Domingo à tarde, 27 de dezembro de 2020, um dia gélido, sem graça nenhuma e eu esmorecida. Efeitos da falta da Festa dos Caretos, podeis crer. Rais parta na vida em tempos de COVID-19! Era imperioso fazer algo para arrebitar, elevar o ânimo! Resolvi sair de casa.
Meti-me no carro; liguei o pisca da direita em direção ao centro da vila de Torre de Dona Chama; desliguei-o, o apelo não era forte; pisca da esquerda em direção a Bragança e sem poiso certo. Estava confiante de que alguma ideia me iria ocorrer durante a viagem. Estais lembrados da poesia que escrevi e publiquei na minha página de Facebook QUERO VOAR ATÉ ONDE…, 25-11-2020, em que, a páginas tantas, digo:
“…
Sem me atirar para a frente
Nunca saberei que gosto tem voar
…”?
Pois atirei-me para a frente, sem medo nem reservas, e deixei-me ir, livre e solta como os pássaros em alto voo. E não me arrependo, nem por um segundo. Que dia espetacular!
Fui andando e olhando as casas. As placas com os nomes das terras iam surgindo: Vila Nova da Rainha, Lamalonga e Vilarinho de Agrochão, aldeias do município de Macedo de Cavaleiros. No entroncamento de Vilarinho de Agrochão, vi um rebanho, parei o caro e um cão pastor de pronto me cumprimentou com grande alegria. A medo, dei-lhe um afago e o dono logo avisou de que era manso. Pedi-lhe autorização para fotografar o rebanho, ficando ele e seu fiel amigo em primeiro plano, ao que anuiu de pronto. Despedi-me e continuei em direção ao destino que só Deus sabia.
Eis que me apareceu um entroncamento, à esquerda, com uma placa a indicar o nome Ervedosa. De repente só me lembrava de ter lido, vagamente, algo sobre o Couto Mineiro de Ervedosa e isso ficou retido à espera de ver a luz do sol. Poucos milésimos de segundo passaram e já estava a fazer sinal que iria virar para lá. Esta localidade é sede de freguesia e pertence ao município de Vinhais, distrito de Bragança.
Fui subindo a ingreme montanha até chegar à localidade, bem no cume. Nada sabia desta terra mas vinha de mente aberta e disposta a embrenhar-me na génese destas pessoas e na história que levou à edificação da localidade.
Quando atingi o cimo do monte, vi um belo Coreto à minha direita; estacionei o carro e de imediato fui fotografá-lo. Depois, vi ao lado um Cruzeiro e uma capela. Pus-me em posição e disparei umas fotos. Nisto passou um jovem - bom, digo jovem porque ao pé de mim é um jovem! Continuando a preleção – dirigi-lhe umas palavras para que me ajudasse, me desse informações sobre a terra. A curiosidade estava a aumentar. Lá foi dizendo que era dali mas estava há algum tempo na Suíça; que pouco sabia para me ajudar; que me dirigisse ao café, alguém me iria esclarecer as dúvidas. Retorqui dizendo que tinha acabado de chegar e não fazia a mínima ideia onde estava nem onde ficaria o tal café. E para o envolver na conversa disse-lhe que escrevia para uma revista Suíça, a Lusitano de Zurique. O jovem, descobri que se chama Vítor Afonso, percebeu, pela referência à revista, que eu não estava a brincar e levou-me ao café.
Entrámos e apresentei-me às pessoas:
- Teresa Ferreira, de Torre de Dona Chama.
E nada! Rigorosamente nada. Ficaram em suspenso. Um senhor, mais afoito:
- De quem bocê é filha, lá na Torre?
- Sou filha do Ti Iriberto, das motas e das bicicletas.
Não estais a ver a transformação que se deu naquela gente toda. Rasgou-se o céu e abriram-se-me as portas da terra, de par em par. Fiquei a saber que meu pai é bem conhecido naquelas paragens.
Tomei um descafeinado que gentilmente o jovem me ofereceu e saí dali com o Sr. Adérito Machado, da Junta de Freguesia, pois teve a amabilidade de me acompanhar nesta visita guiada pela localidade.
Caros leitores: se soubésseis o que vi, nesta encantadora aldeia, acredito que também ficáveis de olhos esbugalhados e sôfregos para irdes ver tudo!
Descemos um pouco e eis que se nos apresentou a Igreja Matriz dedicada a São Martinho, séc. XVIII. No exterior, o Pelourinho classificado como IIP – Imóvel de Interesse Público desde 1933. Já vi muitos mas este tem um formato peculiar.
E para bom entendedor…
Se há Pelourinho, há foral e muita história a descobrir. Tornava-se imperioso saber tudo para bem vos puder contar.
Quando saí do café, as expectativas estavam a crescer; quando se me apresentou o Pelourinho, então é que foram elas! Vós, que já me ides conhecendo, sabeis como fica uma criança quando recebe aquele brinquedo muito desejado. Assim estava eu.
Vi uma placa comemorativa dos 500 anos do último foral, colocada na fronteira da Igreja Matriz, pertíssimo do Pelourinho. Aproximei-me para ler a inscrição. Fui perguntando e fiquei a saber que Ervedosa teve dois forais, o primeiro atribuído por Dom Dinis em 05-07-1288 e o segundo por Dom Manuel em 22-07-1514. Esta localidade foi vila e concelho; teve autonomia judicial e administrativa; e em tempos chegou a pertencer ao concelho de Torre de Dona Chama. Pensei comigo: como tudo se cruza e encaixa no seu devido lugar!
Entrei na Igreja para a ver e fotografar. É muito bonita! A sua construção data de 1720, ou seja, é mais velha, 95 anos, do que a Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Torre de Dona Chama.
Seguimos pelas ruas da aldeia e fomos parar à fonte das Nogueiras, construída em 1829. Ao lado, os bebedouros para os animais e tanques públicos para lavar a roupa. Estas construções são em pedra granítica. Neste preciso lugar, olhando o horizonte, apresentou-se-nos em toda a sua imponência e bravura, uma crista rochosa no zénite das montanhas, denominada de Cerro, delimitando o termo da freguesia de Ervedosa e o de Penhas Juntas. Que magnífica paisagem; de perder a respiração com tamanha beleza!
Olhei para o chão, vi uma calçada irregular que me chamou a atenção. Talvez tenha mão romana, mas não vo-lo posso ainda garantir. Escorria água de nascente pelo chão que, às 15:00, estava vidrada e apelava à minha atenção para me acautelar de alguma queda.
Voltámos em direção à zona antiga da aldeia. Era preciso ver uma rua que os habitantes dizem ser romana. Casas de pedra granítica, rústicas, em que ainda mantém a traça antiga: no rés-do-chão ficam os arrumos e a loja dos animais, isto era assim porque os animais aqueciam a casa para cima, através do chão de soalho, passando o calor pelas frinchas; no primeiro andar, a zona de habitação da família.
Ao passarmos numa rua para ver a primeira casa de Ervedosa, escutámos alguém a cumprimentar o Sr. Adérito que retribuiu com um aceno e prosseguimos. No regresso, parámos à porta da casa de onde tinham vindo os cumprimentos e fomos entrando na adega. Cumprimentei os homens presentes, estavam expectantes quanto à minha presença na aldeia, e apresentei-me. O dono da casa, de seu nome Óscar Barreira, ofereceu-nos vinho do Porto, caseiro. Fiquei a saber que trabalha em Lisboa mas não perdeu os bons costumes do povo transmontano:
- Entre quem é!
Sabei: estava bem bom! E quando é doce e de boa qualidade… não me nego, pois está claro! Desde que seja poucochinho porque não estou habituée nestas modas.
Despedimo-nos dos presentes e regressámos ao café. Lá, acabei por falar com mais pessoas que conhecem a minha família, vindo com recomendações e cumprimentos para todos. O Sr. Adérito, como cavalheiro que é, acompanhou-me ao carro e trocámos contactos para alguma coisa que fosse preciso.
O Sr. Dinis do café, homem de boa paciência para me aturar, contou-me que nestas paragens, como em todas por certo, havia um homem que se destacava pela brejeirice e modo alegre como levava a vida, no caso concreto, estamos a falar de José Águia. Disse-me que ainda hoje se contam inúmeras histórias dele e há bastante tempo que a sua alma nos deixou.
Vamos lá. Então quem é este personagem?
Tinha por profissão latoeiro e morava na Soutilha, aldeia que pertence à freguesia de Ervedosa. Quando alguma mulher entrava na latoaria mantinha-se sentado na banqueta de tripé, oficiando. De propósito, ou não, havia retalhos de chapa espalhados pelo chão. Pedia, gentilmente, à mulher que se abeirasse dele e armava a coisa de modo a que ela ficasse em determinado lugar. Sempre a olhar para baixo, de tesoura de cortar a chapa na mão, fingia que estava a trabalhar, ia puxando conversa para se inteirar do pedido da freguesa. No meio da conversa fazia uns apartes:
- Esta num tem (cuecas). Bem lha bi!
E batia com a tesoura no objeto que estava a trabalhar, disfarçando sobre o foco de atenção.
Naqueles tempos, há bem mais de 50 anos, usar roupa interior era coisa a que nem todas tinham acesso.
Certo dia, Zé Águia estava numa horta e dá-se conta da Arminda cigana que ia a passar. Depois dos cumprimentos e vendo-a descalça disse-lhe:
- Ó Arminda, andas prá aí descalça e a minha senhora com um saco de calçado pra botar fora. Bai lá e fala com ela.
E a Arminda seguiu o conselho.
- Ó da casa!
E foi batendo palmas até a mulher do Zé Águia aparecer à porta.
- Boas tardes, Arminda! Há nobidade?
- O seu home disse pra cá bir que bosmecê tem um saco de calçado pra botar fora. Se não lhe fai diferença, gostaba de escolher qualquer cousita?
- Ai o diabo do home! Todos os dias me amanha uma. Rais parta que é mesmo maluco. Nem pra mim tenho o que calçar, ando pr’aí de pata descalça, quanto mais pra botar fora!
Muito havia para contar sobre este e outros personagens que ficaram guardados na memória do povo. Quanto à viagem a Ervedosa, já sabeis a minha opinião.
Não vos quero deixar sem fazer referência a dados do Património Cultural que recolhi, sobre a localidade, e que ireis encontrar de seguida.
Património Cultural - Material
1 - Arqueológico
A ancestral ocupação humana desta localidade está inscrita em vestígios arqueológicos, que vos irei apresentar, vindo desde a Idade do Bronze, Romanização, Idade Média e continua viva até à atualidade.
1.1 - “Castelo de Ervedosa (Nº 210)
Ervedosa (041208)
Carta 1:25 000: 49
Coordenadas: 286.9; 528.0
Altitude: 736 metros
Povoado fortificado, de média dimensão, assente no cume mais alto de uma crista quartzítica sobranceira ao vale do rio Tuela, orientada de sudeste para noroeste. A sua estrutura defensiva, formada por muralhas de pedra partida (quartzítica), adaptou-se ao relevo, sendo constituída por duas plataformas, uma mais alta delimitada por um circuito intercalado com três afloramentos mais proeminentes, e uma segunda a noroeste, a cota ligeiramente inferior, que ocupa uma rechã defendida por uma muralha. Observam-se fragmentos de cerâmica da Idade do Ferro. Na época romana, o povoado estendeu-se para a vertente sudoeste, ocupando a área, mais abrigada e soalheira, de um pequeno colo, onde se podem recolher fragmentos de cerâmica de construção: tegulae e imbrices. Junto deste povoado, a nordeste, situavam-se importantes jazidas de estanho, que foram exploradas em tempos recentes, havendo notícia de achados relacionados com atividade mineira mais antiga.
O acesso faz-se por um caminho florestal que parte da estrada municipal entre Ervedosa e Nuzedo, logo a poente da aldeia.
Idade do Ferro; Romanização
Castro Romanizado
Inédito”
In: Francisco Sande Lemos – 1993
1.2 - “Diverticulum de ligação às minas de Ervedosa no rio Tuela: derivando da via XVII na Capela de S. João em Lamalonga, seguia pelo «Caminho de Pombal» até Argana, onde existe um fragmento de miliário junto a um tanque, e depois pelo "Caminho do Bugio" acedia a Ervedosa, onde existe outro fragmento de miliário suportando uma varanda e daqui seguia para as minas junto do rio Tuela, passando nas proximidades do castro romanizado do Castelo de Ervedosa; depois de cruzar o rio Tuela em Soutilha seguia pelo cemitério da aldeia de Nuzedo de Baixo, onde existe indícios de um vicus no Cabeço e de um povoado fortificado de Castrilhão, podendo esta via ter continuidade para noroeste, seguindo a nascente de Rebordelo rumo à travessia do rio Rabaçal na Ponte de Picões (Mendes, 2006).”
In: Itinerário de Antonino
1.3 - “Laborou em Ervedosa a empresa Tuella Tin Mines, Lda., Sociedade por quota de responsabilidade limitada com sede em Ervedosa, proprietária das concessões mineiras de estanho da Borralheira, do Alto do Vale da Veiga e do Pereiro, formando o Couto Mineiro de Ervedosa, sendo que a 7 de Março de 1969 se deu a sua falência. Sobre estas minas, devido aos artefactos que lá foram encontrados e após aturados estudos, concluiu-se que já havia trabalhos de exploração mineira na Idade do Bronze. Os vários artefactos mineiros em pedra que a empresa Tuella Tin Mines, Lda. entregou à extinta Circunscrição Mineira do Norte, sendo que atualmente se encontram no Museu de Jazigos Minerais do Laboratório de S. Mamede Infesta, do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação – INETI, são os seguintes:
. Um almofariz primitivo em pedra (Idade do Bronze)
. Um maço de moer minério (atribuído aos fenício – Idade do bronze)
. Um pilão em anfibolito (blastomilonito) com granada
. Um pilão em blastomilonito com granada
. Um outro pilão (Idade do Bronze)
. Um pilão em quartzito (Idade do Bronze)
Os pequenos pilões apresentam concavidades em, pelo menos, três das suas faces, nas quais se fixariam o polegar, o médio e a base do indicador permitindo uma perfeita adaptação da mão ao artefacto. A cronologia exata destes artefactos de pedra não é conhecida com precisão, devendo provavelmente remontar à Idade do Bronze.”
In: Celina Maria Busto Fernandes (2008)
2 - Pontos de interesse histórico
2.1 - Cruzeiro
2.2 - Coreto octogonal em pedra
2.3 - Antiga cadeia (casa da Tulha onde está a Junta de Freguesia), com a sineta
2.4 - Igreja Matriz do Século XVIII - 1720
2.5 - Capela de S. Nicolau numa ermida na Ribeira
2.6 - Capela de S. Cristóvão do Século XIX
2.7 - Capela de Santa Ana
2.8 - Fonte das Nogueiras - 1829
2.9 - Fonte dos Possacos – 1829
2.10 - Pelourinho, classificado como IIP – Imóvel de Interesse Público - 1933. Coluna de fuste oitavado assente em dois degraus circulares, capitel constituído por duas molduras quadrangulares sobrepostas encimado por uma esfera.
Património Cultural - Imaterial
Trabalhos de recolha, vídeo e texto: Teresa A. Ferreira, 08-01-2021
FONTES
O meu agradecimento, a todos os ervedosenses, pelos contributos para a elaboração deste texto.
Lemos, Francisco Sande (1993) - Povoamento Romano de Trás-os-Montes Oriental
Fernandes, Celina Maria Busto (2008) – Minas de Ervedosa
Itinerário de Antonino – Vias Romanas
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