quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Um dó li tá

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Amanheceu. O tempo serenou. Abrimos a janela e um pássaro canta na frescura da árvore vestida de ouro, em tempo outonal. Desligamos a Televisão… deixamos de entender o mundo. As certezas de ontem são as incertezas de hoje. Não há passado porque se perdeu no desrespeito pela tradição... e se ignorou a dignidade humana instituída. Não há presente porque se afoga nos calabouços do medo e do tempo incerto. Não há futuro porque não se pode planear…prever…a lógica da incerteza fragiliza os mais frágeis que vivem o presente sem horizontes de amanhã, sem a frescura renovadora da esperança.
Hoje, ainda tomamos o pequeno-almoço pela manhã no recato da nossa casa… Quantos dias poderemos tomar o pequeno-almoço pela manha? Não sabemos… vivemos no sobressalto… no medo do saque consentido… na eminência da pobreza planeada. Tudo legal. Quem duvida da legalidade do Despacho, da Portaria, do Decreto-Lei, da Lei que todos os dias…pela calada da noite nos delapida o património…nos saqueia as magras reformas…nos retira serviços de proximidade… nos comprometem a saúde…nos fragilizam as escolas.
Gostava de saber de um sítio onde não houvesse Estado… onde as Leis assentassem na honradez dos vizinhos…regressar ao Comunitarismo… cultivar a horta…criar o porco e as galinhas… viver em paz com os vizinhos na esperança que não me saqueassem o renovo, nem me assaltassem a capoeira.
Mas não vale a pena sonhar…os velhos comunitarismos são uma miragem… o reino maravilhoso do Torga… morre paulatinamente… grande é o deserto!
O Povo continua a votar no seu Partido… a comprar o tractor maior do que o do vizinho… a assistir resignadamente à morte dos idosos… as crianças deixaram de jogar ao pião e ao giroflé… giroflá na cerca da escola… E um dia breve... talvez a última criança, do tal reino maravilhoso que morre duma forma ignóbil, legal e consentida às mãos do Poder de Lisboa dirá sozinha a última lenga-lenga, na imensidão dos destroços dos casebres abandonados:

Um dó li tá
Cara de amendoá
Um segredo
Colorido
Quem está livre, livre está. 
Em cima do piano está um copo de veneno, 
quem bebeu morreu, 
o azar foi mesmo teu!

...não acreditem... hoje acordei mais cinzento... não acreditem... temos que agarrar a esperança... nem que seja a ultima esperança!
Nos dias mais cinzentos é quando se ouve, duma forma mais vibrante e clamorosa o Hino sagrado da Maria da Fonte:

"É avante Portugueses 
É avante sem temer 
Pela santa Liberdade 
Triunfar ou perecer"


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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