quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Alexandre Herculano: "A Morte do Lidador" - (LENDA DO ANO DE 1170)

 — Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão  de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hoje contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta  que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da  frontaria dos mouros.

Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a  quem, pelas muitas batalhas que pelejara e pelo seu valor indomável,  chamavam Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz,  e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara carairo da cidade de Beja, de pouco  tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas  Moniz, estavam com ele, e outro muitos cavaleiros afamados, entre os quais  D. Ligel de Flandres e Mem Moniz — que a festa dos vossos anos, Senhor  Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e  prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de  guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas,  chegados ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar correr por estes  arredores com dez vezes mais lanças do que todas as que estão encostadas nos  lanceiros desta sala de armas.

— Voto a Cristo — atalhou o Lidador — que não cria em que o senhor rei  me houvesse posto nesta torre de Beja para estar assentado à lareira da  chaminé, como velha dona, a espreitar de vez em quando por uma seteira se  cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e  ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar  que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui.

— Bem dito! Bem dito! — exclamarem, dando grandes risadas, os  cavaleiros mancebos.

— Por minha boa espada! — gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado  às lájeas do pavimento — que mente pela gorja quem disser que eu ficarei  aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor  Gonçalo Mendes, podeis montar no vosso ginete, e veremos qual das nossas  lanças bate primeiro em adarga mourisca.

— A cavalo! A cavalo! — gritou outra vez a chusma, com grande alarido.

Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros  descendo os degraus de mármore da torre de Beja e, passados alguns  instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das  fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde  costumava aparecer a mourisma.

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Era um dia do mês de Julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em  grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas  dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que  avizinhavam o teso sobre que a povoação está assentada, viam-se ondear as  searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores  cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido esses campos, quando  formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos  seriam outra vez humedecidos, quando, no mês de Julho, a paveia, cercada  pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí,  como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de  mouros vencidos. A cruz ateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os  coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do  almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida  por Deus.

Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que  diziam, mostrando os alfanges: — "é nossa a terra de Espanha". — O dito  árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio  entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a  última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros das suas bambardes,  nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em  alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos  templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a  mão da Providência — "assim para todo o sempre!"

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo  mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias  do Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um  dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açores  bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas,  embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres dos  seus irmãos! E este ameno dia de Julho devia ser um desses dias porque  suspirava o servo ismaelita.

Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas  mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras  remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem  as bruxas em noites dos seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas  bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger  das folhas secas, e o tinir a espaços de alfanje batendo em ferro de caneleira  ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois  tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só,  aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham  vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de  modorra, as habitações dos pastores além das encostas do Atlas.

No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho carairo de Beja, cumpria os  noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o  campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha  fora pregada a mão num grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco  mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais  longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha  de ferro e a sua boa toledana.

Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea solta pelas campinas de Beja;  trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas,  escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez  e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como  flocos de neve, sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas,  a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram  formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora das suas fundas e  soltos ao vento, o cintilar das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as  ondas de pó que se levantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se levanta  o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de  verão.

Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em  demanda dos mouros; e no horizonte não se veem senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros  caminham. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao  longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da  linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos  matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros;  aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas  se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra,  pousada nos raminhos da giesteira.

A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os  que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos pinhais  começavam já a cobrir mais crespo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se  alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces  tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes  alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas d’Ouro que só defendiam. A  um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia  no zénite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e,  sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas  bordas de um arroio vizinho.

Tinha passado meia hora: por mandado do velho carairo de Beja um  almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa  que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos  bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se  embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar,  com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu  desenfreado através das veigas e desapareceu na selva. O almogávar dormia o  último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de  Beja viram o seu transe do repousar eterno.

— A cavalo! A cavalo! — bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do  Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos  ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e  os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.

Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. — "Alá!  Almoleimar!" — era o que dizia a grita.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás  da escura selva que os encobria: o seu número excedia em cinco vezes o dos  soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza  das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por  grossas cotas de malha do mesmo metal: mas as lanças destes eram mais  robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A  rudeza e a força da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com  a destreza e com a perícia árabes.

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Como longa fita de muitas cores, recamada de fios d’Ouro e refletindo mil  acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía  na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo. em frente deles, os  trinta cavaleiros portugueses, com trezentos homens d'armas, pajens e  escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam  o brado de acometer. Quem visse aquele punhado de cristãos, diante da cópia  d'infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com  fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava  assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das  espadas e lanças portugueses e a rijeza dos braços que as meneavam. De um  contra dez devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que  batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os  companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.

Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embrido  debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a folha de papel  saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam  feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara num só grito por  toda a fileira mourisca.

Encontraram-se! Duas muralhas carairas, balouçadas por violento terramoto,  desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra,  do que este recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos  escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das  que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram  ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as  armas e traspassou o peito com o ferro da sua grossa lança. Deixando-a  depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto  dele estava:

— Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a  seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada  de inimigos, para lhes ladrar, como alcateia de vilãos, do cimo da torre de  menagem.

O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas  palavras, ele topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois  contendores tinham-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a  toledana do carairo de Beja.

Como duas torres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois  capitães inimigos estavam um em frente do outro, firmes nos seus possantes  cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a  imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto  de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso.  Cerrando os dentes com força, descarregou um golpe tremendo sobre o seu  adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro,  e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada  falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo  coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação  dos dois cavaleiros inimigos.

— Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do  meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste  alfanje.

Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale  penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.

O carairo vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a  espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse presa ao punho do cavaleiro  por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom  pedaço pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador voltou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que o seu  senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o carairo de Beja; escorre-lhe o  sangue, envolto em escuma, pelos cantos da boca: traz os olhos torvos de ira:  ai de Almoleimar!

Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os  cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre,  correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador  era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no  gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às  golfadas, cortou a última maldição do agareno.

Mas a espada deste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo  ombro esquerdo o velho carairo e, rompendo a grossa malha do lorigão,  penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre  sangue godo misturado com sangue árabe.

— Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.

E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas  voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fora o brado da sepultura  para o carairo de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como  triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado  envoltas nas malhas descosidas do lorigão.

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Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes,  Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia  tinham praticado maravilhosas façanhas. Mas, entre todos, tornava-se notável  o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e  sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros  de frechas lançadas. De roda dele não se viam senão cadáveres e membros  destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou  baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um  promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e  sobranceiro no meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham  desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.  

Quando o carairo caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas  os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribundo. O Lidador esse  tinha sido posto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de  árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo  trouxera, o tinham transportado para a saga da cavalgada. O tinir dos golpes  era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que  soltavam os feridos derramados pela veiga ensanguentada. Se os mouros,  porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos  portugueses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham  perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas,  escudeiros e pajens.

Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava  rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquele turbilhão rareou vomitando  do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e  gritaram: A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta! Era,  com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com o seu exército  sobre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.  

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Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e  cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o  sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao  pé das andas, que nova revolta era aquela.

— Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão — respondeu  tristemente o pajem. — A Virgem Maria nos acuda, que os senhores  cavaleiros parece recuarem já.

O Lidador cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta. Buscava a sua  boa toledana.

— Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?

— Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de forças!...

— Silêncio! A espada, e um bom ginete.

O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que  andavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de  sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:

— Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou  cavalgada de mouros!

E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.

Ei-lo o velho carairo de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em  campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o  ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita  mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!

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Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador. Os  cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se  enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portugueses. Dois  cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as  armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha. Eram estes o  Espadeiro e Mem Moniz. Quando o carairo assim os viu oferecidos a certa  morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a  espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os  dois, cada um com o seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos  inimigos.

— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste  assistir connosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feio, que estivesses  fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto  eu, velha dona, espreito os mouros com o meu sobrinho junto desta lareira...

— Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, — respondeu o  Lidador em voz sumida — que não perdoais uma palavra sem malícia.

Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do  justo juiz.

Velho sois; bem o mostrais! — acudiu o Espadeiro. — Não cureis de vãs  porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam  chegar-se a nós. Avante, e Santiago!

— Avante, e Santiago! — responderam Gonçalo Mendes e Mem Moniz: e  os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.

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Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de Julho de 1170 se  deram na veiga da caraira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós,  homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada,  medimos pelos nossos ânimos e forças, a força e o ânimo dos bons cavaleiros  portugueses do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das  eras, nas tradições e crónicas, tanto cristãs como agarenas.

Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara  pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe. O  violento abalo que experimentou lhe fez rebentar em torrentes o sangue da  ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto  ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que  com eles se juntara. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de  oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros se tinham descido dos cavalos e pelejavam a  pé. Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha. Entre os  cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não  houve ali olhos que ficassem enxutos. O despeito do próprio Mem Moniz deu  lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:

— Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não  tardará que te sigamos; mas ao imenso, nem tu, nem nós ficaremos sem  vingança!

— Vingança! — bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os  dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha  em céu proceloso.

Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do  morrião.

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Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um  vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo.  Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, ele chegou das  nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome. Se encontrou na  passagem ângulo de torre secular, o mármore converte-se em pó; se  atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a folha mais virente e  frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão  de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um  ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição  de Deus. Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e,  como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno  estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil  mortes que se derramam ao longe. Então faz-se um grande silêncio vêem-se  corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o  gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.

Tal desceu o montante do Espadeiro, roto dos milhares de golpes que o  cavaleiro tinha descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em  pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até  os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.

— Lidador! Lidador! — disse Lourenço Viegas, com voz comprimida. As  lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue  do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas  sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como  desesperados e resolvidos a morrer. Mais de mil inimigos juncavam o campo,  de envolta com os cristãos. A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.

Os portugueses, senhores do campo, celebravam com gritos a vitória. Poucos  havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e  rotas. O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada  tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja.  Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um  sacerdote templário, que fora na cavalgada com a espada cheia de sangue  metida na bainha, salmodiava em voz baixa aquelas palavras do livro da  Sabedoria:

"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum  mortis".

Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)

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