Apesar de já se terem vivido vários fenómenos semelhantes, a humanidade não estava a contar atravessar uma pandemia, que a deixasse em suspenso. As pessoas viram-se, do nada, com as rotinas trocadas e tiveram que se habituar, num curto espaço de tempo, a um novo normal. A vida como se conhecia parou. Fecharam as escolas, as lojas, os cafés, os restaurantes, os museus e os teatros. Os beijos, abraços e apertos de mão ficaram de lado. De repente, o ser humano, habituado a passar a maior parte do dia na rua, fosse em trabalho ou nos afazeres comuns, levou com a sentença do “fique em casa”. A História lembra-nos diversos fenómenos parecidos, com os quais se podia ou não ter aprendido algo, nomeadamente aquela que, por muitos, é chamada a mãe das pandemias. A gripe espanhola, que surgiu em 1918, infectou, durante dois anos, mais de 500 milhões de pessoas, segundo estimativas. O número de mortos é algo muito impreciso, mas diz-se que ultrapassou os 50 milhões, podendo ter chegado aos cerca de cem. Assim, esta foi a pandemia mais mortal de que há memória ou registo, mas o que se aprendeu esta ou com as outras afinal? O que retiramos de bom do mau?
Brigantinos divididos entre a esperança e o pessimismo
Há quem diga que se conhecêssemos e prestássemos atenção ao passado saberíamos o que irá acontecer no futuro. A verdade é que as pessoas, tendencialmente, estão preocupadas em viver o seu dia-a-dia e centram-se no presente, não antevendo o que pode ou não acontecer e muito menos quando. Como diz o povo, agora pouco importa chorar sobre o leite derramado. A pandemia instalou-se, trocou- -nos as voltas a todos e já só se quer ver o fim do pesadelo. Quando se declarar o fim da Covid-19, há quem acredite que tudo regressará à normalidade, mas há outros que não prevêem que a vida não volte a ser o que era. Armando Rebelo é comerciante em Bragança. É proprietário de uma loja há várias décadas, no centro da cidade. A rua onde trabalha é das que mais movimento tem e, por ali, via passar, diariamente, largas centenas de pessoas, mas agora o cenário é fantasmagórico. “Estou muito pessimista. A retoma vai ser muito difícil porque as pessoas foram obrigadas ao recolhimento e isso vai atrasar muito a vida normal, a vivência da cidade”, começou por explicar, dizendo que “a cidade parece morta”. Para o comerciante, a chamada familiaridade e amizade “vai demorar muito tempo a voltar a ser a mesma”. “Este medo que temos hoje, do nosso amigo e do cidadão comum, acho que vai ficar um pouco interiorizado. Acho que vai custar a despoletar para a vida espontânea”, assinalou, afirmando ainda que o calor do povo lusitano “é capaz de desaparecer um bocadinho”. Mais positiva está Andréa Ferreira. A advogada, que trabalha na mesma rua, considera que voltar à realidade que conhecíamos é uma questão de pouco tempo. “Tenho esperança que as pessoas voltem à normalidade. Acredito que nos primeiros tempos ainda sintam algum receio, mas penso que tudo acabará por passar”, explicou. Para a advogada é mais que certo que no começo haja medo em conviver e estabelecer novos contactos, mas, “com o passar do tempo tudo volta à normalidade, até porque toda a gente está ansiosa por isso.” Quanto aos à afectuosidade que caracteriza os portugueses, Andréa Ferreira considera que, como “é uma característica tão nossa”, conforme o tempo passe, “as pessoas, nesse aspecto, serão as mesmas, porque está tudo demasiado interiorizado”. “As nossas características vão voltar ao de cima”, vincou. Fátima Fernandes é lojista e está tão positiva como Andréa Ferreira, mas considera que é preciso mais tempo e que nada será assim tão imediato. Convicta de que vai voltar a ser o que era, acredita que o mesmo há-de acontecer com quase toda a gente. “As pessoas não vão voltar a ser logo as mesmas mas penso que regressarão ao normal”, assinalou, explicando acreditar que, em termos de toques e cumprimentos, o mesmo se passará. “As pessoas já têm que estar conscientes de que tudo passou, mas acho que ainda vai demorar muito tempo”. Apesar do regresso à normalidade, a lojista considera é que a pandemia veio mostrar algo muito urgente, a que se deve dar atenção, daqui em diante: o olhar pelos outros. “Devia ajudar- -se mais o próximo, porque, com a pandemia, conseguimos ver que há muita gente com necessidades e a precisar de apoio e não lhe é dado”, explicou, lamentando, ainda assim, que quando tudo regresse ao dito normal, “cada um volta à sua vida”.
Digital deverá dividir a sociedade
As pestes ou pandemias podem parecer tempos de luto, mas será que aquilo que antes conhecíamos será ou não outra vez a normalidade? Carlos Afonso, sociólogo há 12 anos, diz, antes de mais, que “é muito arriscado, para já, fazer previsões”. Licenciado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) e doutorado na mesma área pela Universidade de Brasília, Carlos Afonso afirma assim, em primeiro, que uma das lições que a pandemia nos ensinou é que “é arriscado tomar uma posição em relação ao que quer que seja”. Docente no Instituto Politécnico de Bragança, onde lecciona sociologia do envelhecimento e socioantropolgia, o sociólogo considera que, no final disto, o mundo vai ser muito mais digitalizado, onde “estar ou não estar incluído na era digital será fonte de inclusão ou exclusão social”. Além disso, Carlos Afonso admite ainda que, por outro lado, “também teremos um mundo com maiores desigualdades sociais”, já que vários grupos foram mais lesados do que outros, ao longo deste período. “Temos profissionais que estiveram em teletrabalho e outros que foram mais expostos a riscos, sendo que daí surgirá um fenómeno de maior polarização política e um mundo mais dividido”, sublinhou. Bruno Pires, licenciado em Sociologia pela Universidade da Beira Interior (UBI), tem precisamente a mesma opinião. Para já, também considera que “é muito complicado prever se tudo vai voltar ao normal”, no entanto, em grande medida, está confiante que sim. À semelhança de Carlos Afonso também considera que as grandes mudanças se verificarão a nível laboral. “Acredito, que por exemplo, algumas empresas queiram aproveitar a experiência que tiveram com as novas redes e que poderão enquadrá-la nos seus procedimentos. A informática vai estar cada vez mais presente”, vincou.
Comportamentos deverão voltar a ser os mesmos mas prevêem-se novas realidades
A pandemia obrigou as pessoas a ficar em casa e a isolarem-se, mas o ser humano não está, tendencialmente, habituado ao distanciamento. Ainda que, ao longo de mais de um ano, o dito normal fosse e continue a ser o afastamento, Carlos Afonso considera que as pessoas vão ganhar outras rotinas, podendo perder algumas das que tinham. Antes de mais, o sociólogo afirma que, como grande parte da população esteve enclausurada, as pessoas estão desgastadas e, por isso, “vai haver dificuldade no que à adaptação aos novos cenários da actualidade”. Assinalando que as pessoas “vão sentir-se desorientadas”, diz acreditar que serão também “mais solidárias”, mas apenas dentro do próprio seio familiar. Já os fenómenos colectivos de solidariedade prevê que enfraqueçam. “Acho que vamos ter um mundo menos solidário. Houve movimentos espontâneos de solidariedade, as pessoas puxaram o sentimento de grupo, mas na contracorrente houve muitos protestos para desconfinar, pessoas que estavam preocupadas com a sua própria vida”, explicou o docente do IPB. Já Bruno Pires, neste momento em fase de doutoramento, em termos comportamentais, também não prevê que surjam grandes mudanças. “Inicialmente, acredito que haja algum receio, que será um bocado a ressaca desta crise de saúde pública, mas, conforme o tempo vá passando, acho que tudo ser vai regularizar”, vincou o jovem sociólogo, lembrando que, há cem anos, quando se deu a gripe espanhola, aconteceram fenómenos parecidos aos que se verificaram agora, nomeadamente o “abuso” das pessoas no desconfinamento, o que levou a que a doença se agravasse numa fase posterior. Para o sociólogo formado na UBI, dizer que as pessoas aprendem com factos históricos “é relativo”, porque a cultura a que estamos habituados, como, por exemplo, ir às compras para um shopping cheio de gente, “está de tal forma entranhada, que no arranque, pode ser complicado, mas depois há-de voltar- -se ao normal”, até porque “as pessoas estão fartas” e a “exaustão” leva a que mais facilmente venham para a rua e comecem até a “conviver normalmente”.
O povo caloroso à beira mar plantado
Habitualmente conotados como calorosos, os latinos são fortemente associados a demonstrações de afecto mais evidentes e a gostar de estar na rua ou no café a conviver. Além de estarmos limitados no que toca às rotinas diárias, a falta de toque foi das coisas que mais afectou os portugueses, que sonham com o “abraço colectivo”, em jeito de festejar o fim da pandemia. Para o sociólogo Carlos Afonso serão mantidas as “características” que definem o dito típico português, assim como a forma como lida com a sua família e amigos. Ainda assim, o docente do IPB admite que algo mudará. “Tantas vezes nos cumprimentámos com o punho e tanto nos distanciámos que esse comportamento vai gerar um padrão, vamos habituar-nos a estas novas formas de cumprimento”, assinalou, explicando acreditar que os beijos e abraços deverão apenas ficar para os mais próximos. Já Bruno Pires prefere não conotar o povo. Considera que “há uma multiplicidade enorme de pessoas dentro de uma sociedade” e, por isso, não é justo dizer-se que o povo X é assim ou assado. Quanto ao toque, aos beijos, aos apertos de mão e aos abraços, o sociólogo acredita que “está tudo relacionado com a responsabilidade social que cada cultura tem” e nesse aspecto há povos mais preocupados com o próximo.
Pandemia deve ensinar a cultivar a paciência
Em termos mentais, a pandemia pode, de facto mexer com a saúde das pessoas e, quando terminar, algumas delas podem precisar de ajuda médica. É esta a opinião de Manuel Guimarães, psiquiatra desde 2019. Assinalando que a forma de reacção é sempre individual, o médico lembrou que “há pessoas que têm estratégias que são mais adaptativas e há outras, ou por traços prévios ou por alguma dificuldade que este momento peculiar trouxe à vida normal, podem, de facto, desenvolver algumas sintomatologias, que necessitem de cuidados”. Assinalando que “os humanos são seres de comunidade”, o isolamento e privação de relacionamento e contacto como antes existia também pode deixar as pessoas, no futuro, mais tristes e angustiadas. Assim, ainda pouco ciente de se existirão mais ou até menos pessoas que, brevemente, procurem, de facto, ajuda, o psiquiatra considera que algo positivo que a pandemia trouxe, “se assim se pode dizer”, é o facto de se ter começado a falar mais abertamente de saúde mental. “Espero que se continue a falar porque é muito importante. Acho que falando mais disto vamos quebrar esta barreira de eles, nós e os outros. Ter um episódio de maior angústia ou desorganização é algo que pode surgir a qualquer pessoa”, vincou o médico. Manuel Guimarães também considera que esta é um boa altura para repensar e que antes mesmo da pandemia terminar, se quisermos estar mais sãos quando o fim for declarado, é importante perceber que, perante obstáculos com os quais não se contam, “às vezes é preciso dar um pequeno passo atrás para se conseguir arranjar esquemas e formas de acção alternativa”.
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