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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Fialho de Almeida: "A Dor"

  Quando o último orango deu origem ao primeiro  homem,  e esse homem  chegando à  virilidade  pôde  desfrutar a  grandeza  da  indomável  força  do  seu pai, domada pela bondade hilariante da sua luminosa inteligência, fez um dia a  si próprio esta pergunta:

— Em que difiro eu daquele carrancudo ser que não fala  senão por  guinchos e só por contrações grotescas se exprime, que para a alegria tem um  grito e um urro para a cólera, que vê morrer os filhos e fugir-lhe a esposa, sem  que o invada este desconsolado entorpecimento que eu sinto se não remedeio  o mal, e se para o que me cerca não encontro explicação?

Ele caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pela  nodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciços  das florestas  palpitantes de  ninhos,  pisando sem remorsos as corolas  mais  purpúreas e os cálices mais olorantes, e não vendo na vastidão opulenta e na  cromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais que a  rede em que descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suas  vítimas!

É das diferenças superficiais de estrutura  — de eu estar nu e ele vestido de  pêlos, de ele ter cauda e eu não, de os seus pés terem o feitio das suas mãos  preênsis, enquanto as minhas plantas se espalmam pela asperidão das marchas  a  que  as submeto —,  é das diferenças aparentes de  organismo  que nascem  estas discordâncias de natureza — nele a secura, a ferocidade, o egoísmo e a  inconsequência — em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance de  vistas que me perturba,  a previsão sagaz que me aconselha, e esta comoção  sem origem que se entorna  no meu corpo,  e me tortura ou me  entusiasma,  conforme provém de uma necessidade satisfeita, ou conforme provém de um  contratempo inesperado?

E como se  interrogava  em voz alta,  no meio dos castanheiros que as  trepadeiras vestiam em amplexos concupiscentes nas suas couraças de folhas,  viu surgir, dos rochedos negros em que pousava, o velho deus das selvas, alta  figura cingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos  e vasta  cabeleira de relvas verdejantes.

—  Abre a cabeça do teu filho — disse o deus.

O homem tomou o machado de sílex, chamou seu filho e fazendo-o ajoelhar  fendeu-lhe o crânio de um só golpe.

—  Essa caixa de osso que partiste é como a casca lenhosa de certos frutos  tropicais de  que te alimentas.  Partida  a  casca,  esses  frutos  revelam a  polpa  delicada, de extraordinário tecido e esquisito sabor.

—  Guarda  esse fruto —  disse  o deus.  E após,  com império:  —  Abre a  cabeça do teu pai!  — ordenou-lhe. O homem encontrou na toca do grande  baobabe  o velho orango que lhe  dera  o ser,  acocorado e trôpego,  roendo  talos. Deu-lhe as boas-noites, pediu-lhe a bênção como de costume, e, quando  o orango  lhe estendia  a  mão lanugenta,  sentiu na  cara  o gume  do machado  que lhe separava o crânio em duas metades.

—  Extrai-lhe o fruto — disse o deus, e o homem obedeceu.  

—  Bem — disse o outro.

E apontando a cada um dos cérebros desnudados:

—  Este é o cérebro do teu filho, este o do teu pai. Vês que é maior o do  pequeno que o do velho, não vês? Agora segue com atua unha estes arabescos  misteriosos que sulcam a polpa arrancada ao pequeno. Eles desenham o quer  que seja de legenda em hieróglifos: é a buena-dicha da espécie humana. São as circunvoluções,  que mal  se  esboçam no cérebro do orango e  que os  teus  levarão mais  e mais profunda e profusamente impressas.  Até o teu pai,  o  cérebro era alguma coisa tosca como o granito; de ti por diante ele lapida-se,  depura-se e modifica-se — é a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa  na luz, dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos  recessos dos instintos que herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à  utilidade,  pela  cultura  a  que tu  mesmo  os  forçarás.  Corta-os  ambos  em  pedaços e examina-os bem.  São da  mesma matéria,  têm idêntica  forma e  parecem do mesmo valor. Mas um é o ferro bruto que o mineiro destila do  filão recôndito, o outro é o ferro dotado de propriedades magnéticas. Podes  chamar  àqueles  carvão negro e  torvo,  se tiveres olhado neste diamante  lapidado, que cintila pelos engastes das tuas órbitas como se ardesse vívido na  coroa de um rei.

—  Compreendo! — disse o homem, pensativo.

—  Olha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. Cada polpa se me  afigura formada de lóbulos ou esferoides. É como um continente dividido em  nações pelos grandes  rios,  ou um  país repartido em distritos,  pelas grandes  estradas reais. Cada distrito é a potência que rege alguma determinada função  do corpo — são as bossas. Há a bossa da memória, a bossa da inteligência, a  bossa da luxúria, a da gula...

E,  apontando cada  proeminência, o  deus chamava-as pelos  seus nomes.  Algumas, que eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, ou  positivamente  não existiam'.  Em compensação,  o cérebro do bruto tinha  noutras um desenvolvimento colossal a respeito do pequeno, o deus fazia-as  comparar miudamente, uma a uma.

—  Todas as que presidem à direção de necessidades animais, instintos ou  apetites, são consideráveis, no teu pai — dizia ele ao homem. — Todas as que  se  referem  ao intelecto  são de  surpreendente  grandeza  no  teu filho.  Eis  porque buscas alguma coisa mais na vida que a repleção do teu estômago se  tens fome, que a ingestão de água corrente se tens sede, que o repouso se tens sono, e o coito brutal se a virilidade do teu sexo faz explosão ante a fêmea que  passa, serva obediente da tua crueldade ou dócil instrumento da tua lascívia!

Desse instinto,  que a  natureza institui  para  povoar os seus continentes  e os  seus mares, encher de rumor as florestas.

Faz notar Gratiolet que as circunvoluções dos mais rudes primatas são como  o esquema  das circunvoluções do cérebro humano e de cardumes  as águas,  tiraste tu  os  efeitos mais doces,  as sinfonias mais  límpidas,  os  mais castos  trenos e as mais cintilantes volatas.  

Chamaste-lhe  o amor,  e cristalizando o amor transfizeste-o na  adoração.  À  fêmea  escrava  quebraste as algemas,  não  consentindo que os seus pés  sangrassem, como os teus rudes pés de lutador, nos abrolhos da selva e nos  espinhos da maledicência. Da tua rude cabana fizeste um templo, da tua fé um  lampadário, uma cúpula da tua religião e da mulher o teu deus. No santuário  do teu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu de  esplendores místicos a família e a tua alma. Pela adoração domaste a tua força,  aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para  os  maus,  justiceiro,  generoso  e valente!  Estas qualidades deve-las à  tua  inteligência,  fluido  singular que emana  deste lóbulo  —  e  apontava —  e te  destacou dos teus antepassados. Por essa faculdade, dominarás os elementos e  os  animais,  serás rei e senhor,  porque o teu braço  obedecerá  sempre à  tua  cabeça. Cada geração receberá da anterior um patrimônio de ideias adquirido,  entregando  religiosamente  à  que  lhe suceder,  acrescentando pelos  seus  esforços  esse patrimônio sagrado e inviolável.  A tua  ambição será  satisfeita,  descansa.

—  E serei eterno? — disse o homem, tremendo àquela ideia.

—  Na história.

—  Na vida! Que me importará a história? Se poderei viver assim sempre, dominando mares  e povos,  e experimentando cá  dentro  esta  plenitude de seiva que extravasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias?

—  Não! — disse o deus com voz profunda. — Morrerás!

—  De que me serve então tudo isto? — exclamou ele, contraindo a face serena, que uma  graça  infinita  deificava.  E  erguendo os  braços desesperado caiu a chorar a mesquinhez da sua condição. O velho deus sorria. 

—  E qual a bossa que no cérebro do meu filho corresponde a este horrível veneno que a tua palavra me faz beber?

O deus apontou-lha, dizendo: 

—  Esse veneno chama-se a Dor e nunca envenenou o teu pai.

—  Faz-me então voltar à nativa bruteza dos meus — disse o homem. — Prefiro a inconsciência rude do orango, a essa inteligência que, iluminando-me a vida, me faz dela um ergástulo, e onde não poderei fazer um passo, bom ou mau que seja, sem que este tribunal interior,  incorruptível  e soberano, me detenha se vou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me julgar do que eu fizer e para me castigar a toda a hora. 

A voz do deus bradou: 

—  Jamais!

E desde então esse animal vaidoso, julgado o mais perfeito e o mais livre dos seres vivos,  tornou-se no miserável escravo  que eternamente geme sob  o chicote do seu verdugo — esse verdugo que se chama: o Pensamento. 

Fialho de Almeida - Contos (1881)

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