhia, salvante o capitão,  porque era protegido do infante O. Antônio, tio de el-rei D. José I. Um dos  mais novos dessa  horda  de ladrões,  que  teve  um  período de  esplendor,  fugindo à  perseguição,  ainda  funcionou na  malta  do Minho, à  qual  legou  o  saudoso nome da outra.

A «Companhia do Olho Vivo» não prosperou no ano em que o filho de Bento  de Araújo se alistou. O terror afastara os passageiros dinheirosos do trânsito  por serras  infamadas e os  proprietários das povoações  sertanejas mudaram  para as vilas e cidades as suas residências.  

No programa de Luís Meirinho  estava  desde há  muito  inscrito Bento de  Araújo; mas, como ainda há pessoas de bem, ao capitão repugnava-lhe propor  em conselho que  se planeasse  o expediente mais plausível na  exumação das  três mil peças do pai do Faísca. Os sécios mantinham entre si estes decoros, o que não sucede em todas as companhias com estatutos legalizados.

Entretanto, como a necessidade apertava, e à notícia do Faísca chegara a má  nova de que o seu pai, acariciado por uns sobrinhos de Gondifelos, tratava de  se passar para a companhia deles, o capitão, forte de razões aconselhadas pela  prudência e aplaudidas por Joaquim, pôs em discussão a matéria, quanto ao  modo de obrigar o pedreiro  a confessar a lura do tesouro.  O  Faísca  tirou a  salvo, porém, que o tinham de dispensar de assistir ao assalto porque, enfim, o  homem..  sempre era o seu pai, e o sangue gritava.

Ninguém se  riu na  assembleia  da  sentimentalidade daquele filho:  é que as  ideias grandes  e fundas  abalam toda a  casta  de alma.  Foi apoiado  calorosamente Joaquim e até abraçado por um sócio de Felgueiras, processado  por parricida.

***

Naquele tempo,  Famalicão,  às nove horas de uma  noite de  Novembro,  negrejava silenciosa e rodeada de pinheirais e carvalheiras. Aqueles palacetes  brasonados com  os  seus  titulares campeiam hoje onde então  rebalsavam  extensos nateiros de lama, a espaços habitados por cabaneiros. A quadrilha de  Luís Meirinho podia manobrar sem temor e desassombradamente no centro  da vila como nas Rodas do Marão.

Em uma  dessas noites,  o chefe,  com uma  dúzia  de escolhidos,  entrou na  Congosta  de Enxiras,  onde morava  Bento  de Araújo.  Ele,  com  mais dois,  acercaram-se da porta; os outros postaram-se de atalaia nas extremidades da  viela.

O pedreiro estava ainda sentado à lareira. Desde que lhe disseram que o filho  pernoitava às vezes em casa do Meirinho, velava até ser dia claro. O receio de  ser assaltado era tamanho que já três vezes, em noites tempestuosas, gritara à  del-rei.  Os  vizinhos,  à  primeira,  acudiram vozeando das janelas com  invulnerável intrepidez, e viram dessa feita que um porco vadio, atraído talvez  pelo cheiro de pocilga, forçava contra a porta de Bento. Depois, ainda que ele  gritasse,  ninguém  se mexia,  atribuindo a  porco  as agressões  incômodas ao  avarento.

Foi o que aconteceu naquela noite de Novembro. O pedreiro sentiu o abeirar-se  gente  da sua  porta  e  reparou  do raspar de ferro entre a  ombreira  e o  batente. Gritou; mas parecia já gritar com os colmilhos apertados. A língua da  fechadura  estalou,  e  a  porta  foi  diante  de dois possantes ombros  tão  rapidamente que os homens, como duas catapultas, entraram de roldão e só  pararam filando-se à garganta do velho empedrado.   

Por entre eles, e à luz do canhoto que flamejava, o pedreiro viu lampejar o aço  de uma navalha e ouviu, através dos lenços com que os hóspedes cobriam as  caras, uma voz disfarçada:  

— Se grita,  você morre aqui já.  Se quer viver,  entregue as três mil peças  que  herdou,  e ande depressa.  Não nos conte lérias,  nem faça  lamúrias.  É  decidir: o dinheiro ou a vida.  

Bento  erguera as mãos suplicantes e pedira, soluçante, que o não matassem.

— Onde estão as três mil peças! — perguntou o Meirinho.

As três mil peças?! — gaguejou o velho como tolamente espantado de que lhe  perguntassem por  três mil peças não tendo ele  do seu três moedas  de seis  vinténs.

— Mate-se este diabo! — acrescentou o Meirinho — e vamos levantar o  soalho  —  Eu  não  tenho  aqui  o  dinheiro,  os  meus senhores..   —  acudiu o  pedreiro desfeito em lágrimas.

— Então, onde o tem você?

— Enterrei-o debaixo de uma fraga. .

— Perto daqui? Avie-se.

— Não,  senhor,  muito  perto não é.  São três  quartos  de légua..   em  Vermoim.

— Bem  —  concluiu  o capitão.  —  Salte para  diante de nós  e venha  desenterrar o dinheiro. Mexa-se!

O homem sentiu certos alívios nesta mudança de situação, como se expor a  vida, salvando o dinheiro, lhe fosse uma considerável melhoria de fortuna.  

A malta, precedida do velho, embrenhou-se nos matos, atravessou o outeiro  que toca nas faldas da serra de Vermoim e por S. Cosme do Vale trepou ao  espinhaço de penhascos que lá chamam o Castelo.

— Você não vá aflito — dizia-lhe o Meirinho —, porque há de ter o seu  quinhão com que pode viver regaladamente. O necessário não se lhe tira; nós  o que queremos é o que lhe sobre. Somos honrados ou não, o seu velhote?  

E dava-lhe palmadas nos ombros.  

— Sim, senhor  —  dizia  o  Bento,  e recolhia-se  a  pensar  na  situação  perigosa em que se via e no modo da esconjurar.

— Ande depressinha — tornava o chefe empurrando-o brandamente.  

— Será  bom ajudá-lo  com alguns  pontapés  —  alvitrava  outro,  receando  que a manha lhes viesse tolher a empresa.

Chegados ao cabeço da serra, espigado de rochas, disse o Meirinho:  

— Cá estamos. Onde é a fraga?

— Não  enxergo bem...  Só quando for  dia  é que eu conheço  o sítio  —  respondeu Bento.

— Temo-las arranjadas..  — disse o Meirinho com um sorriso agoureiro de  más coisas. — Ó Freiamunde, petisca lume e faz aí um archote de codessos  para este tio ver onde está o arame.

— Parece-me  que o melhor  seria ilumina-lo com a  luz  da  pólvora...  —  observou  Freiamunde,  bebendo alguns tragos  de aguardente  de  uma  cabaça  que trazia a tiracolo.

— Quer lá, capitão? Se lhe parece, dou dois goles ao velho como se faz aos  perus.. 

— Tio Bento — insistiu Luís Meirinho —, você acha a pedra ou não acha?  O dinheiro ficará enterrado; mas você também fica de papo para o ar à espera  que o  enterrem.  Veja lá  no que ficamos;  lembre-se que está  tratando  com  homens de palavra.

No entretanto,  um  da  companhia  petiscara  fogo e comunicara  o lume da  mecha à manada de fetos secos apanhados debaixo de uma rocha que figurava  um dólmen.

— Aí tem luz que farte — disse Luís. — Veja lã agora qual é a pedra, Tio  Bento.

— Parece-me que é aquela... — respondeu ele a tiritar, já convencido de  que estava chegado às últimas.

— Parece-lhe ou é? — instou raivoso o Meirinho. — Ande. Mostre lá o  sítio. Ó Zé Landim, se for preciso desenterrar o morto, serve-te da tua faca.  Patrão, estamos às suas ordens, diga lá onde quer que se cave; a cova  há de  fazer-se ou para sair o dinheiro ou para entrar você.

Bento caixa  sobre os  joelhos  como  ferido  de súbita  apoplexia  e começou a  gaguejar uns sons ininteligíveis.

— Este alma de dez diabos que está a mastigar? — disse Freiamunde.  

Neste momento,  o pai de Joaquim caiu de borco,  batendo com a  face  na  pedra;  e,  quando dois  homens o levantaram de repelão e o viram à  luz dos fetos, estava morto.

Este incidente nem levemente impressionou aqueles homens fortes. Ninguém  fez  a  mínima  reflexão acerca  do lance em teatro tão lúgubre.  Os mais  preocupados bebiam aguardente a frouxo, dizendo que o homem morrera de  frio.  Nem uma  ideia filosófica, nem sequer  um  dito  elegíaco!  Luís  Meirinho  discorreu brevemente sobre a certeza de que o morto os tirara de casa para os  desviar do lugar onde tinha o dinheiro. Decidiu que se aproveitasse o restante  da noite indo a casa revolver a terra quanto se pudesse; e, no caso de lá não  aparecer o dinheiro,  viriam na  seguinte noite escavar debaixo  da  rocha,  no Castelo.

Assim se  fez.  Bento de Araújo ficou deitado de  costas sobre uma moita  de  codessos, com os braços hirtos e abertos em cruz, os punhos cerrados e os  olhos envidraçados de lágrimas. Ao alvorecer do dia, uma nuvem pardacenta,  que ondulava pela costa da serra, rasgou-se em saraivada glacial, que lhe batia  no  rosto e saltava  pelo  peito nu e descarnado.  Chovera  e nevara  depois, durante muitos dias. Nenhum pastor subira com o rebanho àquelas cumeadas,  sempre escondidas na negridão da névoa e perigosas, se o lobo uiva faminto.  Quando o tempo estiou, quem denunciara o cadáver já disforme no rosto fora  uma  revoada  de corvos  que crocitavam  pairando sobre os  restos  do seu  banquete disputado às feras.

***

Contava-se assim o caso em Famalicão:

Que o Bento de Araújo, receando os ladrões os seus vizinhos, desenterrara as  suas riquezas que tinha debaixo da lareira e, indo escondê-las nos montados  de Vermoim,  numa  noite de grande inverneira,  morrera  tolhido pelo frio  e  traspassado da neve.

Fundavam-se os desta versão em que a pedra da lareira estava deslocada e no seu lugar uma cova funda; e debaixo dos bancos da cama outra escavação, e  no entulho uns cacos de panela, onde com certeza estava porção do tesouro, e  a outra porção debaixo da lareira.

Outro boato:  

Que a malta da Terra Negra assaltara o pedreiro, roubara-o. matara-o e levara  o cadáver ao castelo de Vermoim. Não se dava a razão deste saimento a três  quartos  de  légua;  mas também não era  necessária  a  lógica  para  explicar tal  coisa.

A versão,  porém,  mais  popular e que tinha o sufrágio  das pessoas mais  razoáveis era que Joaquim assassinara o pai na serra, quando o velho voltava  do seu trabalho  de brocar pedra;  e,  depois,  deixando-o  morto,  viera  a  casa  desenterrar o dinheiro. Em confirmação do boato, alegava-se o fato de ele ter  aparecido em Famalicão a procurar o pai e a indagar dos vizinhos se tinham  dado conta do arrombamento da casa — isto no dia em que o pai já estava  morto.

A voz pública forçou a autoridade a prender o Faísca; mas, na noite seguinte à  da  prisão,  algumas  dúzias de homens  armados  arrombaram a  cadeia  de  Famalicão e tiraram de ferros o inocente.

Esta fuga completou a ruína de Joaquim de Araújo. Acreditou-se geralmente  no roubo e no parricídio. As aldeias do julgado de Vermoim, com Famalicão à  frente, deram montaria à quadrilha da Terra Negra, com o reforço militar de  Guimarães e Braga. A malta dispersou, mortos alguns dos mais audazes; e os dispersos engrossaram, na Póvoa de Lanhoso, a celebrada quadrilha que tem a sua história num livro dignamente esquecido.

O filho de Bento pedreiro morreu em 1809 no Carvalho de Este, defendendo  a Pátria da invasão francesa comandada por Soult. Bateu-se com o heroísmo  do suicida, ao cabo de dezoito anos de salteador, arrostado a todos os perigos,  mas fugindo a que o filassem vivo, porque tinha grande horror à forca. Afinal,  inscreveram-no  entre  os  valorosos  defensores  da  nossa  autonomia,  e  o seu  cadáver foi mais acatado que o do general Bernardim Freire, assassinado por  outros patriotas da laia do Faísca.

***

Hão de lembrar-se que Joaquim de Araújo tinha um filho, que aprendera em  S. Martinho do Vale o ofício de fogueteiro com o parente da sua mãe.

Aos vinte e seis anos, quando o seu pai acabou, estava ele ainda na companhia  do  velho  benfeitor e  mestre,  ganhando alegremente  o seu pão.  Falecido o  parente, alguém lhe disse que ele tinha em Vila Nova de Famalicão a casa, boa  ou má, do seu avô, que ninguém lhe podia disputar.

Facilmente  se habilitou herdeiro de Bento de Araújo e tomou posse do  casebre,  desabitado desde 1790.  Às vezes,  os  mendigos,  nas noites quentes,  levantavam a  aldraba,  que era  um  cavaco de castanho,  e albergavam-se  no  sobrado podre, contando os casos horrendos que ali passaram — o parricídio  e o roubo. As covas estavam ainda abertas e o desentulho em montículos de  redor.

Silvestre de S. Martinho, o filho do Faísca, não usava dos paternos apelidos: do pai aproveitara somente a casa, transigindo com a honra o necessário sem  prejuízo o seu.

Apossado da  casa,  deu-lhe  um  jeito  para  poder habitá-la e  pendurou meia  dúzia de foguetes e bombas reais à porta. Era habilidoso, principalmente para  as bonecas de  pólvora.  Gabava-se  de haver inventado  o barbeiro a  amolar  navalhas na  roda  e levara  à  perfeição da  indecência  a  velha  que despedia  contra  a  cara  combustível do barbeiro  um  repuxo de chispas pela  pane posterior,  tudo com uma  graça  portuguesa  que era  um  estoirar de riso  o  arraial!

Corria-lhe bem a vida e já tinha casado com uma rapariga dura e trabalhadeira,   quando o descuido de um aprendiz, na ausência dos patrões, deixou pegar o  lume num feixe de bombas. Houve explosão, que sacudiu em estilhas o teto  da casa e abrasou todas as madeiras. Quando Silvestre voltou com a mulher da  romagem da  Santa  Eufémia,  nas terras da  Maia,  encontrou quatro paredes  denegridas e o interior da casa a fumegar, cheio da brilhante claridade da Lua.  O aprendiz, carbonizado, estava já na cova.

Tiveram compaixão do pobre fogueteiro  os Vila-Novenses.  Diziam-lhe  que  construísse uma cabana com as esmolas que lhe iam tirar pela freguesia; mas  que a fizesse noutra pane, porque naquela casa, onde um filho matara o seu  pai para  o roubar,  pesava  a  maldição de Deus. Um vizinho  comprava-lhe o  terreno da casa amaldiçoada para acrescentar à sua; mas deixava-lhe a pedra,  que era  boa  para  o  fogueteiro  edificar  noutra  parte.  Silvestre aceitou,  convencido de que o sangue do seu avô funestara para sempre aquele teatro  do grande crime.

Recebido o terreno de esmola, principiou Silvestre  a  demolir as  paredes da  casa  queimada.  Fazia  ele este serviço,  com ajuda  da  mulher,  enquanto  o  carreteiro ia carreando a pedra.

Às três da tarde de um sábado o carreteiro, consoante o costume, despegara  do serviço; mas Silvestre e a mulher continuaram a desfazer o último lance de  parede que  lhe  restava, com o fim de  na  próxima  segunda-feira acabarem o  trabalho da demolição.

Observara o fogueteiro que este lado da parede quadrilátera era mais grosso  um palmo que os outros que formavam o recinto, reentrando para o interior o  excedente da  grossura.  Estava  coberta  de  pasta  de barro e caleada como  as  outras.  Divisava-se  ainda  no barro  gretado o risco traçado  pelo  atrito  de  qualquer como que se encostara à cal ainda fresca.

Por esta raspadura, conjeturou Silvestre que ali devia estar o banco da cama  do  avô, até porque  ouvira  dizer que parte do tesouro  estivera  enterrado  debaixo da cama; e ele, quando tomara posse da casa, ainda vira a cova aberta,  dois palmos distante daquela parede.

— A pedra aqui é mais larga — disse o fogueteiro à mulher.  

— Agora é! — emendou ela. — O que a faz parecer mais larga é a camada  de barro; senão, olha.

E começou a picar ao longo da parede com a extremidade aguda da alavanca,  e o  barro, esboroando-se e  desacamando  a  pedaços,  deixava  descobrir  a  superfície da pedra, que não era mais grossa que a outra.

— Dizes bem, é isso — aprovou o marido. — Vamos apeando a parede por esse lado, que o bano, ele se despegará.

E, dizendo, pegou noutra alavanca e começou a derribar as capas da parede,  enquanto  a  mulher,  para  não  estar com as mãos debaixo dos  braços,  ia  descaliçar a  camada  barrenta.  Quando atirava  rijamente com a  ponta da  alavanca à parede, notou que o ferro batera e se cravara em pau.

— Aqui há madeira — disse ela.

— E alguma cascaria que tinha mão no barro — explicou Silvestre.  

A mulher repetiu os  golpes em diversos pontos  na  circunferência  de dois  palmos e tirou sempre o mesmo som.

— Parece que bate em vão..  — notou ela.  

— O quê?! — acudiu o marido, descendo do andaime em que trabalhava.  

— Bate em vão! Que dizes tu?!

— É o que te eu digo... Olha..  Ouves?  

— Ó  mulher!  —  exclamou ele,  cravando-lhe  os  olhos  cheios de palpites  que a língua não ousava formular.

E como nesse  comenos  passasse  gente,  e  parasse  a  olhar para  as ruínas,  o  fogueteiro fez um trejeito à mulher, que ela entendeu, calando-se.

— Ajunta a ferramenta, Maria, e vamos embora, que já mal se enxerga —  disse ele.

— Lá vai a casa do Bento pedreiro, Deus lhe fale na alma! — disse o mais  ancião dos curiosos. — Que dinheirão aqui esteve neste pardieiro! Cinquenta  e seis  mil  cruzados!  Era  o homem mais rico da  vila  e  o seu termo,  e tanta necessidade passava  aquele alma  do diabo, Deus lhe  perdoe,  para  afinal o  dinheiro ser repartido pela quadrilha do Luís Meirinho, que também o levou  berzabum com duas balas que lhe meteram na barriga ali à ponte de Santiago!  

— São fadários, Tio Simeão!..  — disse Silvestre.  

— Você podia a esta hora estar rico como um porco, se tivesse outra casta  de pai..  — disse o velho.  

— Assim é; mas não o quis Deus. Desgraças...  

— Ora faça você de conta que tinha achado aí o dinheirame do seu avô!  

— Ainda venho a tempo!...  

— Pois sim;  mas faça  de conta  que o topava!  Você que fazia,  ó Sor  Silvestre?

— Eu sei cá, Tio Simeão!  

— Foguetes é que você não fazia mais!, aposto dobrado contra singelo!  

— Não falemos nisso..  Foguetes é que eu hei de fazer toda a minha vida, e  Deus me dê saúde para os fazer.

— Ámen; mas você, se se pilhava com as três mil peças, metia a vila toda  num chinelo e pintava aí o diabo a quatro!

— Está enganado!, não pintava nada. . Comprava uns benzinhos, e havia  de trabalhar neles, como trabalho nos foguetes.

— Vem daí,  homem  —  disse Maria,  já  aborrecida  das impertinentes  perguntas do  Simeão,  que,  encostado  à  sachola,  parecia  jubilar nas  pachorrentas  hipóteses  e nas  delícias  de  coçar  uma  perna  com a  outra  alternadamente.

Simeão foi o seu caminho com os outros; e o fogueteiro e a mulher seguiram  para casa; mas, assim que as portas e janelas se fecharam na rua, aí estavam  eles outra vez sobre o cascalho, raspando com ferramentas pouco ruidosas a  parede no espaço em que o som do vácuo respondia ao toque do ferro.  

No termo de curta fadiga tinham descoberto uma superfície lisa de madeira,  envasada  na parede como  a  portada  de  um  postigo. Facilmente  desencaixilharam a  tábua  do  envasamento de pedra,  porque  não tinha  dobradiças nem outra  firmeza  além  da  que  lhe dava  a  espessa  camada  de  barro. Silvestre introduziu a mão e topou um corpo frio.  

— Que achas? — perguntou Maria ofegante com as mãos postas.  

— É um panela de ferro. . — balbuciou ele. — O mulher!. . tem mão em  mim, que não sei o que me dá pela cabeça!...  

— Nossa Senhora! — exclamou ela — a nossa Senhora!..   

E, em vez de ter mão no homem, meteu ambos os braços até achar a panela,  enquanto  Silvestre  abria  e fechava  a  boca  em trejeitos de tão estúpida  felicidade que só a suprema desgraça os poderá fazer iguais.  

Nisto, a rija mocetona arrancava da lura o peso enorme de ouro; e, caindo de  cócoras com o pote no regaço, exclamou sufocada:

— Ai Jesus!, que eu morro de alegria!...

Silvestre  apertava  o  ventre  com as mãos.  Esta  postura  não  é ridícula  nem  inverosímil para os que sabem que os intestinos quase nunca são estranhos às comoções grandes.

Aos  primeiros assomos  da  seguinte aurora,  a  parede estava  arrasada.  Os  vizinhos ouviram o ruído da assolação e pensaram que a derrubara um pegão  de vento.

Mas, na semana seguinte, a obra da casa nova parara. O fogueteiro dizia aos  seus benfeitores que ia mudar de terra e talvez mudar de vida.  

***

Por esse tempo, um fidalgo da corte de D. João VI mandou vender as suas  vastas  propriedades na  província  do Minho.  Nos arrabaldes de Barcelos  demorava a principal das quintas que tinha sido paço senhorial. Chamava-se a  Honra de Romariz e já fora dote de D. Genebra Trocosende, no século XII,  casada com D. Fafes Romargues, filho de D. Egas, que gerara D. Fuas, e tão  copiosa e compridamente se geraram uns dos outros que afinal degeneraram  na  pessoa do fidalgo que mandou vender a  casa  solarenga,  para  cruzar  ricamente uma dançarina sobre os leões rompentes do seu escudo.  

Chamava-se Silvestre de S. Martinho o comprador,  que  contara  na mesa do  tabelião de Barcelos  vinte e cinco mil cruzados em peças  de  7$500 réis.  Quantos casais  e leiras o filho  de Joaquim  Faísca  pôde comprar à  volta  da  Honra  de Romariz  incorporou-os no cinto  de muralha  que foi  alargando a  termos de arredondar a mais vasta e formosa vivenda do coração do Minho.  

Em 1826, quando Silvestre já desesperava da fecundidade da esposa, em anos  bastante serôdios, deu-lhe ela uma menina que se chamou Felizarda. Aos oito  anos,  a  rapariga,  filha  única  e conhecida  pela  morgadinha de Romariz,  já  bastante  espigada  e  gorda,  levava  folgada infância.  Aos  dezoito anos,  compuseram-se-lhe as  feições com  proeminências grandes,  mas  esbeltas.  A  fertilidade do peito dizia com a curva tumecente das espáduas. Felizarda tinha  uns arquejos de cansaço que lhe alinhavam o carmim do bom sangue.  

Um bacharel formado, que aspirava de longe os olores desta flor de girassol,  queixando-se  da  demora  que ela  pusera  em chegar  para  uma  festividade de  igreja, fez-lhe o seguinte improviso, depois de trabalhar três dias a rima:  

Eu, que sou fogo, não tardo, 

ela, que é gelo, é que tarda.

Se eu, que amo, feliz ardo, 

FELIZARDA feliz arda.

Ela deu pulos a rir como se tivesse a critica de Mad. Girardin. Por esse tempo,  1846, Silvestre de S. Maninho estava muito rico, mas muitíssimo aborrecido  na  diluente  ociosidade de tantos anos. Às  vezes  mandava  comprar pólvora  bombardeira,  furava  canudos,  apertava-os  com guita alcatroada  e fazia  foguetes para se distrair. Felizarda, bastante entretida com a arte, pedia à mãe  que lhe ensinasse a fazer valverdes e bichinhas de rabear.  

A Sra. D. Maria, excelente matrona e mãe, não se enfastiava, como o esposo,  porque mourejava  sempre  na  casa  e na  quinta,  fiava  ou dobava  nas noites  grandes com as criadas à lareira e envergonhava os servos calaceiros batendo  as meadas no lavadouro, ou padejando as broas na cozinha.

Mas o marido,  que,  tirante as  diversões  pirotécnicas, não fazia  nada,  andava  dispéptico e clorótico, quando teve de optar entre fogueteiro e político.

Era no tempo da Patuleia. Silvestre manifestara-se progressista nas belicosas  eleições de 1845, em Barcelos, e sentiu-se invadido pela paixão sociológica por  causa do canibalismo dos fuzilamentos de Alvarães. No ano seguinte, influiu  no movimento de Maio e manteve-se nas ideias avançadas até Outubro, em  que os agentes da junta do Porto lhe embargaram, no Largo da Aguardente,  duas carruagens  que  iam à  praia da  Foz  buscar a  mulher  e  a  filha.  Neste  conflito,  oscilou politicamente  entre os  irmãos  Passos,  que amamentavam a  República  nos  seios  dessorados da  liberdade caquética,  e  o padre Casimiro  José  Vieira,  o Defensor  das Cinco  Chagas, que proclamava  D.  Miguel I  no  Bom Jesus do Monte.

Aliciaram-no  ao  seu partido alguns  sectários  da  realeza  absoluta,  que  viam  desde a ponte de Barcelos a política europeia e traçavam com as bengalas no  Campo das  Cruzes  as evoluções militares  e triunfais  dos  exércitos russos. Silvestre  não subia  nestas  compreensões tão alto  como  os seus  foguetes de  três  respostas,  mas entendia  que,  tendo  as  coisas de dar volta, não lhe seria  mau adotar o partido vencedor. Ofereceu dinheiro ao Dr. Cândido de Anelhe  e ao advogado Francisco Jerónimo para se enviará à Lua.(*) 

[(*) Os realistas usavam nas suas correspondências termos convencionais. Lua era o general-chefe Macdonnell. Este general, quando foi batido pelo conde de Casal em Braga, deixou ali  um volumoso dicionário manuscrito, curiosamente elaborado pelos realistas de algum vulto  lexicológico, com bastantes documentos que hoje estão esquecidos e mais tarde a história não  saberá  onde procurá-los. Neste dicionário criptográfico  os vocábulos mais engenhosamente  disfarçados são estes:

Inimigos — BESTAS.  

Inimigos em movimento — BESTAS DESINQUIETAS.  

Inimigos em marcha contra nós — BESTAS DE JORNADA.  

Os liberais, se intercetassem a correspondência, não suspeitariam decerto que os  miguelistas   chamassem aos seus adversários bestas.

Leia-se a  Carta  Dirigida  ao  Cavalheiro  José Hune, Membro  do  Parlamento,  sobre   o  Último Debate Havido na Câmara dos Comuns a Respeito dos Negócios de Portugal, etc.,  Lisboa, 1847.

O tradutor e anotador anónimo desta  obra,  a  mais noticiosa  que ternos da  revolução  chamada da Maria da Fonte, foi Antônio Pereira dos Reis, notável escritor político, falecido  em 1850.]

À  sua  generosidade  respondeu magnanimamente  a  assembléia  realista  condecorando-o com a comenda de S. Miguel da Ala. Ele já era Rosa Cruz,  graduado na hoje extinta viela da Neta, por José Passos. Abriu-se um pleito de  liberalismo entre Silvestre e a cabeça visível de el-rei absoluto. Boa porção das  peças intactas do defuntíssimo Joia passaram para o cinturão do aventureiro  escocês Macdonnell, e depois para os bornais dos soldados de caçadores que  o espingardearam em  Sabroso.  Ó  fados  do dinheiro!  Que estremeções  não  daria  na  cova  o cadáver  do Bento  pedreiro,  se  os  corvos e os  lobos  o não tivessem comido na serra!

Extintas as fações  políticas,  Silvestre,  por  insinuações  da  mulher,  entrou a  desconfiar que era tolo e que o Sr. D. Miguel não o conhecia. Retirou-se da  política,  cheio de desenganos e ridículo.  Os funcionários  administrativos e  judiciais de Barcelos zombavam dele e, no Periódico dos Pobres, um «Amigo  da  verdade»  escreveu  que o  Silvestre de  Romariz, no auge  da  sua  dor,  fabricava foguetes de lágrimas. Alusão perfurante que ele soletrou na folha.  

A respeito de soletrar, a morgada recebia cartas de um amanuense da Câmara  de  Barcelos;  mas só  abriu sete que  juntara  quando uma  costureira  lhas leu.  Felizarda criara-se sem letras e vivia, a respeito de literatura, como as raparigas  gregas  antes de  Cadmo,  filho  de Agenor,  introduzir na  Grécia  o alfabeto  fenício;  mas,  em compensação,  tinha  muita flor  nativa  e fresca  de acres  aromas naquele aflante seio e folgava de ouvir trovas de chula e desafios de  cantares em que às vezes a frase estava pedindo a intervenção da polícia.  

Direi do amanuense da Câmara Municipal de Barcelos:  

Era  um  sujeito que perlustrara as regiões da  ciência por toda a extensão do  Manual Enciclopédico do Sr.  Emílio Aquiles de Monteverde.  Era  autor  de  charadas impressas. Só a Felizarda. Tinha este rapaz, José Hipólito de nome,  imensa fé  na  brisa, no paul,  na  justiça e  no arcanjo da  poesia  de 1840.  Os  duendes das suas visões noturnas nas margens do Cávado sangravam-no. Era  melancólico  e magro  como um  galgo doente. A sua  paixão grande,  não  falando na falta de dinheiro, era Felizarda.

Ganhava três tostões na escrivaninha da Câmara e devoravam-no aspirações a  ter cavalo  e carrinho.  Entretanto,  andava  pelas casas a  recitar a  poesia  de  Paimeirim:

Que poeta que não era 

Da linda Inês o cantor;

ou, da lua de Londres, o 

É noite; o astro saudoso 

Rompe a custo o plúmbeo céu, etc.

E chorava quando os versos coavam fúnebres.

Felizarda não parecia talhada (sem calemburgo) para este homem; ele, porém,  talhara-se para ela. Far-se-ia boi, como  Júpiter, para arrebatá-la, bem que os seus  instintos  voláteis  o levassem para  cisne,  se  Felizarda  tivesse,  além dos  próprios, os instintos um tanto bestiais de Leda.

Escreveu-lhe sete missivas profusas e tristes como os sete pecados mortais. A  costureira  que as leu debulhava-se  em lágrimas e decorava  períodos para  responder às cartas de um furriel do 13 de infantaria. Felizarda ouvia aquelas  coisas com a  atenção de  uma  rã  que emerge à  flor  do lago os  olhos  espantadiços  e escuta  um  rouxinol.  Como as  prosas levavam  recheio de  quadras, assim que a morgada dava tento da rima, espirrava um frouxo de riso,  tal qual como no lirismo de Santo Antônio, no Teatro de S. Geraldo.  

Tinha  aquele  aleijão!  Era  —  quem sabe?  —  a  preexistência  desta  enorme  gargalhada que hoje atabafa os golfos da poesia subjetiva.

A costureira  interpretou-a  e respondeu, vestindo  a  ideia  de Felizarda  com  palavras  inocentes,  mas  facinorosas em ortografia.  O  amanuense amava-a deveras: leu a carta, em que era chamado bem da menina com v; e, dando os  pêsames ao seu Monteverde, fez votos de educar Felizarda nas quatro panes  da gramática, se um dia conjugasse o verbo amar, que só é verdadeiramente  regular quando o matrimônio o defeca.

Trocaram-se  cartas assíduas.  Felizarda  começava a  ser um  pouco  séria,  pouseira  e  sensaborona. Amava.  Entre a  psique e a  outra  abriram-se  as  válvulas de comunicação.

Tinha morbidezas de Ofélia e indigestões por falta de exercido. Não saia do  mirante que olhava para o caminho do carro. José Hipólito passava por ali aos  sábados de tarde; e, se a solidão era absoluta, perguntava-lhe como passou. E  Julieta, debruçada sobre o varandim do miradouro, com a face rubra e o seio  ondulante, dizia-lhe que passou bem.

Nas cartas, falou-lhe em matrimônio, o amanuense. Ela  respondeu que sim.  José  Hipólito,  esporeado pelo  amor,  abalançou-se  à  interpresa de que os  amigos o dissuadiam. Pediu-a ao pai, e arrependeu-se. Silvestre perguntou-lhe  quem era e quanto tinha. Ouvida a resposta, disse gesticulando um esgar de  desprezo:

— Ora adeus..  O senhor, se não é tolo, parece-o.  

Despediu-o apontando-lhe para a porta. Depois chamou a filha e perguntou:  

— Que diabo é isto?  Onde conheceste o pelintra  que te veio pedir para  mulher?

Ela contou ingenuamente o caso, mostrou as cartas, confessou quem lhas lia,  quem lhes respondia, e concluiu:

— Assim como assim, já agora quero casar com ele.  

O pai expediu berros cortados de interjeições brutas. A filha fugiu, a soluçar, e  não apareceu ao jantar nem à ceia.

E a mãe, a mulher laboriosa que nunca pensara nas soberbias implacáveis da  riqueza, dizia ao marido:

— Se ela gosta do rapaz, deixa-a casar..  Bem me pregava o meu pai que  não casasse contigo porque tu eras filho de quem eras. E daí? Casei e nunca  me arrependi.

— Queres dizer na tua que dê a minha filha com oitenta mil cruzados para  um troca-tintas que não tem casa, nem leira, nem...

— Tem-na ela, homem. A riqueza chega para os dois. Trata de saber se ele  é bom rapaz; e, se for, deixa-a casar, que tem vinte anos.

***

José  Hipólito  criara  protetores  esperançados no bom êxito da  tentativa.  Os  inimigos  políticos de Silvestre  de Romariz coadjuvaram-no a  tirá-la  judicialmente.

O  juiz prestou-se  a  interrogar a  morgada,  visto que ela  não podia  requerer  pelo seu pulso. Supridas legalmente as formalidades, Felizarda foi depositada  em Barcelos, no seio da família Alvarães.

Trava-se  então a  luta nos  tribunais.  O  pretensor,  mal  dirigido  pelo seu  advogado,  responde  com retaliações  pungentíssimas a  insultos que o  argentário lhe dirige  ao seu nascimento obscuro e  à sua  pobreza.  A pugna  passara a ser um assanhado pugilato dos dois causídicos.  

Um dos membros da família Alvarães era jovem, chamava-se José Francisco e  estudava  o 5º ano  de  Latim a  ver  se  aprendia  o  necessário  para  cónego  da  colegiada barcelense. Tinha quatro reprovações conscienciosas em Braga; mas ao 5º ano já  distinguia  o verbo do  complemento  objetivo  e  traduzia  com  poucos erros a Ladainha.

A família Alvarães era antiga e abastada; contava muitos frades bernardos na  prosápia  e um  governador  numa  praça  da  Ásia,  donde trouxera  navios de  especiarias que formaram o casco da riqueza. A casa tinha pedras de armas e  uma  liteira  brasonada  que antigamente  ia  a  Alcobaça  buscar os  frades  a  rusticar nas pescarias do Cávado e a encher as roscas da caluga, balofas pela  inércia do claustro.

José  Francisco,  o estudante,  era  sanguíneo,  nédio,  com as  maçãs do rosto  vermelhas e os olhos enfronhados nas pálpebras sonolentas. Felizarda, a noiva  depositada,  pareceu-lhe  bem,  ao  passo  que o  amanuense  da  Câmara lhe  era  um  antipático  bandalho,  desde que em plena  praça  o enxovalhara  perguntando-lhe, no 3º ano de Latim, o acusativo de Asinus. Opusera-se José  Francisco à receção da morgada para haver de casar com José Hipólito, filho  do Manuel Colchoeiro; mas força maior obrigara os Alvarães a protegerem o  amanuense.

Às vezes, o futuro cônego pasmava-se a contemplar Felizarda e sentia em si as  suaves  dores  da  natureza  em pano  do primeiro  amor.  Se ela, a  morgada,  olhava para ele a fito, produzia-lhe no rosto o efeito do Sol que aponta em dia  de calma  —  avermelhava-o  até aos glóbulos  das orelhas;  e José  coçava-se a  disfarçar, ou esbofeteava  as moscas  que lhe passeavam sobre a  epiderme  oleosa e faziam titilações incômodas nas fossas nasais.

A morgada achava-o bonito e dizia às irmãs que era pena fazerem-no padre.  José, quando soube isto, criou umas esperanças que o tresnoitavam e tinha as  sentimentalidades doloridas de Jocelin e de um ou outro clérigo de Barcelos  que deixava vingar-se a natureza.

Procurava  José Francisco  Alvarães  modos de conversar com  Silvestre de  Romariz  e contava-lhe o que a  filha  dizia  a  respeito  do Hipólito.  Levava  à  depositada  cartas do  pai  e lia-lhas às escondidas da  família. O  amanuense  suspeitara-o e tratava de remover o depósito, alegando subornos que a lei não  facultava.

Ora, naquelas confidentes leituras, estabelecera-se intimidade bastante entre a  morgada  e o intérprete das  lástimas  do seu pai.  de  uma  vez  que Felizarda  enxugava as lágrimas, ouvindo ler o adeus que o pai enfermo lhe enviava, José  Francisco, transportado num rapto inconsciente de entusiasmo, pegou-lhe na  mão e disse com terníssima meiguice:

— Não  case contra  vontade  do seu pai. .  Tenha  pena  dele,  que está  tão  acabadinho.

A morgada pôs-se a torcer e a destorcer o seu lenço branco e a lamber uma  lágrima que lhe pruía no beiço superior; mas não respondeu.  

Alvarães foi  contar isto  ao velho. Silvestre pegou no processo  que  o seu  advogado lhe enviara e disse-lhe:

— Faça-me o Sr. Josezinho o favor de levar estes autos e ler a minha filha  o que o tal patife, que quer ser o seu marido, aqui diz do seu pai: leia-lhe isto,  e veja o que ela diz.

O  leitor  já  sabe,  por  eu lho haver dito  nas  primeiras páginas deste livrinho,  que o indiscreto amanuense consentira que se escrevesse que o pai de Silvestre  fora salteador de estradas e que o pai de Felizarda exercitara o baixo mister de  fogueteiro em Famalicão.

Tudo  isto era  expendido  na  tréplica  de José Hipólito  com grande  lardo de  zombarias e sarcasmos em estilo  picaresco. A morgada  ouviu ler  as injúrias  entoadas  com veemência  por José Francisco,  que  as declamou como se  estivesse traduzindo um período de Eutrópio.

Concluída a leitura, Felizarda, antes que o leitor a interrogasse com os olhos,  exclamou:

— Quero ir para a casa do meu pai, e há de ser já. O Josezinho vai comigo.  Mande dizer ao meu pai que me mande a burra.  

José foi dar parte à família da súbita resolução da morgada; o depositário foi  dar pane ao juiz, e o juiz respondeu que a lei não podia empecer à vontade da  depositada.

Quando estas altercações chegaram à  notícia  de José  Hipólito,  a  filha  de  Silvestre ia já caminho de casa, acompanhada pelo estudante e pelas irmãs.  

O  pai e a  mãe receberam-na  nos braços,  ofegantes de júbilo,  a  pedir-lhes  perdão da sua doidice. Silvestre abraçava José Francisco Alvarães chamando-lhe o salvador da sua filha e da sua honra. A santa mãe de Felizarda olhava  para o estudante com os olhos cheios de riso e dizia:

— Não queira ser padre, Sr. Josezinho... Olhe que o meu homem já disse  que, se a vossa Senhoria quisesse a nossa rapariga, que lha dava, e eu também.  

José olhou estupefato para o velho; Silvestre entendeu o espanto e disse-lhe:  

— Não olhe para mim, que eu não sou o que caso; olhe para a minha filha  e veja o que ela diz. Felizarda, queres casar com o Sr. José Francisco?

— Se o pai quiser...  também eu. —  E escondeu o rosto no seio da  mãe  com umas  visagens que pareciam de entremez mas que eram da  maior  naturalidade.

As irmãs de José  Francisco rodearam-na  e beijaram-na  sofregamente,  enquanto o noivo, iluminado por aquele improviso e inesperado lampejo de  felicidade,  achou no  coração estas frases  que balbuciou,  abeirando-se da  morgada:

— Se a menina casasse com o outro, eu acho que morria de paixão, e mais  nunca lho disse.

***

CONCLUSÃO

Quando os vi em Braga, no Teatro de S. Geraldo,  estavam casados havia já  vinte  e  cinco  anos.  Na casa  de Romariz,  durante  essa temporada,  apenas  pesaram dias funestos quando se fecharam as sepulturas de Silvestre e a sua  mulher.

 José  Francisco  Alvarães  era  um  modelo raro  de continência conjugal.  Em  Portugal  só se conhecem dois exemplares: el-rei  D.  Afonso IV  e ele.  As  diversões da vida, convencionalmente chamadas prazeres, não perturbaram a sua monotonia de Romariz.

D. Felizarda  apenas conhecia  na  arte dramática  o Santo Antônio,  de Brás  Martins, e a “Degolação dos Inocentes”, por onde entrou na vida infame de  Herodes.  As noites  de  Dezembro aligeiravam-se  em Romariz a  dormir.  Ceavam e digeriam serenamente.  Ao  pé  de um  bom estômago coexistiu  sempre uma boa alma. Acordavam alegres para continuar as funções animais. Viviam para crédito da fisiologia: eram duas pessoas que se adoravam e faziam  reciprocamente o seu quilo num só órgão.

Tinham  um  coração,  um  fígado e um  pâncreas  para  os dois.  Nesta  vida  vegetal havia ternuras cupidíneas, como as das cilindras e acácias florescentes; e,  quando  extravasavam da  órbita  fisiológica.  jogavam a  bisca  de três;  mas  ordinariamente entretinham-se mais com o burro.

De S. Miguel de Seide, Julho de 1876.
Nota:Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)  

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