segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Rua dos Oleiros

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Artéria estruturante da cidade era no meu tempo de menino um espaço, fervilhante de vida e cor.
Passada a livraria Silva, hoje Rosa d' Ouro, havia uma Barbearia que tal como a Ideal no começo da Alexandre Herculano, era ponto de encontro dos homens bons da Cidade. Era a Barbearia do Snr Luís Barros pai do Cândido e do João e os que a frequentavam, não perdiam o seu tempo, pois a conversa era constante e profícua. A pré-disposição para o diálogo incessante e os ditos brejeiros de alguns menos ponderados na linguagem faziam da Barbearia do Snr Luís Barros um ponto de encontro de duas gerações de brigantinos que se relacionavam sem complexos ou distinções. 
Um pouco mais acima onde hoje está o Goal Keeper era o talho do Snr Daniel Gonçalves. Foi nesse talho que trabalharam duas das figuras mais castiças e complexas que nasceram em Bragança.
O primeiro por mais velho era chamado de Zé da Roda e era mestre talhante. Homem forte de cara larga e de cor sanguínea, não era violento de seu natural, mas, porque bebia e às vezes demais, era um pouco propenso às zaragatas de taberna por discussões em que o pendor político e contrário à ideologia do Estado Novo era propiciador de uns murros e uns desafios em linguagem de Carroceiro.
A outra personagem que o acompanhava sempre era uma mulher que se distinguia de todas as outras pela sua forma de vestir, fumar e beber. Era a Maria Rapaz que vestia calças masculinas de fazenda, usava cinto de fivela larga e possuía um cabelo preto saudável e bem arranjado que lhe dava um ar de bem cuidada e que esvoaçava ao vento quando conduzia a sua moto, o que ocasionava uma certa estupefação nos estranhos e até nos mais conservadores em questões de moral e ortodoxia. Vestir de homem e guiar mota, fumar e beber como um homem eram atos pouco usuais numa Senhora, mas para a Maria Rapaz isso era apenas uma forma de estar na vida e as pessoas da cidade tinham-na em grande estima pois dava gosto vê-la sempre bem ataviada com os cabelos limpos e bem penteados, independente de preconceitos e imune às críticas da má-língua, era uma figura que viveu connosco até à sua meia-idade tendo saído de Bragança de onde era natural para Lisboa, penso, tendo ficado por lá e sendo quase esquecida pela gente da Cidade.
Este par de amigos e colegas foi protagonista de alguns momentos que pela sua singularidade davam azo às mais distintas formas de comentários pois que, esse defeito nós temo-lo se intuíam do seu estranho modo de estar as mais variadas consequências.
O seu patrão de muitos anos, o Senhor Daniel Gonçalves, era também uma figura cimeira da Rua dos Oleiros e da própria cidade. Para além do Talho possuía uma fábrica de refrigerantes, vulgo, laranjadas, na Separadora, laranjadas essas que tinham qualidade bastante para serem apreciadas pela população que as consumia com prazer. Tinham mais qualidade que as da concorrência e o rótulo ostentava uma imagem parcial do Castelo de Bragança e as palavras Laranjada Castelo.
Sei porque fui amigo dos seus empregados fiéis, Zé Espanhol e Corina que a diferença para melhor era a qualidade da polpa de laranja assim como a qualidade dos aromas que eram adicionados para potenciar o sabor e eram fabricados pela companhia Lucta em Barcelona e que o Senhor Daniel ia diretamente comprar a Espanha. Este grupo de três pessoas cada um à sua maneira contribuíram para o progresso desta terra e para que eu possa escrever estes textos com memórias desta nossa cidade que nos legou este património humano que é o mais precioso de todos. Depois da casa do Inácio que era apenas habitação encontrava-se o Café da Grande Pensão Moderna. Era este edifício, que tinha um aspeto de obra sólida, sede de uma afamada pensão e de um seleto Café que servia particularmente a classe estudantil e respetivos professores e os chamados viajantes que nesse tempo chegavam a Bragança em quantidade.
A meio da rua e oposto à Rua do Paço situava-se a firma mais conceituada da rua, João Miguel Pires & Irmãos, da qual já escrevi uma crónica relatando um pouco do que era o trabalho e os trabalhadores desta firma que teve décadas de serviço à cidade e seu concelho e onde trabalharam homens com carisma que se transformaram em lendas vivas do comércio Brigantino.
Passada a casa dos Coelhos havia uma casa chamada dos Irmãos Gomes. Era um estabelecimento de atoalhados e fazendas em que pontuavam dois irmãos um alto e, poderei dizer, magro e outro baixo e mais cheio. Duas figuras de um conto de Dickens. O mais alto, do tipo mais circunspecto e de falas mais rebuscadas, estava sempre pronto a dar aos miúdos uma lição de boas maneiras e de gramática portuguesa. O mais baixo era mais popular e para além dos afazeres contínuos de medir chita e popeline, ou botões e outras passamanarias adorava encontrar alguém como eu que prestasse atenção às lições de História da Cidade que ele conhecia de fio a pavio. Dois personagens que de tão diferentes se complementavam e com quem aprendi a condescender com os menos aptos e a ser solidário com os mais desfavorecidos. Foi com o mais baixo que aprendi que a unidade militar Grupo de Metralhadoras esteve aquartelada no local onde hoje está a Biblioteca Adriano Moreira, quando era pertença do cabido da Sé velha, Igreja de S. João Baptista. Lamento mas por mais que me esforce não consigo lembrar-me dos seus nomes próprios.



Bragança, 21/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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