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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

SÃO BARTOLOMEU DOS MÁRTIRES E A INQUISIÇÃO

No passado dia 10 de novembro o papa Francisco declarou solenemente Frei Bartolomeu dos Mártires como santo. Trata-se de um doutor da igreja, que, na hagiografia lusitana, só encontra paralelo em Santo António.

Nascido em Lisboa em 1514, filho de “gente boa e limpa”,(1) entrou aos 14 anos para a Ordem de S. Domingos e cedo se espalhou a fama de sua sabedoria. Em 1551 rumou a Salamanca, onde, em plenário geral da Ordem, foi consagrado Mestre em Teologia. No ano seguinte entrou para a Casa do Infante D. Luís,(2) como preceptor de seu filho António,(3) que viria a ser Prior do Crato e aclamado Rei de Portugal.

Em 1558 foi proposto pela regente do Reino, D. Catarina, para ocupar o cargo de Arcebispo de Braga, sendo confirmado no ano seguinte, pelo Papa. Sucedeu no cargo ao arcebispo D. Frei Baltasar Limpo, conhecido pelas suas ligações à inquisição e promotor de dois terríficos autos-da-fé celebrados no Porto, nos primórdios daquele tribunal.(4)

A cidade de Braga encontrava-se então “a ferro e fogo” com a prisão de 23 importantes mercadores no ano anterior, sob influência de Baltasar Limpo e de um Cabido da Sé igualmente empenhado nas atividades do santo ofício. E esta foi a primeira grande revolução que Bartolomeu protagonizou – restaurar a paz social na capital do arciprestado.

A maior parte da província de Trás-os-Montes pertencia então à diocese de Braga, com destaque para o vicariato de Torre de Moncorvo que se estendia até Chaves. O braço da inquisição na área do vicariato era, naturalmente, o representante do arcebispo, ou seja o seu vigário-geral. Também aqui se impunha restaurar a paz, já que, só em Vila Flor e Torre de Moncorvo, em 1558, estavam presos nas cadeias do santo ofício, uns 28 cristãos-novos, acusados de judaísmo.

A instrução de todos aqueles processos foi iniciada pelo vigário-geral da comarca de Torre de Moncorvo nomeado por Baltasar Limpo, chamado Aleixo Dias Falcão. Dele se queixou Gonçalo Marcos, um dos prisioneiros, cristão-novo, natural de Torre de Moncorvo, juiz em Vila Flor, nos seguintes termos:

— Como seu inimigo declarado foi de Torre de Moncorvo a Vila Flor à meia-noite, a tirar testemunhas contra ele e os mais.(5)

Diga-se que os próprios inquisidores de Lisboa se sentiam incomodados com a instrução dos processos, acabando os réus por ser absolvidos ou condenados em penas muito ligeiras, “vista a quali­dade e defeito da prova da justiça”.

No entanto, a inquisição, como outras instituições corporativas, não deixava cair os seus servidores. Assim, quando Aleixo Falcão foi substituído por Pero Fernandes Lima no Vicariato de Torre de Moncorvo, aquele não caiu, antes foi elevado à categoria de inquisidor e mandado para a Índia a instalar o tribunal de Goa, criado naquela altura.

O concílio de Trento foi o grande acontecimento da época, a nível internacional. Prolongou-se por quase 20 anos, de 1545 a 1563 e conduziu à grande renovação da igreja católica, na sequência da dissidência protestante, a chamada “Contra-Reforma”. Frei Bartolomeu participou na última etapa, de 1561 a 1563. Uma participação fantástica, já que muitos e credenciados historiadores o elegem como “a figura maior do Concílio”.(6) Igualmente reconhecido é o seu pioneirismo na aplicação nas normas e doutrina definidas no mesmo concílio, instituindo em Braga o primeiro Seminário para formação dos padres, criando “Escolas de Casos” em Chaves e Freixo de Espada à Cinta e publicando um Catecismo para instrução dos fiéis, que teve sucessivas edições.(7)

Em Trento, assistindo ao concílio, o arcebispo foi procurado por um jovem de 18 anos, natural de Ferrara, judeu circuncidado, filho de cristãos-novos que abandonaram Portugal quando foi criada a inquisição. Disse que queria deixar o judaísmo e tornar-se cristão, para o que tinha já aprendido a doutrina. Foi o pedido aceite e batizado pelo arcebispo de Braga, tomando o nome de Paulo Rodrigues. Deixou a Itália e veio para Portugal, possivelmente no séquito de frei Bartolomeu, já que, alguns anos depois, foi crismado na Sé de Braga, pelo mesmo arcebispo.(8)

O caso poderá apenas significar que os judeus o olhavam com simpatia e confiança.

Simpatia e confiança era o que por ele não sentia o cardeal D. Henrique, Inquisidor-Mor do Reino. Aliás, no próprio Concílio, em diversas ocasiões, se notou uma grande luta ideológica e diplomática entre o embaixador Fernão Martins Mascarenhas, homem de confiança do Cardeal e o arcebispo de Braga, nomeadamente quando se discutiu o poder superior dos bispos para julgar casos da fé, o que esvaziaria por completo o papel da inquisição.

Digamos, pois, que havia uma luta mais ou menos surda entre o Cardeal e o Arcebispo, claramente admitida por este quando a rainha D. Catarina se preparava para nomear D. Henrique governador do Reino, na menoridade de D. Sebastião e ele, em carta de 7.1.1561 alertava para o perigo de que “não tenhamos nem cardeal nem governador”.(9)

Facto verdadeiramente notório foi a diminuição de prisões na área da extensa arqui­diocese, por parte do santo ofício, com a chegada de Frei Bartolomeu. Numa leitura muito rápida, consultando as listas publicadas por Elvira Mea,(10) verificamos que, de 1567 e 1582 entre os cerca de 600 processos instaurados pelo tribunal de Coimbra, a quem competia a jurisdição, apenas constam 52 súbditos da arquidiocese.

Como se vê, o Arcebispo não dava muito “pasto” aos que se alimentavam das prisões inquisitoriais, conforme a linguagem utilizada pelo padre António Vieira. Acrescente-se que, nesta verdadeira “revolução” pastoral, Frei Bartolomeu foi muito ajudado pelos Jesuítas que, depois de Bragança, se estabeleceram em Torre de Moncorvo.

Jerónimo de Sousa, um jovem protegido pelo Inquisi­dor-Mor e Arcebispo de Évora, personificou uma das mais rápidas ascensões entre os quadros da Inquisição. Acabado o curso de direito canónico, entrou para os quadros da inquisição de Évora, sendo nomeado promotor de justiça em março de 1569. Dois anos depois, foi promovido a deputado do tribunal e em 17.7.1571 a inquisidor.

Estranhamente, em vez de ficar a exercer as suas funções no tribunal, foi enviado pelo Cardeal D. Henrique para Vila Flor, como Abade da igreja-matriz. Impossível, neste espaço, falar da ação deste inquisidor disfarçado de pároco, na “caça aos judeus” de Vila Flor, Torre de Moncorvo e outras terras Trasmontanas.(11)

E se Bartolomeu dos Mártires entrou na história como o bispo pobre que, montado em um macho ou mula, visitava cada 3 anos os lugares mais recônditos da extensa diocese, aconteceu que, chegando a Vila Flor, Jerónimo de Sousa tinha já denunciantes prontos a culpar “judeus” e até processos organizados, como aconteceu com Manuel Lopes, Isabel Lopes e Maria Álvares. Face às denúncias apresentadas na visitação, o Arcebispo, não podia deixar de cumprir as leis, enviando as culpas e as pessoas presas para a inquisição. Mesmo a contragosto, como transparece da seguinte carta, por ele escrita e assinada:

— Muito Reverendos Senhores. Pax et vera con­solatio. Visitando agora, este Maio pp. a paroquial igreja de S. Brás de Samões, desta comarca de Torre de Moncorvo, achei culpas pertencentes ao Santo Ofício contra um Manuel Lopes,(12) cristão-novo de Vila Flor, pelas quais o mandei prender e mandei traslado delas à minha Relação, a quem escrevi as vissem e me mandassem dizer o que se devia fazer acerca do livramento deste homem e os Desembargadores me responderam que enviasse as ditas culpas a Vossas Mercês para que provessem acerca disso como lhes parecesse serviço de Nosso Senhor; pelo qual mandei trasladar as ditas culpas autenticamente e vão trasladadas na verdade e fielmente, o qual traslado envio a Vossas Mercês para que o vejam e provejam acerca deste negócio como lhes parecer serviço de Nosso Senhor e me farão caridade mandar-me logo a resposta por este portador que não vai a outra coisa.

Também visitando no dito mês de Maio Vila Flor, saíram na visitação culpas contra Isabel Lopes(13) e sua filha Maria Álvares, cristãs-novas da dita vila, o traslado das quais também envio a Vossas Mercês para que também acerca disso provejam como lhes parecer serviço de Deus. Não de oferece mais senão que Nosso Senhor os tenha sempre em sua guarda. Do lugar da Horta, aos 19 de Junho de 1577. Arcebispo Primaz.(14)

Termino estes breves apontamentos recordando que Frei Bartolomeu dos Mártires renunciou ao Arcebispado de Braga em 1582, logo que as Cortes aclamaram Filipe II de Espanha como Rei de Portugal e o Prior do Crato abandonou o País. Os últimos 8 anos de vida passou-os S. Bartolomeu recolhido em um convento em Viana do Castelo.

E Jerónimo de Sousa pôde, finalmente, mostrar todo o seu empenho na “caça aos judeus”. Só em Torre de Moncorvo, no ano que seguiu, promoveu a prisão de uma dúzia de cristãos-novos, sendo 9 da família do Dr. André Nunes, advogado, porventura o maior apoiante de Prior do Crato na província de Trás-os-Montes.(15) 

Notas:

1 - SOUSA, Luís de – Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires (1619), Lisboa, ed. Sá da Costa, 1944

2 - VALENTIM, Carlos – O Infante D. Luís (1506-1555). Grande Mecenas do Renascimento Português e Protector dos Cristãos-Novos, in: jornal Terra Quente de 15.4.2004 e seguintes.

3 - D. António era filho do infante D. Luís e de Violante Gomes, uma judia de Torre de Moncorvo, terra onde, de acordo com a tradição, se conserva a casa onde nasceu, na Rua Prior do Crato.

4 - MEA, Elvira Cunha Azevedo – A Inquisição do Porto, in: Revista de História, ed. Centro de Estudos da Universidade do Porto, 2, pp, 215-227, 1979.

5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nós, Trasmontanos, Sefarditas e Marranos, Gonçalo Marcos juiz em Vila Flor (n. Torre de Moncorvo, c. 1503), in: jornal Nordeste n.º 1065, de 11.4.2017.

6 - CASTRO, P. José de – Portugal no Concílio de Trento, vol. 3, pp. 353, União Gráfica, Lisboa, 1944: – A sua fama de santo e sábio alargou-se desmedidamente no tempo e no espaço após a sua gloriosa estadia no Concílio de Trento onde o veremos mais tarde, a encher-se e encher-nos de glória e no qual os padres diziam: – A escola do Arcebispo de Braga é a primeira escola do mundo…

7 - ROLO, P. Fr. Raul de Almeida – Dom Frei Bartolomeu dos Mártires por Terras de Moncorvo, in: Brigantia, vol. 1, n.º 3, pp. 3-27, Bragança, 1981.

8 - ANDRADE e GUIMARÃES – Judeu Batizado em pé por D. frei Bartolomeu dos Mártires, em Trento, Itália, in: jornal Terra Quente, de 1.1.2010.

9 - ROLO, Raul de Almeida – Itinerário documental de uma vida, in: Bracara Augusta, 42, pp. 559-560, Braga, 1990.

10 - MEA, Elvira… – Sentenças da Inquisição de Coimbra em metropolitanos de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1567-1582)

11 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jerónimo de Sousa, Inquisidor de Évora, Abade em Vila Flor, in: jornal Terra Quente de 1.6.2009 e seguintes.

12 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nós, Trasmontanos… Fernando Montesinos (Vila Flor, 1589-Amesterdão, 1559), in: jornal Nordeste de 17.1.2019.

13 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nós, Trasmontanos… Isabel Lopes (c. 1503-depois de 1585) in: jornal Nordeste de 14.6.2017.

14 - ANTT, Inq. Coimbra, p.º 458, de Manuel Lopes. A carta, encontrada por Maria Fernanda Guimarães, foi publicada por: MARCOCCI, Giuseppe – O Arcebispo de Braga,

     D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-82). Um caso de inquisição pastoral? In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 9 (2009), p.142.

15 - ANDRADE e GUIMARÃES – Nós, Trasmontanos… André Nunes (n. Torre de Moncorvo, c. 1518) in: jornal Nordeste de 16.5.2018.


António J. Andrade

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