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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Senhora da Paz

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")



Era já noite e o garotio da Caleja escapava-se para a rua depois do jantar. O pontão, local de reunião e rebuliço ganhava de novo fôlego que quase se extinguiria após serem gastas as últimas forças nas pernas e braços dos rapazes e os olhos das meninas sentissem as pálpebras pesarem, fazendo a cabeça oscilar num movimento lânguido de sonolência.
Ainda fazia frio, embora o Natal já fosse passado e os Reis do Oriente, tivessem regressado por outros caminhos que não os que apontavam a Jerusalém.
As expectativas de aventuras para aquela noite eram mínimas, e não foi sem surpresa que se começaram a ouvir vozes que entoavam uma ladainha compassada que os garotos logo pressentiram ser de um grupo de pessoas em movimento cadenciado! Surgiam lampejos ocres nas paredes das casas do lado da Taberna do Francês que eram o reflexo da luz das velas acesas que todos os do grupo que entoava tal litania e que sem exceção de um que fosse, cuidavam que não se extinguisse com a brisa fria que ainda soprava e não se despediria até que fosse dia claro de novo.
Era o grupo dos fiéis da Senhora da Paz, que anualmente homenageava a Virgem por este tempo, porfiando assim para que Ela intercedesse pelos homens que desejavam a Paz que fora suprimida brutalmente entre 1914 e 1918, numa Europa que já vira outras antes, mas que naquele tempo assistiu à maior carnificina até ali ocasionada pela loucura da 1a Guerra Mundial. (WW1). Assinado o Armistício e declarada a Paz pediam os crentes bragançanos que a Mãe de Deus não se olvidasse de requerer a manutenção deste estado pacífico da humanidade para que houvesse, Paz entre os Homens.
Largamos a brincadeira e fomo-nos chegando para a casa onde se encontrava inserido na parede à altura de meia janela e entre as duas rasgadas no primeiro andar um nicho com porta de vidro contendo uma imagem duns trinta centímetros de altura representando a Virgem com o Menino a que chamavam Senhora da Paz. Por essa altura do ano, o nicho era enfeitado com uma fileira de lâmpadas elétricas no bordo exterior, sobrepostas ao caixilho de madeira de castanho que sustinha o vidro que por sua vez mantinha a imagem resguardada dos elementos. Dentro ladeando a Imagem mais duas lâmpadas, estas um pouco mais fortes, que iluminavam a Virgem tornando-a resplandecente, como que para nos lembrar que era tempo de pagar o tributo devido e que só prescreveria quando a devota Maria Zé se juntasse no além aos que lá se encontravam desde os tempos de tal barbaridade genocida.
Soube nesse dia da promessa feita pela Senhora Maria Zé da Caleja das Pedras de até que o seu tempo se cumprisse mandar iluminar num certo tempo do ano a Imagem da Senhora da Paz que estava no nicho da fachada daquela casa da Rua do Norte que é a Rua que serve o acesso à Rua S. João de Deus, antiga Caleja do Forte. (Estávamos em casa, portanto). A iluminação era feita invariavelmente pelo tio Armando da Luz, pai do Alberto Bucha, que talvez por trabalhar na Central, fosse a pessoa mais indicada para tal incumbimento, pois fazia a parte institucional e a civil sem ter de ultrapassar barreiras burocráticas. 
Chegava entretanto ao local o grupo de fiéis que eu via pela primeira vez e que seguiria como se de algo transcendente se tratasse nessa noite e nos anos seguintes até, talvez à minha ida para a tropa. Sinceramente, não sei precisar quando deixei de o fazer, pois há aqui um hiato que não me deixa fazer tal raciocínio.
O grupo era composto por gente minha conhecida, na sua maioria operários e à frente vinha o porta-estandarte, que alçava uma cruz, que ela própria estava também decorada com lâmpadas de fraca voltagem que eram alimentadas por uma pilha em forma de paralelepípedo, que o tio Armando da Luz transportava no bolso do casaco e do qual saíam dois fios elétricos que as alimentavam. Soube a seguir que o cortejo havia partido da Sé Catedral e seguiria em direção à Flôr da Ponte onde na fachada da casa do Senhor Armando Bento se encontrava um painel de azulejo com outra imagem, onde se deteriam, para depois das orações da praxe passarem na Capela do Senhor dos Aflitos, Rua do Norte, Cemitério Público, Seminário de S. José e terminar na Sé Catedral, onde havia começado. As paragens à laia de Via Sacra eram designadas por Excelências.
Cantava-se assim às ordens de um mandante a Excelência correspondente a cada paragem. A nossa era a 3a e se a memória não me falha rezava assim: -Em mandamento lhe ofereço, uma Avé Maria à Senhora, à Excelente mãe de Deus e à Sua divina C'roa. (coroa). Seguia-se o canto, reza das orações da liturgia, Padre-nosso, Avé Maria, Santa Maria e Glória. As orações faziam-se com todo o cortejo ajoelhado exceto o porta-estandarte e o mandante.
Era significativo o número de fiéis, que com a realidade da emigração em massa para França foi paulatinamente diminuindo de ano para ano, até à sua extinção, talvez imposta pelo falecimento da Senhora Maria Zé, tendo também como precipitador o facto atrás mencionado. Devo confessar que me foi sempre impossível fazer o percurso completo, pois como se realizava à noite, o controlo da minha mãe era mais apertado e a minha participação-acompanhamento era feita por parcelas para não levantar suspeitas de absentismo. Assim poucas vezes estive no Início (Sé) e falhei várias vezes o Seminário. Ir e voltar ao Sabor em pleno Verão sem que minha mãe notasse era fácil, mas fugas à noite tornavam-se mais difíceis a não ser por curtos espaços de tempo. Assim estava presente na Flôr da Ponte, Senhor dos Aflitos, Rua do Norte e Cemitério. Falhava o Seminário e conforme fosse mais rápido ou demorado falhava ou não o fecho na Sé.
Falta dizer que as velas eram presente do Machadinho, Sacristão que guardava os "cotos" das velas e no-los entregava nesse dia com a incumbência manifesta de gerirmos a sua duração até ao fim. Havia assim um apaga/acende que obrigava a maior uso da caixa dos fósforos.
Não terei engenho e arte para descrever o ambiente de verdadeira comunhão popular que o número de participantes e o efeito do canto em que a litania quase contínua, tornarão difíceis de transpor para o texto o quase êxtase vivenciado num ritual submetido à ortodoxia da Igreja Católica mas com todos os indícios de culto pagão, espontâneo e indomável. Exauriu-se por si mesmo no destino implacável que a Natureza destinou à obra realizada pela mão e vontade humana! (Eu sou nuvem passageira, que como o vento se vai, eu sou como um cristal bonito, que se quebra quando cai/// Não adianta escrever seu nome numa pedra/Porque essa pedra /em pó vai-se transformar...) (Hermes Aquino 1976).
Foi o cortejo da Senhora da Paz um dos atos espontâneos de fervor popular mais genuínos e impressivos, guardados na minha memória.
Ao tentar hoje, fazer uma reflexão de tal ação verdadeiramente agregadora de vontades e crenças no povo da cidade, concluo que o movimento nasceu da vontade e fervor da senhora Maria Zé que com a sua promessa iniciou um período novo em termos religiosos só possível pela constatação da cúpula da Igreja diocesana que era imparável o sentimento sem baias que o contivessem de o povo organizar um ato quase de desagravo à sua imaginada protetora sem que a liderança passasse pelo clero que pelos usos de séculos sempre esteve à frente dos atos em que se glorificava a entidade divina. É também verdade que se espontânea foi a sua génese, da mesma forma se extinguiu, já que o movimento de pessoas em direção ao ponto onde o conforto é possível, faz-se contra todas as forças impeditivas de tal desidério que é essencial ao progresso da humanidade.
Foi com o retorno ao território onde a guerra foi mais cruel para o povo português (e.g.La Lys, 09/04/1918-Flandres) que se fez o desagravo com as Forças negativas do cosmos que nos couberam, e por desígnios insondáveis marcaram Bragança e marcaram-me a mim reflexamente e ainda hoje são uma equação não completamente resolvida.




Bragança 12/12/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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