Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Eça de Queirós: "O Senhor Diabo"

 Como está provado que sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas historias femininas e macias, que nos serões de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria. 

Conhecem o Diabo? 

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave! 

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensanguentam  o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade ir. 

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos. 

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César. 

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu!   Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens.

Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas húmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente. 

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em  Florença e ia dormir na cela de Savonarola. 

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo. 

Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates. Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula. 

E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas. 

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio. 

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.   O Diabo amou muito. 

Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antigüidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.   Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha. 

Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos. 

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.   Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida!

Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto. 

A casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm. 

Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam  piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo. 

E todo o dia fiava. 

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro. 

Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros.   As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali — consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado. 

Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto! 

— Se tu soubesses! — dizia um olhar. — A alma dela é imaculada. 

— Se tu visses! — dizia o outro. — O coração dele é sereno, forte e vermelho. 

— É consolador, aquele peito onde há estrelas! 

— É purificador, aquele seio onde há bênçãos! 

E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as arvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras. 

E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas. 

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos. 

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar: 

Os teus olhos, bem-amada,
São duas noites cerradas.
Mas os lábios são de luz
Lá se cantam alvoradas.
Os teus seios, minha graça,
São duas portas de cera,
Fora a minha boca um sol
Como ele as derretera!
Os teus lábios, flor de carne,
São portas do Paraíso:
E o banquinho de S. Pedro
É no teu dente do siso.
Queria ter uma camisa
De um tecido bem fiado
Feita de todos os ais
Que o teu peito já tem dado.
Quando nos formos casar
Canta missa o rouxinol
E o teu vestido de noiva
Será tecido de sol!
A bênção nos deitará
Algum antigo carvalho!
E por enfeites de boda
Teremos gotas de orvalhos!

E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto.

Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

— A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como  dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?

E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas: 

Quem depena um rouxinol 
E rasga uma triste flor, 
Mostra que dentro do peito 
Só tem farrapos de amor.  

E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz. Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus. 

— A toutinegra voou — disse jovialmente.

E indo para Jusel:

— É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel? 

Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida. 

— No meu tempo, senhor Suspiro — disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços — já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam  isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem  bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel! 

Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito. 

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão. 

— Bacharel Ternura — disse — há aqui perto um lugar onde os goivos nascem  expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil. — Era o pajem. — É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondoó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas! 

E batendo heroicamente nos copos da espada: 

— Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força? 

— Ali! — respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas. 

— Ah! — disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte? 

— Eram os meus irmãos — disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra. 

— Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado ao pilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul. 

Maria disse suspiradamente: 

— Vem. 

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem  aproximando os braços de um Deus. 

As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia: 

— Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: “Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram  no coração daquela mulheres.” Outros diziam: “Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio.” E então adiantei-me e disse: “Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem.” Que sonho tão mau, tão mau! 

— Por que estás tu — dizia ela — todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas? 

— Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem. 

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite. 

— Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. — Nem eu sei!   

E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como  pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente. 

E inclinando o corpo: 

— Conheces meu pai? — disse ela. 

— Não. Que importa? 

— Ai, se tu soubesses!

— Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixava-me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em  farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que tu prende o cabelo. Será a nossa estola. 

E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas — J. e M. 

— É o nosso noivado — disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia.  

E ajoelhados, extáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça. 

E as suas almas falavam cheias de mistério. 

— Vês  tu? — dizia a alma dela — Quando te vejo, parece  que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus! 

— O meu coração — suspirava a alma dele — é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor! 

— Olha — dizia a alma dela — eu sou com um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares! 

— Sabes tu? — dizia a alma dele — No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo — quando cairás tu nos meus braços?

E a alma dela dizia: “Cala-te”. Não falavam.

E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas — para Deus passar por cima!  

E então à porta da varanda houve uma risada metálica, imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros,  vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo,  sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra. 

O pai lentamente foi para Jusel e disse, com escárnio: 

— Onde queres ser enforcado, vilão? 

— Pai, pai! — E Maria, aflita, com uma convulsão de  lágrimas, enlaçava o corpo do velho. — Não. É meu marido, casamos as almas. Olhe, ali está. Veja! Ali, na imagem! 

— O quê? 

— Ali, no peito, veja. Os nossos nomes enlaçados. É meu marido. Só me quer bem. Mas seja, sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida! 

O velho olhava as letras como uns esponsais divinos que se tinham refugiado no seio de Cristo.  

— Raspa, meu velho, que isso é marfim! — gritou o homem dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca no cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!

E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas. 

— É ele, Rabil! — gritou o homem da flor de cacto. 

O velho soluçava. 

E entoa o homem pálido, que tocava guitarra, veio tristemente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai: 

— Abençoa-os, velho! 

E saiu batendo rijamente nos copos da espada. 

— Mas quem é? — disse o velho apavorado. 

— Mais baixo! — disse o pajem da ânfora de Mileto — É o senhor Diabo... Mil desejos, meus noivos. 

Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros  dizia ao pajem:

— Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu. Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria diz que me vendi a Deus. 

— A bela Impéria! — disse o pajem. — As mulheres! Vaidades, vaidades.! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados, trovadores. As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incomoda, e uma carne tão diáfana que se vê através do lodo primitivo. 

— Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando — para noa morrer de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos, o homem não começa a gozar um bem, sem  primeiro rasgar a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer. 

— Também os diabos se vão. Adeus, Satã! 

— Adeus, Ganímedes! 

E o homem e o pajem separaram-se na noite. 

A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra. 

— Estás também deserto — disse, olhando para a cruz. Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste calado. 

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio: 

Quem vos desfolhou estrelas, 
Dos arvoredos da luz? 
E com uma risada melancólica: 
Chegará o Outono ao Diabo? 
Virá o Inverno a Jesus?

Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902

Sem comentários:

Enviar um comentário