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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Coisas de por ali

Por: Carlos Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...) 


Chegava a Setembro, a fins de Setembro,
e as ruas da aldeia cobriam-se de palha centeia 
que o Sol dourava mais no princípio do Outono.

Nós,
Bebé,

          (Ai, nós,
          Bebé!)

tamanha paixão aquela palha no mundo inteiro eu morra se haveria:

Pulando, rebolando, guinchando,
brincando quase a modos de brincar à sobreposse,
que as primeiras chuvas de Outubro não tardavam a pôr fim à brincadeira.

Nós,
Bebé,
ali o dia inteiro:

Aos bandos, raparigos, imporéns, 
como os pais dos nossos pais 

          (A reparar, sempre a reparar.)

de coração na boca nos tratavam.

Caras à noite,
ali pelas Trindades, 
a recolha dos rebanhos ditava o fim do dia.

E nós,
Bebé,
de unhas afiadas como lobos sorrateiros à espera das ovelhas,
dando-lhes corrida para ripar às mãos cheias a lã emaranhada.

Abria a escola, corria o mês, chegava a chuva,
tanta chuva,
Bebé,
que mal despegava tanta chuva o Inverno todo.

Para nós,
Bebé,
tamanha paixão aquela palha,
brincando quase a modos de brincar à sobreposse,
a chuva, tanta chuva, tinha sabor a fim de festa.

O que se passava depois,
todos os anos era assim o que se passava depois,
fica para mim,
Bebé:

Talvez não seja certo, não me lembro bem,
era tanta a chuva que a palha apodrecia,
esfumegando ao sol, que abria em São Martinho,
em lenta combustão, já estrume no caminho.

O que se passava depois,
todos os anos era assim o que se passava depois,
fica para mim,
Bebé:

Talvez não seja certo, não me lembro bem,
havia quem deitasse culpas à estrumeira
de tantos que partiam, meninos ainda.
 Eram os “anjinhos”, deles se eu me lembro,
partiam de branco, em casa branquinha…

Ia-se Dezembro, ia-se Janeiro, 
e a palha apodrecida, dos Reis ao Entrudo, por ali ficando.

Quando as andorinhas voltavam à aldeia,
meados de Fevereiro, princípios de Março,
ficávamos cegos de olhos atrás delas.

E nessa cegueira, 

          (Oh, doce ilusão!)

da palha à estrumeira tudo se alterava:
Deixava-se a roça, rodava o pião, 
vinha a Primavera, a seguir o Verão…

          (…de olhos atrás delas,
          Bebé!)

Passada a cegueira, juntas as famílias, prontas a largar, era já Setembro.

Dali em diante,
até mil anos antes o que se passava depois dali em diante,
de novo a palha da nossa paixão que o Sol dourava mais no princípio do Outono, 
e os pais dos nossos pais a reparar, sempre a reparar,
e a chuva tanta chuva que mal despegava tanta chuva o Inverno todo.

Dali em diante até mil anos antes o que se passava depois dali em diante,

as nossas coisas.

Coisas de por ali,
Bebé,
de por ali…

Carlos Pires 

PS – Durante sete ou oito anos, das sete às nove, segundas, quartas e sextas, dois transmontanos da mesma idade – um, doutor; outro, jornalista - calcorrearam milhares de quilómetros por caminhos das Linhas de Torres.  Numa das nossas incontáveis conversas matinais, ele, José Maria Alves, o médico, de São Pedro dos Sarracenos, contou-me um episódio impossível de esquecer, retrato fiel do Portugal de Salazar, na década que se seguiu à II Guerra Mundial. “Num dia qualquer, lá na aldeia, ali pela primeira classe”, conta ele, “ dei pelo ti Manel (nome fictício), ao romper do dia, nos nossos arrumos, a juntar umas tábuas de um caixote do sabão, que meu pai havia comprado tempos antes”. Estranhando, “será para acender o lume?”, ficou à espreita até o pobre homem sair. Ouvindo dizer que ao ti Manel morrera um menino, o garoto passou ao fim da tarde à sua porta, onde viu umas tábuas pintadas de branco. Desvendava-se o mistério. O episódio marcou tanto o garoto de São Pedro dos Sarracenos que, sessenta anos depois, já avô, tivemos de parar em plena caminhada, para o Doutor puxar do lenço, a lembrar-se do dia seguinte a caminho do cemitério. Da igreja ao lugar onde o “anjinho” foi sepultado, o pequeno Zé Maria não tirara os olhos da minúscula caixa, branquinha, feita pelo pobre pai com as tábuas da caixa do sabão, que pareciam já não prestar para nada…

Carlos Pires
é natural de Macedo de Cavaleiros, tendo adoptado a pequena aldeia de Meles, onde crestou à  solta nas férias grandes, como o seu verdadeiro berço. Como jornalista, fez parte das Redações do "Tempo", "Portugal Hoje", " Primeira Página", "Liberal", "Semanário" e da revista de economia "Exame" (de que foi editor).
Em Bragança, colaborou no semanário "Mensageiro de Bragança" (1970-72), tendo sido co-fundador do semanário "ÈNÍÉ - uma voz do Nordeste Português" (1975) e da publicação  "Domus", da Casa de Cultura da Juventude de Bragança (1977-78).
Foi assessor de imprensa de Maldonado Gonelha, ministro da Saúde (1983-85).
Entrou para o Infarmed em fins de 2000, depois de ter sido assessor de imprensa da ministra Elisa Ferreira, nos dois governos de António Guterres, primeiro no Ministério do Ambiente, depois no Planeamento (1995-2000).
No Infarmed criou o Gabinete de Imprensa, tendo sido porta-voz da instituição durante mais de uma dúzia de anos.
Alguns aspetos marcantes: a iniciativa da realização de um curso para jornalistas (2001), ministrado por peritos do Infarmed, em que os principais órgãos de informação estiveram representados, sobre o ciclo de vida do medicamento; a elaboração do jornal da instituição, "Infarmed Notícias", trimestral (de que é coordenador/editor/redator), tendo publicado já 78 números; a edição especial de Janeiro de 2018, com 120 testemunhos sobre o INFARMED na altura conturbada da ideia controversa da sua deslocalização para o Porto (depois editada em livro); e ainda a publicação de um livro, editado pela Âncora, "Redondilhando", que nasce no seio da instituição e cujo prefácio foi assinado por Ernesto José Rodrigues.

2 comentários:

  1. Pois bem! Meu caro Amigo Pires,
    Quão agradável é para mim, um eterno aldeão , de génese provinciana sempre patente nas memórias de infância - quão agradável, dizia eu - ler um texto que tão natural e puramente, me remete para esses ambientes de um quotidiano, por vezes árduo; mas, sempre rico e grato.
    Grande abraço, Amigo.

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  2. És um génio. És trabalhador, inteligente, serio, inteligente emocional, és judeu....és Lopes...**.AMOR, sempre. **

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