Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
O desabafo que me proponho fazer, dará aqueles que me conhecem relativamente bem, possivelmente, ocasião de me passarem a conhecer melhor. Tentarei ser claro e objetivo, o que nem sempre é fácil, particularmente quando se trata de relatar sentimentos.
Vamos aos factos: Hoje de manhã, domingo 08 de março de 2020, como sempre, vim de casa para "baixo" e chegado à Praça da Sé, o meu coração foi tomado de um sentimento que não terei adjetivo para o descrever. Não chorei, mas o meu semblante fez-se sombrio e mil pensamentos se misturaram em turbilhão de forma que me obrigaram a parar, tirar os óculos e tentar prosseguir.
Claro que a análise primeira que fui capaz de fazer foi de distanciamento das imagens que me perturbavam num reflexo de conservação da minha sanidade. Mas as imagens de cinema dos meus tempos de rapaz não me abandonavam, mostrado de novo as cidades fantasmas da América e dos campos de Oklahoma que Steinbeck descreveu na sua obra As Vinhas da Ira.
Havia duas pessoas debaixo do arco central da Galilé da Igreja da Sé, sendo que uma delas me esperava. Bom, aqui respiro fundo para tentar fazer-me entender.
O que sentem os homens que estando já na etapa final da sua vida descobrem que ela lhes roubou a coisa de que mais gostavam e que eles sem estarem preparados para aceitarem tal fatalismo que lhes roubou o passado, afinal descobrem que não foi um fatalismo mas sim uma estupidez? Pensem no que posso eu sentir quando chego à Praça da Sé e vejo aqueles dois elementos e nem mais ninguém. Creio que estava presente mas sem visibilidade o homem do Quiosque do Guedes.
Responder-me-ão, que o pessoal dorme até tarde e que também que ir ali já não vale a pena, até porque já nem Missa lá se reza. Sim, porque de facto passados que foram alguns minutos depois da minha chegada, apareceram cinco forasteiros e me perguntaram onde poderiam assistir à Santa Missa.
Reparem, eu nasci aqui, eu e todos os que cá encontrei, os que são meus contemporâneos e os que depois de mim também são filhos desta terra. Fui criado rodeado de gente, que se movimentava nestas ruas com vida, com uma missão em mente, com vagar e apressados, passeando ou trabalhando, mas inegavelmente vivendo. Saía de manhã cedo, de criança, adolescente, já homem e via gente, que estudava, que trabalhava que passeava e até que fazia que fazia, mas via gente. Gente que falava, comerciava, ria, lamentava, apregoava, ralhava ou cumprimentava os outros e socializava.
E eu habituei-me a amar estas ruas essa e outras praças, essa gente e acima de tudo o que era matéria ou abstração que fosse constituinte da complexidade que era a cidade. Jamais pensei que um dia os homens e mulheres desta terra gerassem filhos que com a sua mesquinhez descurassem a sua cidade, obcecados como estavam em fazê-la crescer tirando de um lado para porem noutro que eles construíram e que até nem fazia falta em tal medida tão desproporcionada.
E hoje Bragança é algo de incaracterístico do ponto de vista da vida social fora das salas ou balcões de alguns serviços públicos, dispersos pelo subúrbios ou confinados em corredores ou saletas exíguas como acontece nos Serviços de Registo e Notariado, que ainda não tem um lustro de vida. Há também em mim. Constantemente, uma como que incerteza ao ver o esforço do Comércio que persiste em manter-se aberto ao público neste tempo em que as grandes superfícies dominam por completo as vendas de alimentos e até moda e artigos elétricos. Resumindo, como foi possível Bragança haver chegado a esta "apagada e vil tristeza"? Faço com muita tristeza um reparo à forma como também alguns Cafés descuram a sua missão cujo horário de serviço não é o das 9 às 5h.
E resumidamente está descrito o núcleo central da minha desolação, passando agora a tentar dar uma ideia daquilo que foi esta cidade que historicamente nem dos seus duques foi muito amada mas que em compensação foi muitíssimo amada pelo seu povo.
Estamos num qualquer dia do tempo que mediou entre 1955 e 1986 e logo pela manhã bem cedo se escutava um falar de gente que abrindo portas e janelas arejava a casa limpando-a dos odores dos espaços de dormir, regra geral pequenos e lotados.
As famílias eram grandes e os espaços nem sempre eram proporcionais à medida da família. Por isso era com diligência que quando raiava a Alba o maioral ou a própria mãe dava ordem: A prumo que já é dia. Com resmungo ou sem ele era um corrupio, uns procurando adiantar-se no despacho da fardeta outros mastigando o pão que molhavam no café ou na cevada. Tinha começado a vida.
Os adultos saíam apressados para trabalharem, todos faziam algo, as crianças apressadas corriam para a Escola pois os atrasos pagavam-se caro já que a Mestra tinha uma Santa-luzia vigilante que nunca mostrava cara de Santa. Nas ruas os pregões gritavam, Quem quer sardinha de Ovar fresquinha? Era a Tia Pita que era baixa e robusta e tinha uns olhos lindos como o das santas das igrejas, as padeiras e leiteiras não apregoavam pois tinham muitos clientes certos e o tempo urgia e não se podia estar com requebros pois a garotada tinhas as manhãs tomadas pela impaciência e a larica. As carvoeiras e vendedeiras de palha ou urzes falavam alto e era um gosto ouvi-las dizer frase que para nós nos pareciam de outra extração que não as dos livros de leitura por onde tínhamos aprendido a ler.
Com o passar dos minutos as ruas de acesso à Praça da Sé iam-se enchendo de gente da mais diversa. Donas de casa apressadas a caminho do Mercado, homens saindo das tabernas onde alguns matavam o bicho e outros menos rudes e mais aperaltados entravam nos cafés, que os havia com fartura, para tomarem o seu café ou galão que acompanhavam com o "bijou" com manteiga. O comércio abria portas e após o recolher das trapas, colocava as amostras à porta na tentativa de chamar a clientela. Os patrões tinham quase sempre um ar grave que a meio da manhã desaparecia mostrando uma atitude mais coloquial e própria para facilitar o diálogo com os seus pares ou um mais obsequioso para atenderem alguns clientes. Nos Bancos e Repartições Públicas tratavam-se assuntos sérios que o povoléu não tinha curiosidade de compreender. Na Sé já se havia rezado missa e no Liceu e Escola Industrial, professores e alunos entregavam-se às tarefas do Ensino que mudou Portugal para melhor.
A vida fervilhava na minha cidade e a catraiada delirava com a azáfama e denodo posto no trabalho e no viver dos seus pais e outros adultos.
O sentido de pertença estava-se forjando em todos os que sem notarem estavam a tornar-se parte de uma comunidade de herança antiga e anseios novos. Não me repugna dizer que a sociedade era estratificada em três patamares mas não a classificarei com vocábulos políticos, outrossim e só como, ricos remediados e pobres. Elementar, mas com uma certeza, falavam uns com os outros, intervinham todos na vida da Cidade com o mesmo entusiasmo e a cidade era um lugar bom para viver. Tinha vida, participação, cumplicidade recíproca e os indivíduos respeitavam-se sem hipocrisia. A classe média, os remediados eram o cérebro da Grei, os mais ilustrados, os ricos, administravam os assuntos de Estado e da Justiça, o melhor que sabiam e os operários, os pobres, trabalhavam nas artes e ofícios e eram a alegria e paixão de viver, viver em Bragança onde o povo era feliz, bairrista e que com todo o amor nos deixaram esta terra que outros pensando fazerem bem, mutilaram! Sim. porque o que se fez dentro do perímetro que começa na Moagem do Loreto, vai até ao Bairro Velho da Previdência, flete para a antiga Boavista, passa pela Avenida João da Cruz e desce até ao Principal pela Rua Abílio Bessa, foi um erro crasso. Erro que tem sido pago com a maior resignação e revolta contida por todos os que o sentem porque sabem ao que esse erro reduziu a sua cidade e por arrasto as suas vidas.
O homem vive de anseios, de ideais e como ser pensante tem sentido estético e prático. Tem também sentido claro de pertença e na normalidade do seu dia a dia vai sentido o que o eleve como agradável e o preenche no seu carácter e tendências estéticas. Delicia-se com o equilíbrio que vê e sente nas formas sejam elas naturais ou de obra da sua lavra. Aceita conformado as causas naturais de destruição e abomina as imposições dos seus iguais que tendo poder lho impõem prepotentemente.
A verdade é que há casos em que a imposição é por vezes benéfica em sentido restrito e outras é maléfica e sempre em sentido lato. Daí que só depois das coisas tomarem o seu lugar no espaço se pode aquilatar da sua qualidade no preenchimento do seu sentido estético e utilitário.
Foi este o resultado obtido pelas várias decisões tomadas em tempo de euforia e desnorte por alguns autarcas e pretensos tecnocratas juntamente com políticos sem ciência que deslumbrados com o poder que lhes foi dado pelo voto de quem neles viu génios e não convencidos, não descansou enquanto não desfez o que estava feito. Não foi apenas obra de matéria palpável, foi também de decisão política caprichosa onde se impuseram mudanças absurdas e transferências de serviços que se tornaram num pesadelo.
Tudo começou com a mudança dos serviços da Câmara para o Forte S. João de Deus. Guiados pelo sentido agiota e saloio das decisões instantâneas de militares em campanha muda-se o campo sem outra ideia senão o enfraquecer do inimigo. Quais as perdas, não interessa! Alguém tem de morrer senão já não cabíamos cá!
E foi assim, passe a metáfora, que se trocou o bom pelo mediano.
(Retomo a crónica noutra que dará sequência a esta)
Fim da 1ª parte
Bragança 08/ 03/ 2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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