quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Comboios, Autocarros de Carreira e Automóveis antigos

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")



Já escrevi umas quantas crónicas e embora não saiba quantas, sei que o tema, transportes, ainda não foi abordado.
Claro que eu não sou entendido nesta área e vou apenas escrever as minhas lembranças de garoto quando o panorama se apresentava num princípio que eu considerava épico.
Comecemos pelo comboio.
Nasci no nº 70 da Caleja do Forte, mas foi mesmo ali, não no Hospital e a nossa casa distava uns cinquenta metros da linha que se apresentava como uma ameaça para a garotada, assim pensava a minha mãe e um delírio e uma fonte de aventuras para nós. Quando pequeno só passavam comboios de locomotiva ofegante e com umas quantas carruagens que nos faziam delirar sempre que passavam e os passageiros nos saudavam com alegria e nós nos concentrávamos todos nos restos de uma figueira que já só apresentava uns ramos esparsos na base e onde acampávamos com uns latos velhos e uns paus com os quais fazíamos um escarcéu correspondidos pelos passageiros que adoravam a recepção por inusitada em fim de jornada.
Nos tempos antes da Escola quando o tempo não tinha tempo e as laranjadas do Snr. Daniel Gonçalves eram um luxo, fazíamos uma vigia constante junto às tabernas do Francês e da Senhora Branca à cata das cápsulas que fechavam as garrafas e que eram a ferramenta ideal para jogarmos às "Caricas".
O jogo consistia em bater com as cápsulas na parede e tentar que no retorno a nossa se "encavalitasse" em cima da do adversário, meta essa que dava direito a ficarmos na posse da do contendor. Ora era sabido que se a carica estivesse achatada era muito mais fácil conseguir os intentos previamente designados. Assim à hora do "Misto" que no Verão passava ainda com luz do dia íamos para a linha em frente à casa do Pranchadas e colocávamos as "latinhas" em cima dos carris e esperávamos que o comboio passasse para logo após fazermos a coleta das "chaplas" que nós guardávamos ciosamente para os desafios seguintes. O peso do comboio alisava-as de tal forma que pareciam passadas a ferro.
Havia um personagem que ainda hoje é para mim o estereótipo do Capataz, mal-encarado, tiranete e presumido. Chamavam -lhe o Miranda e que me perdoem os seus familiares e descendentes, mas foi o adulto que mais pavor me meteu, não porque me haja feito mal algum, (também lhe fugia a sete pés) mas sim pela sua atitude para com todos os que passavam na linha, que eram muitos e de todas as idades e condição. Ele invocava sempre a lei da proibição de passagem que, por defeito não era possível cumprir. A linha passava no centro da cidade e as casas estava à sua ilharga sem outra proteção que não fosse o cuidado das pessoas. E o Miranda como homem de poder andava na vagoneta e nós admirados, comentávamos o facto de ele nunca ter esbarrado no comboio, já que tripulava aquela coisa na única linha que havia e sendo aquilo muito pesado perguntávamo-nos como ele fazia para deixar passar o comboio.
Ainda hoje me pergunto como ele conseguia tal façanha! Mas a concretização da glória do comboio só se consumava com a entrada triunfal na Estação.
Após ultrapassar a passagem de nível a seguir à Moagem Mariano, onde um homem levantava uma lanterna com luz verde, entrava ele resfolegando brandamente como cavalo cansado após grande corrida. No cais, onde o chefe da Estação esperava a sua chegada, havia sorrisos na boca daqueles que pacientemente esperavam pelos familiares ou outros que o comboio, qual amigo protetor devolvia ao convívio dos seus ou simplesmente largava para desfrutarem da hospitalidade da Cidade.
E nós, a garotada, deslumbrados, pensávamos quão bela havia sido a aventura daqueles que da janela da sua carruagem haviam passado maravilhados montes e vales, pontes e outras estações floridas, que como a nossa tinham rosas, cravos e tulipas para lhes adoçarem a viagem que era coisa para contarem.
Recordo com nostalgia o pessoal ferroviário que marcou positivamente a minha infância. Omitindo tantos de quem esqueci o nome, são imagens fortes na minha lembrança, o Senhor Castro chefe da Estação e o Tio Correia o Ralha, que milhentas vezes nos entregou as encomendas, que recolhíamos da sua mão acompanhadas de um sorriso e um dixote que era sempre ralhado.
Homens do meu tempo de criança na qual eles tiveram uma ação educativa de relevo. 
Para além da fantasia que fervilhava em nós, entre a aventura e o perigo, a realidade era categórica, quando com o passar do tempo, crescemos e vimos com nitidez o bem que o comboio trazia às gentes da cidade e região.
A Escola era logo ali do outro lado das traseiras e ali se consumou um tempo de alegria e crescimento envolto na magia que a convivência de miúdos e adultos produziu e como um sonho se findou.
O esforço dos que trouxeram o comboio até Bragança e nos deram um exemplo de solidariedade e progresso não foi respeitado por quem num tempo de estúpido convencimento suprimiu por razões economicistas um elemento de solidificação e elevação integrante do progresso das populações. Afinal a C P não está mais rica hoje do que antes e nós não contribuímos para "a ruína" da nação.
Esta minha constatação está nos antípodas das recordações douradas de um tempo de certeza e fruição que me foi dado viver pelos homens e mulheres de um tempo sem C.E.E..
(1ª parte da crónica dos transportes) 





Bragança 08/07/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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