Calino, presença assídua nas festas natalícias dos Caretos e de Santo Estêvão, em Torre de Dona Chama, animava toda a gente à volta da Fogueira do Galo, com as suas traquinices e pinotes. Bastava alguém fazer-lhe cócegas para desatar numa cabriolagem ímpar, correndo com o povo que se aconchegava ao lume. Este burro pertencia ao Ti Zé Piqueno, também conhecido por Batata, compadre do Zé Lola, nosso contador desta história, apoiado nalguma falha de memória por Jorge Chincho.
Por coincidência, ou ousadia, deu ao burro para morrer na altura da ciganada, como também se designa esta festa natalícia. Muita falta fez, dora em diante, para animar o povo.
Zé Lola, sentindo a falta que o Calino iria fazer, pôs-se a pensar com os seus botões:
- Ora esta! O que habia de dar ó Calino! Ainda que morresse noutro dia, ou nem sequer morresse, agora no dia da festa!? Rais parta o burro!
E nestes pensamentos, soltos, iam-lhe caindo ideias, uma a uma, formando um todo, como que a impeli-lo a agir em boa memória do Calino. Eis que se fez luz:
- Ai, caralhichos! Num sou home, num sou nada, se não fizer um balente funeral ó Calino.
Para dar forma a esta ideia havia que convencer um grupo de amigos.
Bateu a várias portas e, dado que o Zé Lola sempre foi um galhofeiro, quem sai aos seus…, não foi difícil arranjar colaboradores.
Juntou as pessoas em torno desta iniciativa e distribuíram-se os papéis: Zé Piqueno - o padre; Zé Lola - a viúva; Alfredo Bernardo - o testamentário; e outros atores em papeis secundários.
Dia 25 de Dezembro, depois do jantar, saiu o cortejo fúnebre da oficina do Batata, junto ao Ramadinha, cumprindo todos os preceitos: quatro pessoas segurando o caixão, ramos de flores, padre, lanternas, a Santa Cruz, a viúva muito pesarosa chorando copiosamente e umas quantas pessoas a acompanhá-los em direção à fogueira.
Lá chegados, tomaram as devidas posições e fez-se a missa com toda a pompa e circunstância, não fossem os atores dignos de tanta ousadia e credibilidade.
E a viúva sempre a chorar, desalmadamente e com lágrimas verdadeiras, pelo seu rico marido:
- Ai, mou Calino, mou querido marido que se morreuuuuu! Ai tanta falta me fai! Ai, o meu amor que partiuuuuu!
O povo morria de tanto rir à medida que se dava cada passagem.
Terminada a missa, levaram o caixão para o cemitério, improvisado, e voltaram à fogueira para ser lido o testamento do Calino.
Do testamento constava a divisão do burro, em partes, e seus haveres pela população, de acordo com as necessidades de cada um.
Aqui entrou Alfredo Bernardo, o testamentário.
Lida a introdução do testamento, seguiu-se a distribuição:
- À menina Cristina, deixo-lhe os mous dentes. Bem precisa a marota, pra não espantar os rapazes!
- Ó Ti Zé Mouco, deixo-lhe as minhas orelhas pra oubir melhor. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À menina Anita, deixo-lhe os mous cascos. Coitadinha da piquena! Corre a bila, de cima a baixo, noite e dia quando chega das franças!
- Ó Ti Manel Batata, deixo-lhe as patas pra andar listo e a dreito. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À menina Paula, deixo-lhe os mous olhos. Bem precisa a piquena. Num bê um burro à frente do nariz!
- Ó Ti Octávio Charuto, deixo-lhe o mou rabo. Bem precisa, bem precisa, pra xotar as moscas!
- À menina Maria, deixo-lhe as partes de baixo. Coitadinha da piquena! Num há home que a queira!
Nisto, interrompeu-se a leitura com a viúva aos gritos e suspiros pelo seu querido maridinho. O povo rindo da cena, vê-a a abanar-se com calores…
Prossegue a leitura.
- Ó Ti Jaime Chalão, deixo-lhe o pescoço pra tomar conta do São Brás. Bem precisa, bem precisa!
- À Augusta (do Ti Armando Coto), deixo-lhe o buxo pra deixar de ser biqueira. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- Ó Ti Cacherra, deixo-lhe o lombo pra fazer salpicões. Anda magro como um cão. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Ti Francelina, deixo-lhe as cangalhas pra ir à auga sem canseiras. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Ti Parreco, deixo-lhe a albarda, pra ir bem sentado às olgas acarretar melancias.
- À Ti Aida Padeira, deixo-lhe a tauba de sentar na carroça pra descansar da labuta!
- Ó Chamané, deixo-lhe a cabeçada, pra não andar tresmalhado pela bila fora. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Ti Marquinhas, deixo-lhe a clina pra fazer escovas da roupa!
- Ó Bira Milho, deixo-lhe a charrua. Passa o dia de berga ao alto, a ber se fai alguma cousa!
- À Ti Joaquina Laranja, deixo-lhe a pele pra fazer um tapete. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- Ó Ti Machaloco, deixo-lhe os alforges pra não perder as cousas. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- À Fernanda, deixo-lhe um quarto da traseira pra dar as bacinas.
- Ó Rei, deixo-lhe o arado pra cuidar bem do Cacho!
- À Goreti, deixo-lhe as ferraduras pra não gastar os socos nos passeios. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- Ó Chelas, deixo-lhe o fígado pra fazer boas assaduras nas brasas. Anda pele e osso!
- À Ti Maria Celeste, deixo-lhe a vara pra pôr os alunos listos. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Firmino, deixo-lhe a carroça pra levar a Princesa ao castelo. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Sofia Sementeiras, deixo-lhe os arreios pra prender os fugitibos da terra!
- Ó Ti Mário Grilo, deixo-lhe as tripas pra fazer as chouriças!
- À Ti Amélia, deixo-lhe a cilha pra costurar com tanto dedal que tem. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Ti João Rateiro, deixo-lhe a cabeçada pra não fugir o malandrão!
- À Toninha das Sentenças, deixo-lhe os cântaros pra ir à fonte buscar auga. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- Ó Ti Chico Mirrascas, deixo-lhe as costelas pra tocar os bombos cum elas! Bem lhe calha, bem lhe calha!
- À Lisete, deixo-lhe nabos e jerimuns pra fazer o caldo!
- Ó Ti Manel Sementeiras, deixo-lhe a couraça pra embalsamar.
- À Ti Maria Saias, deixo-lhe o feno para encher um xaragão. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Guicho, deixo-lhe as palas pra andar na rua a dreito. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Maria Eugénia, deixo-lhe as fotos da Terra pra matar saudade lá nos brasis!
- Ó Bitor Laranja, deixo-lhe um pente pra peinar bem os clientes. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- À Deolinda Cristo, deixo-lhe a garganta pra cantar o fado!
- Ó Jaiminho Moucho, deixo-lhe o coração! O dele está gasto de tanto se apaixonar plas piquenas. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Luisa Choca, deixo-lhe os bofes pra fazer um arrozico bem bô. Bem lhe calha, bem lhe calha!
Finda a leitura do testamento o povo solta grande ovação, com aplausos e gritos de agradecimento, a esta magnífica trupe de atores que tão bem os soube animar no denso frio que se faz sentir nesta época.
Por coincidência, ou ousadia, deu ao burro para morrer na altura da ciganada, como também se designa esta festa natalícia. Muita falta fez, dora em diante, para animar o povo.
Zé Lola, sentindo a falta que o Calino iria fazer, pôs-se a pensar com os seus botões:
- Ora esta! O que habia de dar ó Calino! Ainda que morresse noutro dia, ou nem sequer morresse, agora no dia da festa!? Rais parta o burro!
E nestes pensamentos, soltos, iam-lhe caindo ideias, uma a uma, formando um todo, como que a impeli-lo a agir em boa memória do Calino. Eis que se fez luz:
- Ai, caralhichos! Num sou home, num sou nada, se não fizer um balente funeral ó Calino.
Para dar forma a esta ideia havia que convencer um grupo de amigos.
Bateu a várias portas e, dado que o Zé Lola sempre foi um galhofeiro, quem sai aos seus…, não foi difícil arranjar colaboradores.
Juntou as pessoas em torno desta iniciativa e distribuíram-se os papéis: Zé Piqueno - o padre; Zé Lola - a viúva; Alfredo Bernardo - o testamentário; e outros atores em papeis secundários.
Dia 25 de Dezembro, depois do jantar, saiu o cortejo fúnebre da oficina do Batata, junto ao Ramadinha, cumprindo todos os preceitos: quatro pessoas segurando o caixão, ramos de flores, padre, lanternas, a Santa Cruz, a viúva muito pesarosa chorando copiosamente e umas quantas pessoas a acompanhá-los em direção à fogueira.
Lá chegados, tomaram as devidas posições e fez-se a missa com toda a pompa e circunstância, não fossem os atores dignos de tanta ousadia e credibilidade.
E a viúva sempre a chorar, desalmadamente e com lágrimas verdadeiras, pelo seu rico marido:
- Ai, mou Calino, mou querido marido que se morreuuuuu! Ai tanta falta me fai! Ai, o meu amor que partiuuuuu!
O povo morria de tanto rir à medida que se dava cada passagem.
Terminada a missa, levaram o caixão para o cemitério, improvisado, e voltaram à fogueira para ser lido o testamento do Calino.
Do testamento constava a divisão do burro, em partes, e seus haveres pela população, de acordo com as necessidades de cada um.
Aqui entrou Alfredo Bernardo, o testamentário.
Lida a introdução do testamento, seguiu-se a distribuição:
- À menina Cristina, deixo-lhe os mous dentes. Bem precisa a marota, pra não espantar os rapazes!
- Ó Ti Zé Mouco, deixo-lhe as minhas orelhas pra oubir melhor. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À menina Anita, deixo-lhe os mous cascos. Coitadinha da piquena! Corre a bila, de cima a baixo, noite e dia quando chega das franças!
- Ó Ti Manel Batata, deixo-lhe as patas pra andar listo e a dreito. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À menina Paula, deixo-lhe os mous olhos. Bem precisa a piquena. Num bê um burro à frente do nariz!
- Ó Ti Octávio Charuto, deixo-lhe o mou rabo. Bem precisa, bem precisa, pra xotar as moscas!
- À menina Maria, deixo-lhe as partes de baixo. Coitadinha da piquena! Num há home que a queira!
Nisto, interrompeu-se a leitura com a viúva aos gritos e suspiros pelo seu querido maridinho. O povo rindo da cena, vê-a a abanar-se com calores…
Prossegue a leitura.
- Ó Ti Jaime Chalão, deixo-lhe o pescoço pra tomar conta do São Brás. Bem precisa, bem precisa!
- À Augusta (do Ti Armando Coto), deixo-lhe o buxo pra deixar de ser biqueira. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- Ó Ti Cacherra, deixo-lhe o lombo pra fazer salpicões. Anda magro como um cão. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Ti Francelina, deixo-lhe as cangalhas pra ir à auga sem canseiras. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Ti Parreco, deixo-lhe a albarda, pra ir bem sentado às olgas acarretar melancias.
- À Ti Aida Padeira, deixo-lhe a tauba de sentar na carroça pra descansar da labuta!
- Ó Chamané, deixo-lhe a cabeçada, pra não andar tresmalhado pela bila fora. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Ti Marquinhas, deixo-lhe a clina pra fazer escovas da roupa!
- Ó Bira Milho, deixo-lhe a charrua. Passa o dia de berga ao alto, a ber se fai alguma cousa!
- À Ti Joaquina Laranja, deixo-lhe a pele pra fazer um tapete. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- Ó Ti Machaloco, deixo-lhe os alforges pra não perder as cousas. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- À Fernanda, deixo-lhe um quarto da traseira pra dar as bacinas.
- Ó Rei, deixo-lhe o arado pra cuidar bem do Cacho!
- À Goreti, deixo-lhe as ferraduras pra não gastar os socos nos passeios. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- Ó Chelas, deixo-lhe o fígado pra fazer boas assaduras nas brasas. Anda pele e osso!
- À Ti Maria Celeste, deixo-lhe a vara pra pôr os alunos listos. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Firmino, deixo-lhe a carroça pra levar a Princesa ao castelo. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Sofia Sementeiras, deixo-lhe os arreios pra prender os fugitibos da terra!
- Ó Ti Mário Grilo, deixo-lhe as tripas pra fazer as chouriças!
- À Ti Amélia, deixo-lhe a cilha pra costurar com tanto dedal que tem. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Ti João Rateiro, deixo-lhe a cabeçada pra não fugir o malandrão!
- À Toninha das Sentenças, deixo-lhe os cântaros pra ir à fonte buscar auga. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- Ó Ti Chico Mirrascas, deixo-lhe as costelas pra tocar os bombos cum elas! Bem lhe calha, bem lhe calha!
- À Lisete, deixo-lhe nabos e jerimuns pra fazer o caldo!
- Ó Ti Manel Sementeiras, deixo-lhe a couraça pra embalsamar.
- À Ti Maria Saias, deixo-lhe o feno para encher um xaragão. Bem lhe calha, bem lhe calha!
- Ó Guicho, deixo-lhe as palas pra andar na rua a dreito. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Maria Eugénia, deixo-lhe as fotos da Terra pra matar saudade lá nos brasis!
- Ó Bitor Laranja, deixo-lhe um pente pra peinar bem os clientes. Bem lhe pinta, bem lhe pinta!
- À Deolinda Cristo, deixo-lhe a garganta pra cantar o fado!
- Ó Jaiminho Moucho, deixo-lhe o coração! O dele está gasto de tanto se apaixonar plas piquenas. Fai-lhe falta, fai-lhe falta!
- À Luisa Choca, deixo-lhe os bofes pra fazer um arrozico bem bô. Bem lhe calha, bem lhe calha!
Finda a leitura do testamento o povo solta grande ovação, com aplausos e gritos de agradecimento, a esta magnífica trupe de atores que tão bem os soube animar no denso frio que se faz sentir nesta época.
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