— Em que difiro eu daquele carrancudo ser que não fala senão por guinchos e só por contrações grotescas se exprime, que para a alegria tem um grito e um urro para a cólera, que vê morrer os filhos e fugir-lhe a esposa, sem que o invada este desconsolado entorpecimento que eu sinto se não remedeio o mal, e se para o que me cerca não encontro explicação?
Ele caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pela nodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciços das florestas palpitantes de ninhos, pisando sem remorsos as corolas mais purpúreas e os cálices mais olorantes, e não vendo na vastidão opulenta e na cromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais que a rede em que descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suas vítimas!
É das diferenças superficiais de estrutura — de eu estar nu e ele vestido de pêlos, de ele ter cauda e eu não, de os seus pés terem o feitio das suas mãos preênsis, enquanto as minhas plantas se espalmam pela asperidão das marchas a que as submeto —, é das diferenças aparentes de organismo que nascem estas discordâncias de natureza — nele a secura, a ferocidade, o egoísmo e a inconsequência — em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance de vistas que me perturba, a previsão sagaz que me aconselha, e esta comoção sem origem que se entorna no meu corpo, e me tortura ou me entusiasma, conforme provém de uma necessidade satisfeita, ou conforme provém de um contratempo inesperado?
E como se interrogava em voz alta, no meio dos castanheiros que as trepadeiras vestiam em amplexos concupiscentes nas suas couraças de folhas, viu surgir, dos rochedos negros em que pousava, o velho deus das selvas, alta figura cingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos e vasta cabeleira de relvas verdejantes.
— Abre a cabeça do teu filho — disse o deus.
O homem tomou o machado de sílex, chamou seu filho e fazendo-o ajoelhar fendeu-lhe o crânio de um só golpe.
— Essa caixa de osso que partiste é como a casca lenhosa de certos frutos tropicais de que te alimentas. Partida a casca, esses frutos revelam a polpa delicada, de extraordinário tecido e esquisito sabor.
— Guarda esse fruto — disse o deus. E após, com império: — Abre a cabeça do teu pai! — ordenou-lhe. O homem encontrou na toca do grande baobabe o velho orango que lhe dera o ser, acocorado e trôpego, roendo talos. Deu-lhe as boas-noites, pediu-lhe a bênção como de costume, e, quando o orango lhe estendia a mão lanugenta, sentiu na cara o gume do machado que lhe separava o crânio em duas metades.
— Extrai-lhe o fruto — disse o deus, e o homem obedeceu.
— Bem — disse o outro.
E apontando a cada um dos cérebros desnudados:
— Este é o cérebro do teu filho, este o do teu pai. Vês que é maior o do pequeno que o do velho, não vês? Agora segue com atua unha estes arabescos misteriosos que sulcam a polpa arrancada ao pequeno. Eles desenham o quer que seja de legenda em hieróglifos: é a buena-dicha da espécie humana. São as circunvoluções, que mal se esboçam no cérebro do orango e que os teus levarão mais e mais profunda e profusamente impressas. Até o teu pai, o cérebro era alguma coisa tosca como o granito; de ti por diante ele lapida-se, depura-se e modifica-se — é a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa na luz, dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos recessos dos instintos que herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à utilidade, pela cultura a que tu mesmo os forçarás. Corta-os ambos em pedaços e examina-os bem. São da mesma matéria, têm idêntica forma e parecem do mesmo valor. Mas um é o ferro bruto que o mineiro destila do filão recôndito, o outro é o ferro dotado de propriedades magnéticas. Podes chamar àqueles carvão negro e torvo, se tiveres olhado neste diamante lapidado, que cintila pelos engastes das tuas órbitas como se ardesse vívido na coroa de um rei.
— Compreendo! — disse o homem, pensativo.
— Olha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. Cada polpa se me afigura formada de lóbulos ou esferoides. É como um continente dividido em nações pelos grandes rios, ou um país repartido em distritos, pelas grandes estradas reais. Cada distrito é a potência que rege alguma determinada função do corpo — são as bossas. Há a bossa da memória, a bossa da inteligência, a bossa da luxúria, a da gula...
E, apontando cada proeminência, o deus chamava-as pelos seus nomes. Algumas, que eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, ou positivamente não existiam'. Em compensação, o cérebro do bruto tinha noutras um desenvolvimento colossal a respeito do pequeno, o deus fazia-as comparar miudamente, uma a uma.
— Todas as que presidem à direção de necessidades animais, instintos ou apetites, são consideráveis, no teu pai — dizia ele ao homem. — Todas as que se referem ao intelecto são de surpreendente grandeza no teu filho. Eis porque buscas alguma coisa mais na vida que a repleção do teu estômago se tens fome, que a ingestão de água corrente se tens sede, que o repouso se tens sono, e o coito brutal se a virilidade do teu sexo faz explosão ante a fêmea que passa, serva obediente da tua crueldade ou dócil instrumento da tua lascívia!
Desse instinto, que a natureza institui para povoar os seus continentes e os seus mares, encher de rumor as florestas.
Faz notar Gratiolet que as circunvoluções dos mais rudes primatas são como o esquema das circunvoluções do cérebro humano e de cardumes as águas, tiraste tu os efeitos mais doces, as sinfonias mais límpidas, os mais castos trenos e as mais cintilantes volatas.
Chamaste-lhe o amor, e cristalizando o amor transfizeste-o na adoração. À fêmea escrava quebraste as algemas, não consentindo que os seus pés sangrassem, como os teus rudes pés de lutador, nos abrolhos da selva e nos espinhos da maledicência. Da tua rude cabana fizeste um templo, da tua fé um lampadário, uma cúpula da tua religião e da mulher o teu deus. No santuário do teu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu de esplendores místicos a família e a tua alma. Pela adoração domaste a tua força, aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para os maus, justiceiro, generoso e valente! Estas qualidades deve-las à tua inteligência, fluido singular que emana deste lóbulo — e apontava — e te destacou dos teus antepassados. Por essa faculdade, dominarás os elementos e os animais, serás rei e senhor, porque o teu braço obedecerá sempre à tua cabeça. Cada geração receberá da anterior um patrimônio de ideias adquirido, entregando religiosamente à que lhe suceder, acrescentando pelos seus esforços esse patrimônio sagrado e inviolável. A tua ambição será satisfeita, descansa.
— E serei eterno? — disse o homem, tremendo àquela ideia.
— Na história.
— Na vida! Que me importará a história? Se poderei viver assim sempre, dominando mares e povos, e experimentando cá dentro esta plenitude de seiva que extravasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias?
— Não! — disse o deus com voz profunda. — Morrerás!
— De que me serve então tudo isto? — exclamou ele, contraindo a face serena, que uma graça infinita deificava. E erguendo os braços desesperado caiu a chorar a mesquinhez da sua condição. O velho deus sorria.
— E qual a bossa que no cérebro do meu filho corresponde a este horrível veneno que a tua palavra me faz beber?
O deus apontou-lha, dizendo:
— Esse veneno chama-se a Dor e nunca envenenou o teu pai.
— Faz-me então voltar à nativa bruteza dos meus — disse o homem. — Prefiro a inconsciência rude do orango, a essa inteligência que, iluminando-me a vida, me faz dela um ergástulo, e onde não poderei fazer um passo, bom ou mau que seja, sem que este tribunal interior, incorruptível e soberano, me detenha se vou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me julgar do que eu fizer e para me castigar a toda a hora.
A voz do deus bradou:
— Jamais!
E desde então esse animal vaidoso, julgado o mais perfeito e o mais livre dos seres vivos, tornou-se no miserável escravo que eternamente geme sob o chicote do seu verdugo — esse verdugo que se chama: o Pensamento.
Fialho de Almeida - Contos (1881)
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