Eu amo estes montes, estas invernias transmontanas. O cheiro das lareiras. Será carvalho, freixo, talvez carrasco, nobre lenha que nos aquece o corpo e ainda mais a alma. Mas a vida é difícil. Haverá vidas fáceis? O que será melhor, percorrer estradas geladas ou atravessar o rio para a outra margem na grande metrópole, lá onde tudo fica longe e as pessoas não se olham nos olhos? Mas lá, onde os carros invadiram os espaços das árvores e das pessoas, dizem-me que há muitas oportunidades. Que há cinema. Teatro. Muita gente. Talvez haja tudo isso. Mas não há horizonte. Não há alimento para os sentidos. Que seria de mim sem os horizontes curvilíneos dos montes onde o Sol se encaixa para dormir e depois, com tempo, se mostra devagar, vaidoso?
Aqui, por detrás dos montes, o Sol lança a sua melhor energia para ajudar os homens no amanho da terra, tantas vezes ingrata e rude. Vida marcada nas rugas vincadas dos rostos parados no tempo a olhá-lo, ele que corre quieto, dia após dia ao ritmo das estações, ao ritmo das tarefas do campo.
Que horizonte é esse que me enraíza e me imobiliza? Que linguajar é esse, tão emocional e sentido? Que lindas as nossas mulheres! As nossas crianças! Que genuínas, que verdadeiras! Que força é esta que trago no peito e não quero sentir esmorecer? Força que me impede da procura da cidade que acorda quando o Sol ainda dorme deitado em pedaços de cartão debaixo de um qualquer viaduto. Mas essa força fraqueja. Devagarinho, qual doença invisível, impercetível nos meios de diagnóstico. Mas a Terra geme baixinho, nós não a queremos ouvir, ela lamenta-se… Onde estão as crianças que corriam alegremente para a escola? O que é feito das pessoas que enchiam os adros das igrejas? Onde param as tertúlias dos amenos fins de tarde que à soleira do café resolviam os problemas do mundo? Alguém viu o amolador de facas e tesouras? Aquele que arranjava os guarda chuvas estragados pelas inclemências do tempo. Ainda ouço aquele chamamento… Onde está o vendedor da banha da cobra? Aquele que dizia nos dias de feira “ chá sul africano para todas as maleitas, acorda de manhã…”, repetindo até à exaustão os benefícios da infusão milagrosa de proveniência duvidosa. O que é feito das pessoas que enchiam os comércios? As drogarias. As retrosarias. Os alfaiates e modistas. Os barbeiros. O chapeleiro. O armazém de vinhos finos. Os sapateiros. Os Tem-Tudo, desde as tripas de porco para o fumeiro até às sementes da couve penca. O armazém da Cooperativa na Rua Direita onde comprávamos o bacalhau de cura amarela onde um velho (sempre velho) embrulhava a peça inteira numa bela e forte folha de papel ferro. E os caixeiros viajantes que municiavam os comércios. Traziam malas muito grandes, muito bem arrumadas, alinhadas nas carrinhas Peujeot e tapadas com mantas. Quando abriam os mostruários era todo um novo mundo que se mostrava. As novidades que saíam das malas arregalavam as meninas dos olhos dos compradores: “ ponha-me uma dúzia destes, aqueles não que se vendem mal”.
As cidades e aldeias que morrem aos poucos. Tantas janelas fechadas nas ruas que nos levam ao castelo. Triste, muito triste. Muitas perguntas para as quais nós sabemos a resposta: foram--se embora, fecharam, demoliram-se, morreram…
Mas talvez, haja uma esperança. Por estes dias, as ruas enchem-se de vozes, ainda que saídas de pequenas colunas espalhadas pela cidade. Talvez outras vozes se juntem, saiam de casa, regressem, acordem dum sono profundo e interminável. Talvez as crianças se multipliquem e alegremente, deslizem no gelo, indiferentes aos horários e obrigações. Talvez os presépios induzam uma fertilidade nas gentes desiludidas e conformadas.
Talvez. Talvez sim.
Eu gostava. Eu gostava que aqueles que partiram, voltassem. Estamos prontos para os receber.
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