A.M. Pires Cabral, Frentes de Fogo
Comecemos pelo título do poema — “Sim, eram castanheiros” —, e logo uma nota de nostalgia se solta. O tempo verbal aponta para o passado. Mas, então, não existem ainda? Sim, existem, mas não os que o poeta transmontano conheceu. Esses, como refere o poema, “Hoje são mobília, / tonéis, soalhos, traves que sustêm / telhados”. A. M. Pires Cabral não pretenderá insurgir-se contra a existência, necessária e útil, de tais objetos e coisas, mas, antes, dar conta de que, enquanto seres humanos, podemos ser habitados por árvores. (Não é de Ruy Belo o verso: “sentia a grande falta de uma árvore” e que, por isso pensou, “plantar […] uma árvore na [sua] vida”?)
O poeta não o diz claramente, mas, sabemo-lo, esses “bons gigantes” teriam povoado as encostas da Serra de Bornes, em Macedo de Cavaleiros, lugar-origem de muita da sua criação literária. A partir da experiência vivida nas “impetuosas manhãs irrepetidas” da infância, o poeta inscreve na paisagem do poema a memória de castanheiros “ao lado das searas”. Particularmente aliciante é o uso, na primeira estrofe, de ‘gravemente’, advérbio que ajuda a visualizar o perfil intenso do castanheiro nas encostas da serra, realçando, também, o seu valor: o volume da copa — à sombra da qual “descansámos, brincámos, namorámos” —, a longevidade — “a sorrir para nós como um avô” —, a dádiva do seu fruto, que, “pelo outono” enchia “bolsos e boinas”.
O poema, representando uma espécie de mapa da imaginação do seu autor, pode constituir-se, também, um guia para pensar o território nele inscrito. Assim, a linguagem poética não deixa de ser um convite a uma observação mais apurada da Castanea sativa, espécie que existe na Península Ibérica desde muito antes dos romanos. Uma árvore que prefere solos profundos, frescos e permeáveis, e que encontra, em Portugal Continental, áreas de implantação felizes, tal como acontece em zonas da região de Trás-os-Montes. Nesta e noutras áreas serranas, e até meados do século XX, o castanheiro representou uma importante fonte de rendimento para as populações, pois gerava não só o fruto — “com a simplicidade / com que oferecemos de beber a quem nos passou à porta”, mas também a madeira, que, com o avanço da industrialização, era necessária a diferentes atividades. Hoje há menos castanheiros: nas últimas décadas, ações humanas, fungos e doenças várias contribuíram para um decréscimo do número dessas generosas sombras estivais nas encostas das serras transmontanas.
Foto: Frayle/Wiki Commons |
Todavia, ainda há castanheiros. O valor da sua madeira e do seu fruto e políticas de arborização concretas têm permitido a sua preservação. Ainda é possível ver os castanheiros incendiando a paisagem, no outono.
Sim, são castanheiros, pois os que no poema foram cortados com o machado “têm serventia mesmo mortos”, não só porque são úteis nas diferentes formas que tomaram, mas porque foram estímulo para o poeta e, agora, para os leitores desta crónica, que, neste outono, irão certamente perscrutar a paisagem à procura da sua grave, benevolente, generosa e colorida copa.
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