Alcides Meirinhos (Conto e narração), Ruben Martins (Sonoplastia) e Paulo Gusmão (Apoio à produção)
A Boneca Negra – Um conto de Natal (versão em língua portuguesa)
Havia dois cepos ao lume, sinal de festa ou matança, pois a maior parte da invernada a fuligem das paredes e dos caibros acrescentava-se com o fumo de dois paus trazidos à falsa fé de terrenos baldios e iluminado por meio pavio enfiado no cadeado da chaminé, em lança, em direção para fora. Então, apenas o luzir do olhar quebrava o mortiço e o negro da cozinha forrada com meia dúzia de varas de fumeiro. Pelo menos haveria botelo no Natal e nos Reis, uma escuridão longa como noite de inverno onde entrava pelas frestas das telhas cavalo que serviam de chaminé um raio de lua clareada pela geada. Negras e frias as noites encostadas a cada fim de mês das matanças e do Menino Jesus, menos aquela noite de lume forte: pote a evaporar o cheiro do polvo com batatas e couves; candeia a petróleo; torrão espanhol; e meia quarta de nozes e amêndoas compradas na feira do Naso a uns comerciantes de por aí abaixo das arribas. Oh! Que a ceia ia ser de arromba. Também poderia debicar as uvas guardadas em ramalhete no hall de entrada desde o tempo das vindimas! Todos os dias a olhar para elas e apenas naquela noite lhe deitaria o dente depois de tanta saliva ter engolido imaginando o sabor que ainda teriam.
Margarida, feita arvéola abanando o rabo pelo lajedo de xisto da cozinha, ora saltava de um escano para outro, ora se assomava ao hall de entrada olhando em direção aos pendurados de uvas de rei, oferecia-se para ajudar a pôr a mesa, encabriolava-se ao colo do irmão mais velho que viera de França pela primeira vez após o ano anterior ter passado a salto, ou então pedia ao Vítor que lhe contasse uma história. Uma salta-pocinhas!
- Ah! Sabes? Perguntou ele. Hoje, depois de cearmos, sim te conto a história do Menino Jesus.
Mal mastigou as batatas e o polvo, tanta a vontade que tinha em ouvir a história. Vítor já andava no quarto ano do seminário em Bragança e sabia urdir bem a coisa. Uma vez até fugiu de lá para ir ser agricultor, de trator e tudo! Valeu a mãe que mandou recado à Guarda Republicana de Vimioso para que o prendessem a ele e ao companheiro e por isso teve que voltar para trás à procura da leira de letras que deixara a meio. Sim a pensou mas no final saiu-se mal, agora que tinha conversa isso tinha. Dizia-as tão bem que quase toda a gente acreditava nele. Nem o sermão do bispo no Naso encandeava tanto como as palavras sérias de Vítor. Com certeza que iria dar um padre de primeira água.
Ainda o azeite reluzia na covinha do queixo de Margarida quando o irmão entre duas garfadas começa com ar sério e sabedor de histórias:
- Sabes que festa é hoje?
- Hoje não! Dizem que amanhã é dia de visitar um Menino nu que colocaram numas palhinhas de centeio no presépio que fizeram o outro dia na igreja. Tinha tanto musgo que trouxeram nuns cestos dos muros do fundo do povo! Quem mo contou foi a Tia Bárbara. Fiquei com bem vontade de alguns bonecos para brincar: uns cordeirinhos; um burro; uma vaquinha; até havia uns que estavam vestidos de reis! E nem me deixaram pegar-lhes. Por isso tenho que me valer das pedras e dos bugalhos para bonecas.
- Pois esse Menino vai a nascer esta noite!
- Então não nasceu já? Perguntou Margarida do alto dos seus cinco anos acabados de fazer.
- Sim, retorquiu Vítor, mas sabes que todos os anos o Natal é a festa do Menino Jesus. Também todos os anos, quando nasce, o Menino Jesus desce pela chaminé e deixa coisinhas e lembranças nos sapatinhos que as pessoas colocam a jeito junto à pedra do lume, ou na chaminé.
De imediato os olhos de Margarida pareciam dois raios e como um bonequinho elástico depressa saltou do escano, lançou-se em correria em direção ao quarto e em menos de nada se apresentou com o seu único par de sapatos, uns sapatinhos de ilhós feitos em calfe amarelo que o seu pai tinha comprado na feira a fim de verão. Rodeou a mesa, varreu um cantinho junto à pedra do lume e já se preparava para os deixar ali, não um mas os dois, porque se esse Menino que dizem deixava coisas num sapatinho, então nos dois melhor parte lhe caberia. E logo a ela a quem nunca ninguém lhe havia dado nada a não ser a sua mãe, uma vez, uma varinha de rebuçado de São Marcos, agora mais do que isso nem um vestido de boneca sequer … e se for uma boneca? Pensou. Tanto como ela queria ter uma boneca com pernas, braços, cabelo para pentear, vestidos para despir e vestir, lavar, coser. Óh mãe! Que boas tardes de bonecas passaria.
- Não os podes deixar ainda porque Ele só vem depois de toda a gente estar na cama a dormir. Sabes que se vê pessoas espanta-se e depois deixa tudo numas casas e nada noutras!
- Eu também o quero ver – retorquiu ela – e bem gostaria que este ano me deixasse algo, Ele que nunca me deixou nada!
- Olha, depois de cear e de irmos dormir, basta que deixes um sapatinho no canto da pedra do lume a ver se amanhã tem alguma coisa lá.
Outro remédio não teria, mas só um? E tão pequenino? Ainda cabia lá uma bonequinha ou então uma bolsinha de berlindes de vidro, ou o que o Menino Jesus pudesse abaixar pela corrente da caldeira, mas a boneca sempre seria mais leve que os berlindes.
Comeu das uvas que tanto desejara, nozes, torrão, mas a ideia ia sempre a bater no sapatinho amarelo que haveria de deixar ao pé do borralho. Após mais umas histórias, cepos desfeitos em brasa e tições pequeninos, ficou o silêncio da noite apenas cortado de onde em onde pelo piar do mocho no olmo da cegonha. E Margarida de ouvido fora das mantas a ver se sentia o soar do cadeado da caldeira ou o desviar das telhas para que o sapatinho não ficasse em jejum … até que adormeceu.
Manhã cedo, antes de sua mãe acender o lume, Margarida atirou-se da cama como um foguete em direção ao sapatinho amarelo, segurou-o mas não viu nada, depois chocalhou um pouco, dentro uma moeda de cinquenta centavos …
- Vítor!!! Vítóóóó´… só me deixou uma coroa!!
- O quê? Ahn! Sabes? respondeu o irmão, é que no primeiro anos deixa sempre a pouco.
Enfeixou-se a voz, apetecia-lhe chorar, mas dado era dado.
- Olha que foi bem unhas de fome comigo o Menino Jesus. Se faz assim em todas as casas não haverá muitas crianças a gostar dele!
Quando teve a primeira boneca, noutro Natal talvez, negra, trazida de Martinique por uma francesa patroa de sua mãe, veio-lhe à memória o negro da fuligem que cobria as paredes da cozinha em Portugal e a coroa a chocalhar no sapatinho como quem zomba e atira um tostão pelas frestas das telhas.
Tão longe vivia o Menino Jesus de Margarida!
Tierras de Miranda, esta Tierra Mágica, bibeiro de eimigrantes fuora i andrento de l sou paíç, solo a muito custo sal de la Eidade Média ne ls anhos 60 de séclo XX. Malgarida i la sue mona, son ls protagonistas riales desta cuonta que ye tamien l speilho de las raízes que fázen cun que ls mirandeses rejístan por adonde quiera que báian an busca de melhor bida.
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