Quantos destes poderiam ter sido os meninos do Soeiro a caminho dos esteiros, quando bem cedo de manhã caminhavam de bata azul clara, com a lousa e os livros da terceira classe, dentro de um pequeno saco de serapilheira, improvisado com uma longa alça que enfiavam por entre um dos braços, a caminho da escola.
Embora os miúdos dos esteiros, nunca tenham frequentado a escola, a condição humilde em que alguns do meu tempo viviam era em quase tudo muito semelhante.
João era um deles e nesse dia, já um pouco frio para o final do mês de Outubro, sentia um redobrado conforto, por levar calçados uns socos novos que a mãe lhe tinha comprado, em vez daquelas sandálias plásticas, já gastas pelas intermináveis correrias de Verão, e agora fora de tempo pelo frio que já se fazia sentir.
Ele gostava mesmo daqueles socos. Faziam-no sentir mais importante, e muito mais, depois que o pai lhes colocou por baixo umas tiras de pneu de motorizada que foi pedir ao Barril, para evitar o barulho , principalmente no soalho da sala na escola. Ficaram bem lustrosos e encebadinhos, com cebo de primeira qualidade que tinha sido oferecido pelo Xico Cobrinha, dono de um dos talhos na Praça do Mercado, ao seu pai. Depois em casa só teve que amaçar toda aquela gordura, com um martelo em cima de uma pedra que havia ao lado da porta, fazer uma bola e passar pelos socos. Assim o cabedal se tornava impermeável, e não havia nenhum par de sapatos Campeão Português que se comparassem. João só não entendia porque é que o pai usava o cebo derretido á lareira, para por nas mãos a cobrirem os golpes que o cimento e o frio provocavam...ainda hoje, passado meio século não entende.
E assim de socos anti barulho nos pés, saco ao ombro, atravessou o poulo, passou ao lado do bairro Santa Isabel, com aquelas casas amareladas e lineares, todas iguais onde alguns dos seus amigos residiam. Sorriu quando passou ao lado da casa do professor Bi. Nunca mais esqueceu a bondade e generosidade da sua esposa que lhe ofereceu a bata azul clara que ora levava vestida. A escola estava logo ali ao virar da esquina.
Já dentro da sala, e todos sentados nos seus lugares, o professor dava a ordem para cantar o hino nacional e de seguida tinha lugar a revista higiénica por parte do professor, principalmente ás mãos e aos ouvidos.
Normalmente eram três longas horas, as que se seguiam por entre redações ditados, leitura dos mapas e com o intervalo pelo meio, mas o melhor estava para vir.
Ainda antes do meio dia, o professor avisava que os alunos da cantina podiam sair.
E era vê-los a correr a rua do Loreto abaixo, atravessar a Alexandre Herculano em direção á Praça da Sé, seguindo pela Abílio Beça até á esquina da Igreja da Misericórdia. Depois sempre a correr iam em direção á Igreja de S. Clara e viravam á direita, chegando ao destino onde se situava a cantina da escola do Magistério.
Cerca de trinta garotos de várias escolas e com a barriga a dar horas, esperavam pela chamada e quando era ditado o seu nome, furavam por entre os demais, ansiosos e ainda ofegantes pela correria, entravam como se à sua espera estivesse o melhor dos banquetes... e estava na realidade.
João nunca mais esqueceu o conforto daquela sala bem quentinha, onde era servida sopa de massa com grão de bico, em pratos limpos com um carolo de pão, servido pelas estagiárias. Só nunca gostou de ser obrigado a engolir a porção de uma colher de sopa de óleo de fígado de bacalhau. Sabia mesmo mal.
Mas valera a pena o sacrifício, porque agora já de novo na rua se sentia de barriga cheia e pronto para dar uma voltinha no carrossel e no escorrega do jardim da Câmara , logo ali ao lado...afinal era a sua Disneylândia.
Era hora de regressar á escola desta vez mais devagar. Mas antes nunca deixava de ir á montra do Pronto a vestir do Castro para nos vidros laterais fazer poses ondes os rostos apareciam completamente distorcidos e sorriam e assim eram felizes com tão pouco..
Coisas de garotos, destes garotos humildes, dos mais humildes da classe, que atravessavam a cidade a correr, por um prato se sopa ...a sopa que em casa poderia talvez não faltar, mas que o preço dela, daria para aliviar um pouco o orçamento familiar.
Estes garotos existiram, não são ficção, e hoje homens já com certa idade, sabem que passados 50 anos estas situações ainda existem...infelizmente.
Embora os miúdos dos esteiros, nunca tenham frequentado a escola, a condição humilde em que alguns do meu tempo viviam era em quase tudo muito semelhante.
João era um deles e nesse dia, já um pouco frio para o final do mês de Outubro, sentia um redobrado conforto, por levar calçados uns socos novos que a mãe lhe tinha comprado, em vez daquelas sandálias plásticas, já gastas pelas intermináveis correrias de Verão, e agora fora de tempo pelo frio que já se fazia sentir.
Ele gostava mesmo daqueles socos. Faziam-no sentir mais importante, e muito mais, depois que o pai lhes colocou por baixo umas tiras de pneu de motorizada que foi pedir ao Barril, para evitar o barulho , principalmente no soalho da sala na escola. Ficaram bem lustrosos e encebadinhos, com cebo de primeira qualidade que tinha sido oferecido pelo Xico Cobrinha, dono de um dos talhos na Praça do Mercado, ao seu pai. Depois em casa só teve que amaçar toda aquela gordura, com um martelo em cima de uma pedra que havia ao lado da porta, fazer uma bola e passar pelos socos. Assim o cabedal se tornava impermeável, e não havia nenhum par de sapatos Campeão Português que se comparassem. João só não entendia porque é que o pai usava o cebo derretido á lareira, para por nas mãos a cobrirem os golpes que o cimento e o frio provocavam...ainda hoje, passado meio século não entende.
E assim de socos anti barulho nos pés, saco ao ombro, atravessou o poulo, passou ao lado do bairro Santa Isabel, com aquelas casas amareladas e lineares, todas iguais onde alguns dos seus amigos residiam. Sorriu quando passou ao lado da casa do professor Bi. Nunca mais esqueceu a bondade e generosidade da sua esposa que lhe ofereceu a bata azul clara que ora levava vestida. A escola estava logo ali ao virar da esquina.
Já dentro da sala, e todos sentados nos seus lugares, o professor dava a ordem para cantar o hino nacional e de seguida tinha lugar a revista higiénica por parte do professor, principalmente ás mãos e aos ouvidos.
Normalmente eram três longas horas, as que se seguiam por entre redações ditados, leitura dos mapas e com o intervalo pelo meio, mas o melhor estava para vir.
Ainda antes do meio dia, o professor avisava que os alunos da cantina podiam sair.
E era vê-los a correr a rua do Loreto abaixo, atravessar a Alexandre Herculano em direção á Praça da Sé, seguindo pela Abílio Beça até á esquina da Igreja da Misericórdia. Depois sempre a correr iam em direção á Igreja de S. Clara e viravam á direita, chegando ao destino onde se situava a cantina da escola do Magistério.
Cerca de trinta garotos de várias escolas e com a barriga a dar horas, esperavam pela chamada e quando era ditado o seu nome, furavam por entre os demais, ansiosos e ainda ofegantes pela correria, entravam como se à sua espera estivesse o melhor dos banquetes... e estava na realidade.
João nunca mais esqueceu o conforto daquela sala bem quentinha, onde era servida sopa de massa com grão de bico, em pratos limpos com um carolo de pão, servido pelas estagiárias. Só nunca gostou de ser obrigado a engolir a porção de uma colher de sopa de óleo de fígado de bacalhau. Sabia mesmo mal.
Mas valera a pena o sacrifício, porque agora já de novo na rua se sentia de barriga cheia e pronto para dar uma voltinha no carrossel e no escorrega do jardim da Câmara , logo ali ao lado...afinal era a sua Disneylândia.
Era hora de regressar á escola desta vez mais devagar. Mas antes nunca deixava de ir á montra do Pronto a vestir do Castro para nos vidros laterais fazer poses ondes os rostos apareciam completamente distorcidos e sorriam e assim eram felizes com tão pouco..
Coisas de garotos, destes garotos humildes, dos mais humildes da classe, que atravessavam a cidade a correr, por um prato se sopa ...a sopa que em casa poderia talvez não faltar, mas que o preço dela, daria para aliviar um pouco o orçamento familiar.
Estes garotos existiram, não são ficção, e hoje homens já com certa idade, sabem que passados 50 anos estas situações ainda existem...infelizmente.
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