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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 9 de janeiro de 2021

"Não sou menos cigana do que quem não estuda. Queria ser juíza porque não eram justos com os ciganos"

 Alcina Faneca, advogada de 27 anos e também mulher cigana, já foi discriminada dentro da comunidade por seguir o objetivo da magistratura. Mas espera ser uma ajuda para que outras raparigas ciganas possam fazê-lo.


Em Torre de Moncorvo e no distrito de Bragança, já me conhecem. Abordam-me na rua e perguntam-me: 'A menina é aquela advogada cigana?'" Alcina Faneca, de 27 anos, já não é uma cara desconhecida. A história da advogada estagiária, pertencente à comunidade cigana, foi destaque em vários jornais, mas a protagonista, retratada como um dos rostos da mudança, fala da importância de desfocar a árvore e ver a floresta. "Eu não sou a única, era isso que eu queria dizer. Eu tenho muitas amigas e colegas que também estão a trabalhar no mesmo ramo, e noutros, que estão licenciadas. Também são ciganas e são mulheres de força e de muita garra."

Alcina Faneca, natural de Torre de Moncorvo, compreende, no entanto, que o exemplo ainda possa causar espanto, porque há preconceitos que permanecem, dentro e fora da comunidade. "No seio da nossa etnia, até há bem pouco tempo, não era muito comum os pais deixarem as filhas - principalmente as mulheres - estudar, porque havia sempre aquele receio de conhecermos alguém do sexo oposto que não fosse da mesma etnia, e, por norma, a maior parte dos ciganos quer preservar-se no seio da comunidade, e a mulher é para estar em casa", conta a advogada estagiária, em entrevista ao programa Botequim, da TSF.

Apesar de, nos últimos anos, a narrativa se ter invertido, ainda há famílias que acreditam que ir além do ensino obrigatório é contraproducente para as raparigas. "Quando são novas, sim. Depois, não estão na escola a fazer nada e supostamente estão sujeitas a muitas coisas próprias para a idade adolescente, que não são aceites na comunidade."

Uma casa onde a desigualdade de género não entra

Em casa de Alcina, isso nunca foi uma questão. A advogada diz que se lembra de um apoio que a acompanhou "desde sempre", por parte de todos os familiares, em especial o pai. "O meu pai sempre impulsionou bastante. No seio da comunidade, é o homem que tem a palavra final, e o meu pai fazia mesmo questão de que seguíssemos a vontade própria. Eu e a minha irmã mais nova sempre quisemos, a mais velha não quis por opção."

Também a mãe de Alcina Faneca compreendeu desde cedo o potencial das filhas e nunca deixou de o estimular. "A minha mãe, quando éramos mais novas, incentivava-nos a ler, comprava-nos livros, falava muito connosco sobre aquilo que gostaríamos de fazer no futuro e dizia-nos que é muito bom a mulher ter a sua independência, que devíamos sempre lutar por isso", enaltece.

Em casa dos Faneca, os filhos receberam todo o apoio para ir em direção aos sonhos. Alcina também tem um irmão, mas a desigualdade de género fica à porta. "Se há algum tratamento diferente? Não! Nós quisemos estudar, escolhemos a faculdade e a cidade para onde queríamos ir, tal como o meu irmão vai escolher."

Mas a vida também pode ser exigente para o homem cigano. Ainda há "famílias conservadoras ao ponto de acharem que os rapazes também não devem continuar os estudos, e, sim, continuar o negócio da família, casar e ter uma vida mais comum", esclarece Alcina Faneca.

Abrir caminho

A família Faneca abriu o caminho: "A minha irmã foi fazer Erasmus para Barcelona durante seis meses, uma coisa que seria impensável para a comunidade ou para algumas famílias. Houve muito esforço da nossa parte, pelo facto de estarmos inseridas numa comunidade um pouco mais conservadora."

Os pais de Alcina "transmitiram muita segurança e muita força" para os filhos seguirem o pensamento próprio. A advogada foi a primeira a sair de casa. Foi estudar para o Porto, a 185 km de casa, e chegou a viver sozinha numa casa, longe da vila de Moncorvo. Mas não deixou de estar debaixo dos olhares e no foco de algumas conversas."Os comentários não eram diretamente para mim nem para os meus pais, mas sei que havia comentários negativos: que eu me ia portar mal, que eu não ia fazer nada daquilo que era suposto fazer, que não ia para lá para estudar, que o meu pai não devia fazer aquilo porque ficava mal..."

A advogada assegura que nunca se desviou dos objetivos, até porque "quem faz o curso na Católica e quem quer acabar o curso de Direito no tempo certo não tem grande tempo para outras vidas".

"Eu fui com o total apoio do meu pai e da minha mãe, e os comentários passavam-nos ao lado. Sei que a maior parte da nossa comunidade, por muito que, por vezes, tente ser diferente, tem raízes e coisas que já estão tão presentes. Por muito que queiram ter umas mentes mais abertas, não conseguem."

Discriminação dentro da comunidade

Alcina Faneca não esconde: "no interior, há sempre um conflito", porque "há sempre pessoas mais velhas que criticam". Mas agora já não restam dúvidas quanto ao caminho escolhido. "Somos o orgulho da nossa família, tenho noção disso", regozija-se Alcina Faneca. A comunidade também já acolheu o exemplo. "Das pessoas não ciganas daqui, temos muito carinho e muito apoio. Aqui, em Moncorvo, somos muito bem tratadas e muito valorizadas."

"Enquanto cidadãos, sabemos que temos direitos e deveres, e, como nós também cumprimos os deveres, somos muito considerados", garante. A única celeuma que, por vezes, se instala reside na ideia de que as meninas da comunidade cigana devem resignar-se a um destino universal. Alcina Faneca é perentória na resistência a esta forma de pensar. "A mulher tem de ter oportunidade. Há tanta gente que quer seguir e depois vê a sua vida estagnada por causa de tradições que podem ser cumpridas mesmo estudando, e isso revolta-me um pouco."

A discriminação não lhe é familiar, mas Alcina Faneca não a nega por inteiro."Já me senti [discriminada pela comunidade cigana]. Fiz algumas entrevistas e achei engraçado que eu estava a falar sobre uma questão que é muito conflituosa, que é o facto de os pais não deixarem as raparigas estudarem. Eu sempre dei a minha opinião e sou direta."

"O melhor de dois mundos"

A advogada quer que não haja dúvidas: "Eu não sou menos cigana do que ninguém porque fui estudar para o Porto durante cinco anos. Não me sinto menos cigana do que ninguém, porque cumpri todas as tradições." A liberdade de escolha sempre foi uma realidade para Alcina Faneca, e a diversidade sempre foi compreendida e acolhida por toda a família. "Nós temos o melhor de dois mundos. Nós temos o contacto com as pessoas não ciganas que frequentam a minha casa muitas vezes, porque adoram estar connosco e as nossas festas, e temos a nossa vida cigana, as nossas músicas, as nossas tradições, os nossos casamentos e as nossas festas."

Fez licenciatura, terminou mestrado, cumpriu a fase letiva da Ordem e depois foi estagiar para Torre de Moncorvo por altura da gravidez. Mas ainda há muito por cumprir, afiança. "Na altura, ouvia muitas vezes que os ciganos tinham problemas com a justiça e eu dizia à minha mãe que queria ser juíza, porque eu sabia que nem sempre eram justos com os ciganos. Eu gostava de fazer a diferença."

Uma nova PrimaVera da vida

A terminar o estágio em Torre de Moncorvo, Alcina Faneca afirma que "a carreira de magistrado não está fora de questão"; ter sido mãe apenas atrasou o sonho. Vera vai fazer três anos em março, e Alcina luta agora, mais do que para logro próprio, para ser uma inspiração para a filha. "Espero criar a Vera com liberdade, amor, apoio e educação. Eu gostava de construir na Vera - e eu sinto que sim, que ela tem uma personalidade forte, que, quando quer alguma coisa, tenta, tenta, tenta, como eu - um à-vontade para contar comigo e um sentido de independência", diz, esperançosa.

Afinal, o percurso de Alcina Faneca tem também como destino final abrir caminho para as outras mulheres (ciganas). "A mulher cigana tem duas saídas: ou se impõe e não liga àquilo que os outros dizem e segue os sonhos, concretiza tudo aquilo que ela quer e mostra a toda a gente que não somos menos ciganas do que as outras, ou então submete-se a tudo aquilo que a comunidade espera dela e deixa sonhos para trás, fica estagnada e leva a vida que não sonha."

Os sonhos, diz, são muito poderosos, e é preciso ouvi-los. "Não sou menos cigana do que as ciganas que não vão estudar porque os pais não querem. A minha ambição sempre foi esta. Desde os meus seis anos eu dizia que queria seguir Direito."

Por: Catarina Maldonado Vasconcelos

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