Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)
Os dados utilizados neste texto me foram passados por uma conhecida minha, a quem me reservo o direito de omitir o nome. As personagens são verdadeiras, ainda que seus nomes sejam fictícios. Os eventos aqui relatados são a mais pura verdade.
Ano de 1959. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá, sempre é festa no casarão denominado “Ponderozza”.
A família Spinnelli mora em Ponderozza! No total são quinze pessoas, entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais tinham o duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa, decorada e festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de pessoas, lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer as compras para que a casa continue funcionando.
A matriarca da família, vovó Raquel, nos seus bons tempos administrava o casarão com mãos de ferro. Ela era rígida quanto à disciplina, à higiene, à moral e à ordem. Não havia uma só empregada que não teve descontado de seu salário a xícara quebrada, o móvel arranhado com a vassoura, a roupa rasgada durante a lavagem ou ao desaparecimento de uma joia ou fruta de cima do armário da cozinha. Vovó Raquel a tudo vigiava; com olhos de lince. Era astuta, decidida, voluntariosa e tirana, além de um pouco malvada.
Dos outros dez familiares, vovó Raquel vigiava os quatro filhos solteirões, que comandavam um a padaria que estava em nome dela; um filho casado, emprestando o suor de seu rosto e toda astúcia possível, aplicando dinheiro no mercado de ações, na compra e venda de bens duráveis, nos aluguéis das cinco casas da vovó, na administração financeira da padaria dos Spinnelli e na atenção à Concheta; a espanhola com quem se casou e que era a vítima preferida da vovó Raquel, nas questiúnculas diárias. Ainda havia as três filhas solteironas: a Hercília, a Constanzza e a Ângela; cuja principal atividade dentro de casa era de exigir obrigações não ortodoxas dos criados e fazer fofocas dos parentes, dos criados, dos vizinhos e etc. Elas não trabalhavam, não estudavam, não ajudavam na faina diária; nada!
Certa feita, a vovó Raquel contratou um pintor de paredes para pintar todo o casarão. O rapaz, de origem gaúcha, descendente de italianos, caiu em graça pelos moradores da casa; especialmente da empregada Gilda (Hermenegilda), uma linda mineira de cabelos escuros e ondulados e corpo exuberante. E, a partir de certo momento, o namoro foi inevitável.
Afinal, o gaúcho trabalhava sozinho e a casa era muito grande. Por isso, a pintura do casarão se estendeu por longos seis meses! O rapaz tinha certo ar senhoril, vestia-se bem, dentro do possível. Usava roupas velhas para trabalhar, mas sempre chegava com roupa bem passada e limpa, era bem articulado e gentil, além de respeitoso. Gilda, que lhe servia o café da manhã, o almoço e a merenda da tarde, foi aos poucos se apaixonando pelo gaúcho. Um gracejo aqui, uma prosa ali, um cochicho acolá; foram se entendendo. Até que a Gilda, quando da conclusão do serviço do gaúcho, anunciou aos patrões (vovó Raquel, filhas e filhos e nora), que iria se casar como gaúcho. Qual não foi o espanto da vovó Raquel e família, quando a Ângela saiu aos soluços da sala onde acabava de ouvir a notícia da boca da Gilda e correu até o quarto, onde se trancou por toda uma tarde uma noite inteira, sem cessar o choro. Obviamente ninguém sabia de que a Ângela também gostava do gaúcho. Vovó Raquel se apercebeu do fato e ficou enfurecida com a empregada Gilda e com a filha Ângela. Ela foi pessoalmente bater à porta do quarto da Gilda e lhe falar umas verdades; não sem antes demitir a Gilda, que toda feliz, abraçou-se ao gaúcho e foram embora de Ponderozza, para sempre.
Quanto à Ângela, com medo da vovó Raquel, resolveu cometer suicídio, tomando todo um vidro de 150 mililitros de GUTALAX, um laxante poderoso.
O fato é que a Ângela foi vítima de forte diarreia, que a deixou hospitalizada por um mês.
Quanto à Gilda, ela enviou um cartão, por ocasião do natal de 1960.
Morava em Bento Gonçalves, lá no Rio Grande do Sul, com a família do gaúcho, numa fazenda com produção de queijos e vinhos.
Já quanto à Ângela, desde o triste episódio passou a ser chamada de GUTA; até pelos criados. E os anos se passaram.
Ano de 1970. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá, sempre era festa no casarão denominado Ponderozza.
A família Spinnelli continua morando em Ponderozza! No total são oito pessoas, entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais tinham o duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa, decorada e festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de pessoas, lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer as compras para que a casa continue funcionando.
A matriarca da família, vovó Raquel, que nos seus bons tempos administrava o casarão com mãos de ferro, agora depois de dois derrames e um infarto, pouco sabe do quê está acontecendo ao seu redor. Está apoplética, abobalhada. Não há uma só empregada que tenha sido maltratada por ela, que não têm lhe dado o troco. Quando a vovó Raquel está comendo uma fruta com gosto, uma das empregadas retira a fruta de suas mãos e ainda lhe dá broncas por comer demais ou por estar sujando o chão. Uma das funções das empregadas a essa época era colocar a vovó Raquel na cadeira de rodas e deixá-la ao sol, de manhã, retirando-a ao meio-dia. Enquanto isso as empregadas ficam falando com os transeuntes e dando broncas e castigos na vovó Raquel.
Certa feita, uma das empregadas percebeu que a vovó só tinha guardado para si um pouco de vaidade; apesar dos derrames e infarto e suas sequelas. Uma vez, uma empregada a vestiu nos melhores trajes, com joias, colares, brincos e pulseiras, maquiou a vovó, perfumou-a e a levou na cadeira de rodas dizendo-lhe que ia tirar fotos dela. Todas elas perceberam o sorriso no rosto daquela outrora megera.
- Ah, ela gosta de se vestir e tirar foto!!!! Pois então vamos lá; dizia uma delas.
E a vovó fazia poses em sorriso infantil, enquanto a serviçal disparava flashes sobre flashes; naturalmente a máquina fotográfica não tinha filme.
É de notar que as filhas que ainda estavam vivas, como a Guta e a Hercília, também faziam essa pequena maldade com a vovó Raquel.
Sempre que uma das filhas estava triste ou ansiosa por algum motivo, vestiam a vovó, a maquiavam e a convidavam para tirar fotos.
E assim passaram os anos. Em 1975 faleceram a Guta e a Hercília e um dos dois solteirões ainda vivos. A vovó Raquel os acompanharia em 1977. Morreu calmamente em plena Rua Catumbi, no Belenzinho, na calçada do casarão Ponderozza, bem vestida e maquiada; certa de que ia posar para mais uma sessão de fotos.
Em 1980 o casarão foi demolido, para que uma linha do Trem Metropolitano passasse pelo Belenzinho.
- Pena que não haja nenhuma foto da vovó Raquel, para ilustrar este texto.
Ano de 1959. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá, sempre é festa no casarão denominado “Ponderozza”.
A família Spinnelli mora em Ponderozza! No total são quinze pessoas, entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais tinham o duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa, decorada e festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de pessoas, lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer as compras para que a casa continue funcionando.
A matriarca da família, vovó Raquel, nos seus bons tempos administrava o casarão com mãos de ferro. Ela era rígida quanto à disciplina, à higiene, à moral e à ordem. Não havia uma só empregada que não teve descontado de seu salário a xícara quebrada, o móvel arranhado com a vassoura, a roupa rasgada durante a lavagem ou ao desaparecimento de uma joia ou fruta de cima do armário da cozinha. Vovó Raquel a tudo vigiava; com olhos de lince. Era astuta, decidida, voluntariosa e tirana, além de um pouco malvada.
Dos outros dez familiares, vovó Raquel vigiava os quatro filhos solteirões, que comandavam um a padaria que estava em nome dela; um filho casado, emprestando o suor de seu rosto e toda astúcia possível, aplicando dinheiro no mercado de ações, na compra e venda de bens duráveis, nos aluguéis das cinco casas da vovó, na administração financeira da padaria dos Spinnelli e na atenção à Concheta; a espanhola com quem se casou e que era a vítima preferida da vovó Raquel, nas questiúnculas diárias. Ainda havia as três filhas solteironas: a Hercília, a Constanzza e a Ângela; cuja principal atividade dentro de casa era de exigir obrigações não ortodoxas dos criados e fazer fofocas dos parentes, dos criados, dos vizinhos e etc. Elas não trabalhavam, não estudavam, não ajudavam na faina diária; nada!
Certa feita, a vovó Raquel contratou um pintor de paredes para pintar todo o casarão. O rapaz, de origem gaúcha, descendente de italianos, caiu em graça pelos moradores da casa; especialmente da empregada Gilda (Hermenegilda), uma linda mineira de cabelos escuros e ondulados e corpo exuberante. E, a partir de certo momento, o namoro foi inevitável.
Afinal, o gaúcho trabalhava sozinho e a casa era muito grande. Por isso, a pintura do casarão se estendeu por longos seis meses! O rapaz tinha certo ar senhoril, vestia-se bem, dentro do possível. Usava roupas velhas para trabalhar, mas sempre chegava com roupa bem passada e limpa, era bem articulado e gentil, além de respeitoso. Gilda, que lhe servia o café da manhã, o almoço e a merenda da tarde, foi aos poucos se apaixonando pelo gaúcho. Um gracejo aqui, uma prosa ali, um cochicho acolá; foram se entendendo. Até que a Gilda, quando da conclusão do serviço do gaúcho, anunciou aos patrões (vovó Raquel, filhas e filhos e nora), que iria se casar como gaúcho. Qual não foi o espanto da vovó Raquel e família, quando a Ângela saiu aos soluços da sala onde acabava de ouvir a notícia da boca da Gilda e correu até o quarto, onde se trancou por toda uma tarde uma noite inteira, sem cessar o choro. Obviamente ninguém sabia de que a Ângela também gostava do gaúcho. Vovó Raquel se apercebeu do fato e ficou enfurecida com a empregada Gilda e com a filha Ângela. Ela foi pessoalmente bater à porta do quarto da Gilda e lhe falar umas verdades; não sem antes demitir a Gilda, que toda feliz, abraçou-se ao gaúcho e foram embora de Ponderozza, para sempre.
Quanto à Ângela, com medo da vovó Raquel, resolveu cometer suicídio, tomando todo um vidro de 150 mililitros de GUTALAX, um laxante poderoso.
O fato é que a Ângela foi vítima de forte diarreia, que a deixou hospitalizada por um mês.
Quanto à Gilda, ela enviou um cartão, por ocasião do natal de 1960.
Morava em Bento Gonçalves, lá no Rio Grande do Sul, com a família do gaúcho, numa fazenda com produção de queijos e vinhos.
Já quanto à Ângela, desde o triste episódio passou a ser chamada de GUTA; até pelos criados. E os anos se passaram.
Ano de 1970. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá, sempre era festa no casarão denominado Ponderozza.
A família Spinnelli continua morando em Ponderozza! No total são oito pessoas, entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais tinham o duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa, decorada e festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de pessoas, lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer as compras para que a casa continue funcionando.
A matriarca da família, vovó Raquel, que nos seus bons tempos administrava o casarão com mãos de ferro, agora depois de dois derrames e um infarto, pouco sabe do quê está acontecendo ao seu redor. Está apoplética, abobalhada. Não há uma só empregada que tenha sido maltratada por ela, que não têm lhe dado o troco. Quando a vovó Raquel está comendo uma fruta com gosto, uma das empregadas retira a fruta de suas mãos e ainda lhe dá broncas por comer demais ou por estar sujando o chão. Uma das funções das empregadas a essa época era colocar a vovó Raquel na cadeira de rodas e deixá-la ao sol, de manhã, retirando-a ao meio-dia. Enquanto isso as empregadas ficam falando com os transeuntes e dando broncas e castigos na vovó Raquel.
Certa feita, uma das empregadas percebeu que a vovó só tinha guardado para si um pouco de vaidade; apesar dos derrames e infarto e suas sequelas. Uma vez, uma empregada a vestiu nos melhores trajes, com joias, colares, brincos e pulseiras, maquiou a vovó, perfumou-a e a levou na cadeira de rodas dizendo-lhe que ia tirar fotos dela. Todas elas perceberam o sorriso no rosto daquela outrora megera.
- Ah, ela gosta de se vestir e tirar foto!!!! Pois então vamos lá; dizia uma delas.
E a vovó fazia poses em sorriso infantil, enquanto a serviçal disparava flashes sobre flashes; naturalmente a máquina fotográfica não tinha filme.
É de notar que as filhas que ainda estavam vivas, como a Guta e a Hercília, também faziam essa pequena maldade com a vovó Raquel.
Sempre que uma das filhas estava triste ou ansiosa por algum motivo, vestiam a vovó, a maquiavam e a convidavam para tirar fotos.
E assim passaram os anos. Em 1975 faleceram a Guta e a Hercília e um dos dois solteirões ainda vivos. A vovó Raquel os acompanharia em 1977. Morreu calmamente em plena Rua Catumbi, no Belenzinho, na calçada do casarão Ponderozza, bem vestida e maquiada; certa de que ia posar para mais uma sessão de fotos.
Em 1980 o casarão foi demolido, para que uma linha do Trem Metropolitano passasse pelo Belenzinho.
- Pena que não haja nenhuma foto da vovó Raquel, para ilustrar este texto.
Criado em 2011
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.
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