Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Outros Tempos - Outros Valores

 Sentado no cimo da escaleira de pedra, com o chapéu preto pousado ao lado, César comia com satisfação um carolo de pão e uma grossa fatia de queijo mole. Gostava dele assim, a desfazer-se suavemente na boca, por isso chegava a encetar o queijo ainda no aro, o que arreliava a mulher e punha bravas as filhas mais velhas. Elas a aprumarem-se na arte de espremer, ao de leve, a coalhada no aro de alumínio, ao despique, para cada uma fazer melhor do que a outra. E, depois ele, sorrateiro, comê-lo antes do tempo da cura, contra todas as regras!

Eram tesas as raparigas! Não saíram à mãe que guardava o mesmo recato, o mesmo respeito com que saiu da igreja com o braço tímido apoiado no seu. Sorria o César, entregue a estas lembranças do tempo em que pusera os olhos naquela rapariguita miúda de cinturinha estreita e olhar lavado. Decidira, nesse momento, fazer dela sua mulher.

Passados alguns meses e trocas de olhares, apresentou-se em casa dos pais com o pedido de casamento. Tolhidos de surpresa e desagrado começaram a deslindar defeitos à filha: que era muito fraquinha, nem lhe entregavam serviços de casa...quanto mais do campo. E a mãe, astutamente, foi contando as vezes que andava atrás dela com a tigela das sopas na mão.

-Ora veja lá o senhor, como pode ser dona de casa, se nem dela sabe tratar!

A tudo quanto lhe disseram respondeu apenas.

-Não faz mal. É muito nova! Com o tempo aprende.

Pena é que a sogra não tivesse vivido o bastante para ver aqueles «cinco réis de gente», como lhe chamava, gerir as tarefas da criada, lidar o dia inteiro na casa e criar a filharada que aumentava a cada ano. Um dia desabafou:

-Tantos filhos, mulher!

E logo ela saiu com a pergunta:

-Então se viessem pedir-nos um, qual é que davas?

-Estás tola ou quê? Não dava nenhum, era só o que faltava!

E não se falou mais no assunto. Já iam em oito e ele olhava-a a com secreta ternura e velado respeito, quando a via dar de mamar a um, enquanto o pé embalava o berço onde outro dormia e os olhos vigiavam os que brincavam ao redor.

Mas se o sogro não tivesse morrido, pouco tempo depois da mulher, sem doença nenhuma para além da tristeza que tomou conta dele, desde o instante em que a chamou e não houve voz a responder, ele teria dito à filha:

-Bem feito, não deste ouvidos! Tantas vezes te disse para não casares com o senhor César, que ele tinha engolido um estadulho! Eras fraquinha, a tua mãe estava sempre em cuidado contigo, eu tinha medo de te contrariar… tu rias sempre que eu falava no estadulho.

Agora ela não achava graça à falta de apego ao trabalho, ao descuido na orientação das tarefas da lavoura, deixando o pastor escolher as pastagens e o criado decidir as lavragens. Mas, quando o via regressar com aquele porte direito de filho de lavrador abastado, com a caçadeira ao ombro, as perdizes e coelhos pendurados ao cinto e os olhos repletos de liberdade e horizonte, calava a mágoa e gritava:

- Filhos, venham ver o pai!

Era uma festa e, ele, um herói!

Sílvia Lamas

Sem comentários:

Enviar um comentário