O d. Afonso parecia outro!
Se fosse um Afonso qualquer!... mas o dom, o quarto, o do Salado!... Quem jamais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercílio carregado, de riso tão lhano sob as enormes barbas patriarcais, honradas entre as mais honradas dos afonsinos?
O Coelho, que havia muito, andava tramando o crime, até disse baixinho ao Pacheco: — “Ali há coisa!” O Pacheco já a farejara, olha quem! E entretanto, o d. Afonso, todo fora dos eixos costumados, dizia graças, quando passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inês.
Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já tinham escangalhado o sossego da que depois de morta foi rainha. E o cetro, sobre que tão famigerados heróicos havia de bordar o dr. Ferreira, parecia pesar nas mãos do monarca menos do que se fora de pequisbeque, talvez tanto como de papelão dourado.
É que naquela noite...
O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja!
Ele em pessoa comprara a galinha, uma ave amarela, que era uma beleza, gorda anafada... Depois do muito regatear, e por ser a ele, d. Afonso, é que a soloia a vendera por 620! Um rico pedaço do touu1nh, um bom naco de presunto, o belo chouriço, cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora adeus! Um dia não são dias. Aquela noite de Natal havia de ser falada!
E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve, El-rei lambia os beiços.
Chovia a potes.
O drama terrível, a mais calamitosa tragédia da história pátria, ia-se pouco a pouco desenrolando.
Inês lamentava-se. Os horríficos algozes haviam-na trazido ante o rei. Eram três judeus de calvário de Semana Santa, muito capazes de dar sete pesadelos a quem não estivesse prevenido. Muito cabelo, muita sobrancelha, muita barba, vozes de tiranos. Ela erguia para o céu cristalino os olhos piedosos, atentava nos meninos cheios de sono, falava ao avô cruel nas brutas feras e nas aves agrestes, na mãe de Nino e nos irmãos que Roma edificaram; queria ir fosse lá para onde fosse, para a Citia fria ou para a Líbia ardente, contanto que a tirassem dali. Era de partir os corações! Mas aqueles patifes, de punhais desembainhados, sanhudos, faziam esgares!
E a desditosa amante do príncipe, entre soluços e lágrimas, pensava: — “Que demônio tem hoje o d. Afonso?
O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito branco... E arregalava o olho e abria a venta!
Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inês de rojo a seus pés, as iras do filho apaixonado, a política do reino, as Espanhas, os Castros?
Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era como um ramalhete, numa rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe fugia o pensamento. Em volta dela cantavam pardais todas as manhãs, e o sol, mal nascia, pintava-lhe os vidros como se fossem pedras preciosas, rutilantes. Tanta paz lá dentro, tanto riso de crianças!
Noite de Natal muito fria. Ah! como chovia lã fora! Cantava a água, caindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das calçadas. Como estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste arrastava pelo céu as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanso.
Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria!
Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a velha mesa herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste amigo, naquela noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, entornando sobre a alvura do linho um círculo de luz aconchegador, fazia faiscar as lâminas das facas, estriava com fogo os cabos muito limpos das colheres. O pão, há pouco vindo do forno, ainda fumegava embrulhado na flanela, e seis guardanapos engomados ostentavam formas caprichosas, em cima dos pratos: pombinhos, leques, romãs abertas.
Lá dentro, na cozinha, riam as crianças: A mais pequenina, uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos cansadinhos de sono, teimando em não querer deitar-se, que havia com as mais velhas de assistir à grande festa.
E a panela a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das nozes!
Vá lá um homem ralar-se com a política do reino, ter consciência de sua altíssima missão, compreender o direito divino, recalcar no coração a piedade e ser cruel contra o próprio filho meio louco de amor e que a dor tornaria completamente louco, contra os infantes seus netos, contra a formosa fidalga chorosa, que deixava espalhar pelos ombros os fartos cabelos pintados de loiro!
— Pois sim, cantem — pensava ele.
E respondia tão distraído, tão fora do sentimento, que todos, pasmados, diziam:
— O d. Afonso... ali há coisa!
Corriam-lhe pelas faces uns arrepiozinhos, impaciências perceptíveis sob as enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as asas do nariz e os cantinhos das fartas sobrancelhas.
O filho, o d. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito as últimas exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A corte, atônita, aflita, corria para a vasta janela rendilhada para ver o desgraçado amante atravessar os pátios, chamar os seus, com eles dispor a vingança. Era então que o velho herói do Salado, desgraçadinho, cheio de lágrimas na voz, com o coração dilacerado, diante do corpo inanimado da linda Inês, havia de soluçar altíssimas filosofias sobre a vaidade das vaidades, o peso daquela coroa sobre as cãs, daquele cetro nas mãos decrépitas.
— A canja, a canja! — pensava ele.
E ainda o eco murmurava os últimos gemidos daquele diabo de tragédia, e já o d. Afonso galgava a quatro e quatro os degraus da escada, sem coroa, sem cetro, sem barbas, respondendo ao contra-regra, que o chamava para ir agradecer os aplausos da claque:
— Vão para o diabo!
E, meia hora depois, que alegria!
Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os três netinhos, todos a cantarem o hino da carta:
— Tchim! Tchim!... Taratatchim! Taratatchim! Que bem que cheirava a canja!
Aquela noite de Natal havia de ser falada!
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
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