quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Restaurante Cura

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


O Restaurante Machado (O Cura) assim constava de um reclame que estava por cima da porta de entrada e afastado da parede suficientemente para poder ser visto e lido de ambos os lados da rua, era um estabelecimento de grande fama nos meus tempos de menino.
Tinha uma porta de entrada e um painel de vidro como uma montra cujo conteúdo era uma vista total sobre o salão do Restaurante e a janela de passagem da comida e louça da cozinha para o salão.
Nos meus anos de Escola, O Cura era de longe o Restaurante mais afreguesado da Cidade e tinha fama de ser lugar de boa comida e onde o acolhimento era sempre condimentado com votos de boas vindas. Eu não me recordo do Cura sem a Amelinha, no entanto sei que ela nem sempre foi a cabeça pensante do serviço de aprovisionamento, cozinha e sala. Recordo o Snr Machado como um homem corpulento, aliás como todos os seus irmãos, mas de uma bonomia contagiante.
Era no Cura que almoçavam as pessoas mais "finas” da Cidade, assim como a maioria dos viajantes que nesse tempo chegavam a Bragança às dezenas.
Eu particularmente tinha um fascínio por tudo o que conseguia ver da rua e era muito, da azáfama que ocorria quando as refeições estavam a decorrer e a Amelinha servia de “garçonete” e com o seu porte dava um encanto muito particular à sala. O cozinheiro era o Snr Teixeira, marido da Snra Adosinda, viviam no Bairro S. João de Deus e tinham filhos da minha idade.
As especialidades do Cura estavam num cardápio na porta do restaurante e dele constavam pratos saborosíssimos que o Snr Teixeira confecionava sob a supervisão do Snr Machado ou da Amelinha.
Sendo eu miúdo e da Caleja, a minha mente era nesse tempo mais dada a ficar maravilhada com determinados pormenores de etiqueta do que propriamente dos pratos suculentos e rescendentes. Encantava-me ver sentado na mesa perto da "montra" com o prato diante de si o treinador do Desportivo, Pagola, espanhol ou argentino que tinha sempre um babeiro ao pescoço para evitar sujar a camisa que usava sempre alva como a neve. Era um quadro para mim estranho porque me remetia para o babeiro dos bebés, coisa que na cultura caleijense era algo de diminutivo perante os meus pares e ao mesmo tempo uma novidade como uso diário do guardanapo sinal de bom gosto e higiene que só os estrangeiros usavam.
Era o Cura quem no salão que mais tarde fez na parte da casa que dava para a Rua Nova, mais banquetes para casamentos e batizados servia e a vida no Restaurante era um laborar constante onde o dia começava ao raiar da Aurora e terminava aos pregos da noite com o Snr Machado já sem força e a Amelinha que estava na força da vida ainda capaz de continuar pois parecia ter energia que jamais se esgotaria.
Recordo que o grupo que há alguns dias mencionei como fiéis do Chico Machado era ali que reunia e faziam as suas refeições de camaradagem que duravam um dia inteiro sentados à mesa com os melhores acepipes do mundo, onde se incluíam, bom salpicão e chouriça, cabrito assado de Montesinho, vitela mamona, perú estufado, leitão assado e outras maravilhas gastronómicas que só no Cura eram confeccionadas em quantidade e com qualidade que reconhecida por eles era um indicador para os outros.
Recordo-me que a minha mãe quando se arreliava com a garotada desabafava dizendo: -Não morrerdes todos que já estou farta de vós, se isso fosse ia ao Cura pedir uma chocolateira das grandes e fazia-a de café que me havia de consolar. Isto revela o conceito que as pessoas faziam da dimensão do Cura que era como um mito que se inventou para afagar o ego dos que gostavam da boa comida e iam lá para comerem do bom e do melhor.
A casa tinha assim dois gerentes distintos que se complementavam, o Snr Machado, O Cura e a Amelinha que tudo fazia e tudo controlava.
Pessoalmente fui algumas vezes ao Cura como convidado de casamentos ou batizados e umas pouquíssimas ao Restaurante como acompanhante de amigos ou conhecidos. Ia no entanto assiduamente levar Bolos de Noiva ou outras doçarias que nos encomendavam para os referidos banquetes.
Mas tudo na vida acaba e um dia soube da morte do Snr Machado e quando a equipa se fragmenta quase sempre a roda desanda. Prosseguiu a labuta a Amelinha, enfrentando já uma concorrência que crescia a olhos vistos, em 1958 abriu o Poças, em 1959 o Flórida e assim sucessivamente foram abrindo mais, Transmontano, Cruzeiro etc… e também a força da Amelinha dava já sinal de fraqueza.
Ainda perdurou uns anos e a própria Amelinha tentou uma segunda relação com o PVT Gama de Vinhais numa tentativa de apoio moral e de auxílio na compra de abastecimentos. Mas algo aconteceu e infelizmente aquele que foi o mais emblemático Restaurante da Cidade fechou portas e já nem sombra desse passado é visível.
A 16 de Janeiro de 1990 foi o meu pai sepultado e logo de madrugada os noticiários davam conta que tinha começado a 1ª Guerra do Golfo, (Bush Pai). O funeral do meu pai realizou-se às 03:00 da tarde. Havendo passado a noite a velá-lo na Igreja da Sé  e toda a manhã, aceitei o convite do meu compadre Sérgio para almoçar com ele no Cura. Ele comia lá diariamente. À mesa estavam esperando por nós o Snr Gama que era marido da Amelinha, o Senhor Major Tavares, Velho amigo da família, o meu compadre Sérgio e eu próprio. Sentados os quatro em amena cavaqueira surge a Amelinha com uma terrina fumegante de vapor, depositou-a na mesa e disse-me: -Para si que já não deve ter comido disto há muito tempo (eu vivia em Inglaterra) e disse mais: -Fiz esta massa, macarrão com bacalhau que deve estar uma delícia para afagar o estômago e consolar o espírito.
Era o cantar do cisne do mito O Cura, como o meu pai, acabou por essa altura a atividade do que foi o Restaurante brigantino mais famoso durante o século XX.
Despediu-se a Amelinha fazendo uma obra de arte culinária que me deliciou e ainda hoje pressinto no palato.
Nasceu o Restaurante Cura em um tempo, morreu o Restaurante Cura num outro na sequência da velha máxima de Lavoisier: -Nada nasce nem morre tudo se transforma.



Bragança, 22/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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