“Nem pela palavra, nem pela fotografia, podes avaliar, leitor, o que aquilo é. Só visto”1
A serra de Poiares é uma gigantesca muralha intransponível quartzítica provinda do período Ordovícico, que ladeia o rio Douro, e que aqui se encontra arribada por mor da erosão diferencial e de movimentações tectónicas hercínicas que originaram um extenso sinclinal. Dois pontos notáveis encontram-se nesta formidável muralha: o panorama do Penedo Durão e esta espantosa ribeira do Mosteiro na garganta do Candendo que deveria estar inserida no concurso das sete maravilhas naturais de Portugal.
A serra de Poiares é uma gigantesca muralha intransponível quartzítica provinda do período Ordovícico, que ladeia o rio Douro, e que aqui se encontra arribada por mor da erosão diferencial e de movimentações tectónicas hercínicas que originaram um extenso sinclinal. Dois pontos notáveis encontram-se nesta formidável muralha: o panorama do Penedo Durão e esta espantosa ribeira do Mosteiro na garganta do Candendo que deveria estar inserida no concurso das sete maravilhas naturais de Portugal.
Eu sabia que este colosso teria que ser cortado transversalmente por uma linha de água, que desaguaria no rio Douro. Numa das nossas digressões e após nos terem dito que a Ribeira do Mosteiro era um local “bonito” decidi descobrir o local do talhe. Segui na EN221, a partir de Barca de Alva (*) no sentido de Freixo de Espada à Cinta e após meia dúzia de km cortamos à esquerda por coleante estrada municipal.
É um assombramento o que se vê, local penhascoso e medonho, emparedado entre os gigantescos penedos quartzíticos e a garganta estreita e profunda da ribeira do Mosteiro.
A princípio ainda encontramos sinais de civilização. Junto às margens uma ou outra casita, as copas escuras das laranjeiras e limoeiros, que juntamente com as nespereiras, diopireiros, amendoais e olivais fazem desta área um jardim mediterrânico.
Mas depois o natural subjuga-nos de emoção e racionalidade (para nós muito geológica), a estrada passa então a ser cortada no próprio rochedo junto a ribeira que em baixo, se contorce em pequenas cascatas sussurrantes. Estou sempre a parar naquela cenografia impressiva, a solidão é total.
O espesso corredor ripícola é um santuário natural: ali um Pêgo-azul, acolá melros, aquele não conhecemos, plana altaneiro um grifo na companhia de outras aves ripícolas (Águia-real ou Bufo-real?), entre amieiros um brava agitação – talvez uma lontra.
Aparecem-nos no meio de uma apoteose de despenhadeiros abruptos no sítio das Alminhas um dos mais belos geomonumentos que já vi.
Espantosas dobras em quartzitos
Nos quartzítos ocorrem espectaculares dobras de eixos sub-horizontais com direcção geral E-W. As dobras são observáveis a várias escalas. Algumas delas atingem dezenas de metros, jazem no fundo do despenhadeiro como animais selvagens convulsivos e doridos agitados por manifestações tectónicas da Terra – poder gigantesco que soergue as montanhas.
Há quem acredite que o fraguedo contorcido é obra de Deus ou do Diabo. O inesperado surge de novo na margem esquerda da ribeira, a trepar o afloramento, deparamos com a íngreme Calçada de Alpajares, de construção tão arrojada e inóspita que o povo diz ser obra também do diabo. É traçada em ziguezague e feita de duros quartzítos, em elegantes lacetes. Para controlar o Demo aquela simples alminha alumia-nos os caminhos. Tudo isto é singular em Portugal: por ser selvagem, belo, rude, científico e esotérico. O vale da ribeira do Mosteiro constitui um dos ex-libris nacionais em termos geológicos, paisagísticos e ecológicos.
A Calçada de Alpajares reclama uma caminhada, existe um caminho pedestre certificado, mas é tarde e chuvisca. Voltaremos num outro dia.
E aqui estamos de novo passado uns meses
Diz a lenda que”.. em tempos antigos era tudo por estes sítios barrancos e precipícios medonhos, um dado cavaleiro vindo dos lados de Barca de Alva em noite de tempestade, chegou à margem da Ribeira do Mosteiro que ia de mar a monte. Dada a necessidade imperiosa de atravessar o esbravejante curso de água suspirou aflito: Valha-me Deus ou o Diabo. Foi Satanás que apareceu ao chamamento e disse: se me deres a tua alma, antes que cante o galo preto, te darei uma ponte e uma estrada para que possas seguir a tua viagem sem o mínimo perigo. O cavaleiro aceitou e o infernal pedreiro e seus acólitos atarefaram-se na arrojada construção de uma calçada entre os fraguedos intratáveis, distribuindo 18 elegantes lancetes com lajes sólidas de quartzito, ao som de estridentes cantares de Bruxas que no terreiro se reuniram para festejar a conquista de mais uma alma. Eis que canta o galo três vezes quando apenas faltava colocar as duas últimas pedras da ponte. Liberto do seu compromisso, o viajante prosseguiu a sua jornada e o Diabo enraivecido, desapareceu com os seus ajudantes através de uma bocarra que no momento se abriu entre os penhascos1”.
Aqui estamos de novo nas Alminhas, de novo, os quarztiztos dobrados, parece que estão em movimento e têm vida, talvez sejam ainda reminiscências da captura do Diabo. Onde acaba a História e começa a lenda?
Local extranatural (por tão natural ser) que reclama de nós o seu percurso; a calçada serpenteia, coleante, com forma réptil, a água da ribeira acomete endemoninhada contra as duras rochas que a emparedam. A vida saltita e sussurra por toda a banda.
É tempo de aventura. É tempo de solidão. O verdadeiro viajante viaja só ou em companhia dos seus fantasmas! A Calçada de Alpajares é o local ideal para fingir que desaparecemos, talvez nos assoma o demo ou pelo menos uma bruxa. É uma viagem memorável, num cenário que desperta simultaneamente a aquietação e a inquietação- paisagem própria para um profeta ou para um salteador, no dizer de Junqueiro, eu sou uma excepção porque nem sou uma coisa nem outra.
Caminhamos na vertente o do Picão da Ana, grande penedo cónico, até ao fundo do vale, ladeado por bosque ribeirinho dominado pelo amieiro, a água límpida rumoreja, após passar o pontão, sucedem-se palas de quartzitos, que poderão ter sido habitadas desde o Paleolítico Superior. O xisto de tom acetinado intercala com o quartzito acinzentado por vezes ferruginoso, “sangue” da voragem do tempo, uma ave de grande porte plana altaneira. Matos: ralos de giesta, piorno, azedas, rosmaninho e cornalheiras, camadas de rocha empilhada como livros gigantescos. O xisto agora domina, paisagem mais aberta, a ribeira mal se vê, o calor aperta; agora arriba para Sul. Ao longe a crista vertical de quartzito conhecido como o “Muro da Abalona”, o monte boleado do Castro de São Paulito – é para lá que vamos, dois pombais e aquelas rochas gigantescas sempre a clamarem a minha presença – como isto é belo, repito até à exaustão.
No cimo de um espigão sobranceiro entre as ribeiras do Mosteiro e da Brita, o Castro de São Paulito, restos de muros derribados em fiadas de muralhas, a vegetação é tanta que não vejo vestígios arqueológicos, li algures que aqui foram efectuadas sondagens que descobriram material do calcolítico e Bronze Final, que foi povoado romanizado, como se constata pelo achado de uma ara dedicada a I(ovi) o(ptimo) M(aximo), estamos obviamente a falar do líder dos deuses romanos-Jupíter. E terá sido, na verdade, a excelente implantação estratégica deste castro, que assenta num dos poucos acessos do rio Douro ao Planalto Transmontano, que subjazeu à sua construção; é assim natural que a calçada conflua para o castro. No seio desta grandiosa paisagem, tudo é único e singular.
Partimos, então caros leitores, do castro de São Paulino sem vermos as suas enigmáticas sepulturas rupestres e descemos pela famosa ladeira, classificada em 1977 como “Imóvel de Interesse Público”; é conhecida como “Calçada de Alpajares”, ou “Calçada dos Mouros”, ou “Calçada do Diabo”. É para alguns de origem romana, para outros tem origem medieval. Actualmente, remanescem apenas alguns dos seus troços originais, visíveis perto da convergência das ribeiras da Brita e do Mosteiro, a partir da qual se prolonga pela encosta de Alpajares de forma ziguezagueante, estruturada ao longo de cerca de oitocentos metros em lajes afeiçoadas em xisto e seixos de pequena dimensão e escalonada em degraus. Uniria, talvez, o Castelo de Alba a Poiares, passando pelo castro de São Paulino.
Descanso num pequeno abrigo, escuto o suave raspar da água no leito da ribeira da Brita, alguns láparos saltitam, as andorinhas, mensageiras da Primavera, volteiam; com cansaço, quase adormeço e sonho. Nas quebras da rocha, aranhas dedicadas a fiação e a tecelagem são senhoras do seu destino. A parede está riscada de actividade recente humana, de repente consigo visionar sob todos os hieróglifos contemporâneos a figura de um animal vermelho, muito estilizado. Há muito que eu procurava neste passeio as “Pinturas rupestres da Fraga do Gato”!
A cabeça tem o focinho arredondado e não apresenta detalhes de narinas, orelhas ou chifres; o corpo é igualmente arredondado e com os membros apenas esboçados, o que leva alguns a pensar que se trata de uma lontra, gato ou animal semelhante. Por baixo dessa figura parece uma pintura a preta que parece representar uma figura de um bufo e que segundo António Martinho Baptista, “ambos têm carácter absolutamente original no contexto da arte pré-histórica ibérica ao ar livre”, são de difícil atribuição cronológica, mas há quem as atribua como pertencentes ao Paleolítico Superior. É urgente a preservação da Fraga do Gato, inclusive com a colocação de gradeamento apropriado e um painel explicativo, senão por ignorância ou má fé, os homens contemporâneos degradarão este lembrança pré histórica. Nos recessos das anfractuosidades das duras rochas, outros enigmas existem à espera de olhos argutos; sei que também já é conhecido por parte dos arqueólogos figuras abstracto-simbólicas, pintadas em tom ocre- situa-se a meia encosta na margem esquerda da Ribeira. Adiante, o lusco-fusco não tarda.
Continuamos a descida até à foz da fugaz ribeira da Brita, quando esta invade a ribeira do Mosteiro (alguém me sabe explicar a origem deste nome dado que não há notícia de qualquer convento ou vida monacal naquela área?)
Depois de atravessar a ribeira do Mosteiro, tento a salto destemido passar por aquela parede abrupta do desfiladeiro, pouparia imenso tempo até ao carro. Mas a encosta é para mim intransponível, mesmo após algumas tentativas temerárias e desvairadas. Decido continuar pela carreira mais fácil e longa, tenho fome: como laranjas e azedas, tenho sede: bebo água da ribeira. Chego por fim á estrada de alcatrão, até ao veículo é ainda meia hora, decerto acharei boleia. Mas nem vivalma alma por ali passou. Próxima estava a noite. O grandioso espectáculo da ribeira do Mosteiro, quando corta magistralmente o sinclinal quartzítico da Serra é dotado de uma força extratemporal e ambivalente, é exemplo singularíssimo do belo horrível.
Simboliza o tempo, o espelho das nossas pulsões profundas, dos nossos instintos domesticados ou selvagens e ainda o Homem mortal, na sua pluriformidade nascido da Terra que aqui a acomete com destreza e medo; é ainda o mundo inconvertível e imortal, a natureza (em consanguinidade) na sua diáfana beleza e no seu endiabrado sofrimento; aquela topografia torturada é uma completa cosmogonia que aqui irrompe e se assiste.
Todo o português digno deste nome deveria, quando tiver oportunidade, apresto físico e saúde, percorrer este carreiro inesquecível. A foz da Ribeira do Mosteiro é para o Turismo de Portugal uma das suas maravilhas naturais.
Fonte de Informação:
– Rede de Percursos da Natureza (Vale da Ribeira do Mosteiro)
– Leitores de paisagem locais.
- Guia de Portugal- Trás-os-Montes e Alto-Douro,II-Lamego, Bragança e Miranda. (5 volume) editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, 1970-1.
- Informação oral de António Martinho Baptista
Créditos fotográficos: As fotografias da Fraga do Gato são de António Martinho Baptista e a de conjunto é do Aníbal Gonçalves do blog Descobrir Freixo de Espada a Cinta.
Original AQUI
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