terça-feira, 24 de agosto de 2021

Memórias da escola - De Bragança para Vale de Janeiro

 Por: Maria dos Reis Gomes
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Estávamos na segunda metade dos anos sessenta. Terminado o Magistério Primário, fui colocada em Vale de Janeiro, no concelho de Vinhais.
Uma aldeia sem estrada, sem luz, sem água canalizada… não sei se tinha telefone…Tinha muitos alunos, vindos também de outros pequenos lugares. 
Deste sítio, tal como de outras zonas do país, centenas de portugueses deixaram o mundo rural e emigraram para o estrangeiro, nesses anos sessenta.
Partiam sobretudo para França. Pais de família e alguns casais. Nestas localidades fronteiriças, atravessar clandestinamente sempre foi um exercício associado à prática ancestral do contrabando. Assim, “saltar” esta barreira [“dar o salto”, dizia-se então], seria a tarefa mais fácil para estes emigrantes que, quase sem saber ler, se aventuravam em travessias “dantescas”, com a esperança de encontrar o acolhimento e ajuda de familiares e amigos, para iniciar uma nova vida.
Muitas crianças ficavam com os avós, que eram por eles tratadas com carinho. Apostava-se na escolarização dos mais novos. Para os mais velhos já era tarde! O índice de analfabetismo no nosso país era, à época, acima de 25%.
Lembro-me que chegava a esta localidade todas as segundas-feiras de manhã e ficava até sábado depois do almoço. Partia de Bragança bem cedo, pois tinha à minha frente cerca de quatro horas de caminho. 
Recentemente, consultei o mapa e vi este percurso. No total são apenas 50km, que se fazem em menos de uma hora. Naquele tempo, deslocava-me de automóvel entre Bragança e Vinhais e, de “carreira“, a partir de Vinhais até Curopos. De Curopos até Vale de Janeiro fazia-se o percurso a pé, por um caminho tortuoso. Tudo isto acontecia durante um Inverno rigoroso. Nesse tempo, nas terras longe do mar, contavam-se “nove meses de Inverno e três de Inferno”. 
Não tenho registos gráficos ou fotográficos desta minha experiência. Não se usava fotografar. Era tudo tão certo e continuado, que se cumpria paulatinamente. Tenho a memória e a capacidade de recordar, sobretudo, o que me é agradável. E foi muito significativo ter trabalhado neste espaço. Retenho o essencial, lamentando a falta dos registos.
Recordo uma turma mista de cerca de quarenta crianças, com idades compreendidas entre os seis e os onze anos, e matriculados do primeiro ao quarto ano de escolaridade – Esperavam-me, habitualmente, no átrio da escola. Por vezes, a quantidade de neve que se acumulava no portão da entrada obrigava-nos a utilizar pás para a retirar. 
Com chuva, neve ou sol de Inverno…, iniciávamos a jornada a fazer uma boa fogueira num “caldeirão com pregadeira “. Já com as brasas, que nos iriam aquecer, transportávamos “o caldeirão” para o espaço da lareira, que não acendíamos, porque não expelia o fumo.
Lembro o entusiasmo com que as crianças me levavam, logo de manhã, “bilhós” que tiravam do bolso misturados com o lenço…, porque um dia eu disse que gostava de “bilhós”. O Carlos das Cavages levava-me todos os dias uma bela maçã. A irmã, que estava atenta ao gesto, deslocou-se um dia à escola para conhecer a professora. Lembro também o Nuno, meu vizinho, que me esperava nas escadas da casa onde eu morava e me levava a pasta. Partilhávamos os dois a torrada de “pão de Curopos”, que a D. Noémia me tinha feito.
Apliquei, neste meu primeiro ano, muito do que tinha aprendido no Magistério Primário. No meu caderno preto planificava todos os dias o que era suposto fazer com as quatro classes e a obrigação de atender a todos e a cada um, de forma diferenciada. Cumpria-se o programa, com um manual para as diferentes classes, o quadro preto, as lousas de cada um e os cadernos de escrita, que eu levava para casa, onde corrigia trabalhos e registava outras tarefas a executar.
Mais tarde, quando tive contacto com as práticas da “Escola Moderna” [inspiradas em Freinet], apercebi-me que poderia ter feito muito melhor.
Voltei duas vezes a este local, já neste século XXI. Vi um lugar totalmente diferente e para melhor. Casas novas resultantes do esforço dos emigrantes. Encontrei-me com os donos da casa onde estive hospedada e com a mãe do Nuno, soube de alguns dos meus alunos e fiquei feliz com os seus percursos.
Há cerca de 5 anos, voltei ao mesmo local com o meu neto. Queria mostrar-lhe a escola que eu deixei, no longínquo mês de Maio em que nasceu a minha filha mais velha e mãe deste neto. A escola já era um local abandonado.

Agosto, 2021

Maria dos Reis Gomes
, nascida e criada em Bragança.
Estudou na Escola do Magistério Primário em Bragança, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira em Lisboa e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação no Porto, onde reside.
Sempre focada no ensino e na aprendizagem de crianças com NEE (Necessidades Educativas Específicas) leccionou no CEE (Centro de Educação Especial em Bragança). Já no Porto integrou o Departamento de Educação Especial da DREN trabalhando numa perspetiva de “ escola para todos, com todos na escola). Deu aulas na ESE Jean Piaget e ESE Paula Frassinetti no Porto.
A escola, a educação e a qualidade destas realidades, são os mundos que me fazem gravitar. Acredito que, tal como afirmou Epicteto “ Só a educação liberta”. Os meus escritos procuram reflectir esta ideia filosófica.

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