Em tempos recuados, era o despertar da Primavera que animava a vida nas aldeias com muitas labutas e alguns festejos e que atingiam o seu auge no pino do Verão. Por isso, o povo diz para alguns que fogem do trabalho ou o encaram às arrecuas: é maçado como o Sol de Agosto! Maçado como sinónimo de preguiçoso e indolente.
Os lavradores que acabavam a decrua no mês de Fevereiro, quase nem respiravam e botavam-se, com a junta de «beis», de machos e os mais pobres com a de burros, na tarefa da entravessa das encostas e fraguedos, para, a seguir, atacarem as baixas e as regotas e, por fim, o amanho das terras mais mimosas das curtinhas para o «renobo». Renovo que começava pelas batatas e pelo milho.
Mas, passado o tempo do Entrudo e do repartir o burro, com um grande embude a servir de megafone para se ouvir bem em toda a aldeia e às vezes o diálogo e os insultos eram com os rapazes dos Eixes, do lado de lá do rio. Os do lado de lá do rio cavavam trincheiras no Sangil, na esperança que os seus mortos, ali ao pé, os ajudassem. Os de cá punham-se a jeito na eira de meu pai ou nos penhascos das Fragas da Fervença. Separava as duas «artilharias» o rio Rabaçal que aproveitava para lavar as palavras com mais surro ou mais pestilentas, nas suas claras águas, de forma que ao chegar à outra banda pouco mais mal já havia do que um espinotear dos mais fanfarrões. Havia sempre dois vencedores: os de Chelas que se julgavam sempre mais educados e cavalheiros e alguns dos Eixes que se orgulhavam da linguagem mais desbocada e intimidativa que engasgava os de cá. No dia seguinte podia haver alguma palavra mais sentida mas não passava disso.
Os preparativos para a Páscoa e Pascoela começavam antes da quarentena quaresmal. Já se tinha marcado o frango ou o galo, o peru ou a perua e, para os mais abastados o cordeiro ou, raramente, o cabrito para serem sacrificados aos deuses das barrigas. Barrigas que durante o ano tinham de ser equilibradas, não fosse o diabo tecê-las e faltar pão ou batatas em Maio. Por isso o dito popular lembra: Guarda comida para Maio e lenha para Abril, não sabes o tempo que há-de vir. Quem não se lembra de este ou aquele lavrador segar uma embelga de pão aos tantos de Maio, encaminhá-la para a eira e rebimbar-lhe os malhos, separando o colmo da palha para bancelhos. O taleigo de trigo seguia no burro para à azenha, para ainda ao fim da tarde se cozer e à noite o pão chegar às barrigas vazias?
Mas, neste tempo pascal, celebrado há milhares de anos como uma passagem, de um tempo de míngua e para esquecer, para um tempo de abundância e de generosidade dos deuses, ou seja de um tempo inferior, para um superior segundo as congeminações mitológicas dos clássicos, em que tudo se agita. Agita-se a alma depois do corpo passar pela derrisca e porque não há celebrações sem comezaina e bailação ou pândega.
O que mais retenho do tempo pascal da minha meninice era as minhas irmãs a revirarem a casa paterna do avesso. Era o arrouçar dos móveis e das camas de um lado para o outro e a escova a esfregar o sobrado e a deslizar sobre as «taubas» com alguma escuma de sabão escurecida pelo surro a lamber a sujidade de um ano de casa de laboura.
A minha irmã mais velha, mulher perfeita e de muito trabalho, sempre que o tempo seco permitia e as taubas não estavam limpas como ela queria era vê-la de joelhos, escova na mão, deslizando no sobrado a cheirar a fresquinho. Ao chegar o meu pai do campo achava que era limpeza a mais e ia-lhe dizendo que ainda gastava o soalho com tanto lavar.
Mas, nesse tempo, as têas d’aranha levavam volta com a vassoura artesanal de milho ou um rascalho nas loijes. Isto não ficava por aqui e as paredes da cozinha levavam várias mãos de cal, travando-se autêntica luta de vontades entre a cal enegrecida pelas fogueiras de Inverno e a vontade da minha irmã de as ver brancas. Acho que havia um compromisso entre as partes e ficavam-se pelo meio-tom (cor de café com leite) a cheirar a pintado de fresco. As panelas e os potes tripés de ferro a repousar perfilados na altaneira prateleira, sorriam no seu brilho plúmbeo-argênteo, pois recordavam a áspera esfregadela, gemida no seu sibilino protesto. Era a areia finíssima da Carva o esfregão e a satisfação da minha mãe pelo trabalho. Não podia haver potes e panelas mais reluzentes que os de minha casa, porque a minha mãe era mulher para os deixar perfeitos, ainda que tivesse de os esfregar nos 365 dias do ano.
Fosse como fosse, o Domingo dos Lázaros ou da Paixão era o aviso para tudo estar a postos para o Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa. Pelo que o Domingo de Ramos já era uma pequena festa, com os padrinhos e os afilhados a trocarem prendas ou pelo menos cumprimentos, e os raminhos bentos de oliveira guardados para afastar trovoadas, das casas, dos campos e dos animais. Os ramos dos cristãos tentaram herdar os poderes das Maias dos nossos antepassados Celtas e das libações aos deuses do Olimpo. O Domingo de Pascoela era um dia festivo e a despedida desta grande trilogia passante anual. Lá diz o dito, «Lázaros, Ramos, na Páscoa estamos».
Em algumas localidades mais ousadas e propensas a representações teatrais faziam-se os «ramos» ou peças teatrais sobre passagens bíblicas mais marcantes e emotivas. A morte de Abel pelo irmão Caim era um deles, embora o mais representado fosse (e é) a própria Paixão de Jesus. Volta não volta, o meu pai, com a sua memória prodigiosa, repetia em tom dramático as palavras que tinha ouvido aos actores populares nos ramos: «Setas e mais Abel// Dizem que são meus irmãos,// Também «há-dem» ser meus cravos// se lhe chegar a por as mãos»!
A Páscoa era um tempo de abundância e de partilhar com os amigos. Com o anho escolhido a ser alvo de cuidados especiais, não fosse o «Zé descalço» abocanhá-lo junto a algum barranco ou calço. Os pruns também eram melhor alimentados, já que as pruas foram sacrificadas aos estômagos pelo tempo dos macaronos.
Os folares eram a iguaria de maior identificação com a Páscoa e quem os não tivesse considerava-se como vivendo com grandes privações ou na miséria. Todos tinham alguns ovos guardados num local mais fresco ou no grão da tulha ou duma rasa, evitando-se as temperaturas mais altas.
A minha mãe levava o ritual antigo do sacrifício da Páscoa a peito. Marcava o dia para fazer os folares no forno dos meus avós nos Eixes, junto à Igreja. Sempre era mais seguro ter a minha avó Rosa por perto, nem precisava de pensar na lenha para o forno. Depois, sacrificava uma boa espada da ceba a meia-cura e retalhava-a em pequenas e grossas fatias, fosse a carne magra ou a gorda. E lá seguia de canastra à cabeça, com um grande tacho de gemalte acolado de pedaços de presunto, outro tacho com salpicões e linguiças, as dúzias de ovos, o azeite e a farinha triga. Nesse dia ou no seguinte regressava uma carrada de folares que duravam quase 15 dias.
Fazer os folares era um processo demorado, com paciência, quando a massa estivesse bem lêveda e descansada seguia para os tachos e recebia os pedaços das carnes. Depois o forno tinha de estar bem quente, no ponto, sem brasas a mais e com trabalho certo do ranhadouro. Não podia queimar os folares, como não os podia deixar crus. Era a massa a descansar que adormecia aconchegada, como se cobria um filho, sob as mantas ou cobertores mais gastos.
A mesa era farta e não podiam faltar os económicos para acompanharem o final do café na «choclateira» ou da refeição mais calma ou demorada.
Sem os dormidos da Inês, nem o bolo podre de Santa Maria ou uma tradicional fatia de folar com os amigos não tenho a minha Páscoa.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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