Edificado num lugar de beleza ímpar, o Eremitério de Santo André, próximo da aldeia de Cércio, exibe por cima do arco a representação da forma como o santo foi executado no século I d. C. |
O sol tímido espreitava entre os montes numa tarde gelada de Março. A neve misturada com a chuva miudinha ensopava-me. Alguns abutres teimavam em voar no meio deste ambiente tempestuoso.
O Douro Internacional é um lugar majestoso. Ao longo de um percurso de vários quilómetros, erguem-se enormes arribas, guardiãs de um passado remoto. As marcas desta presença estão por todo o lado. Caçadores, guerreiros, pastores, monges e agricultores todos eles influenciaram um território que, apesar de fortemente humanizado, continua quase intocado.
Com alguma imaginação, não é difícil conceber as grandes manadas que percorriam este espaço na pré-história, conduzidas por caçadores-recolectores. Mais tarde, fixaram-se comunidades que, do alto destes penhascos, controlavam um vasto território. O Império Romano, com a sua fúria centralizadora, chegou e também dominou esta região periférica. As villae rústicas – que, nesta região, seriam semelhantes às quintas modestas – estabeleceram-se no planalto sobranceiro às arribas. Durante gerações, os impérios nasceram e tombaram e a ocupação humana persistiu, tentando domesticar uma paisagem bravia.
O cristianismo chegou por fim e moldou o mundo antigo, estabelecendo um elo que resiste até aos nossos dias. Assim tenhamos os óculos certos para espreitar essa transformação, subjacente às camadas de erosão e apropriação.
Apesar de agora já não existirem xamãs por aqui, nem práticas mágicas, os velhos ritos perduram numa aculturação perfeita entre o sagrado e o profano. Subsistem “numa camada por baixo do cristianismo, que aprisionou as práticas pagãs destes lugares”. As palavras certeiras são proferidas pelo padre Manuel Marques de Bragança em conversa durante a procissão da Festa de São João das Arribas, em Maio, que acompanhei. O cortejo começa na Igreja da Aldeia Nova e termina em São João das Arribas. Faz-se sentir calor como um teste à fé, mas cerca de uma centena de pessoas marcha rumo ao objectivo como muitas outras fizeram antes delas. “Como o cristianismo não conseguiu erradicar as antigas crenças, levantou capelas e substituiu a antiga divindade pelo santo católico”, continua o meu interlocutor.
São João Evangelista, o mais novo apóstolo de Jesus, sacraliza o antigo castro, lugar pagão. Em terra de ocupação humana dispersa, o santo escolhido é homem porque ajuda na procriação. O santuário pagão onde o druida cuidava do carvalho sagrado tem agora implantada uma igreja e, no meio da nova edificação, lá está uma estela romana, um capitel e mais um punhado de materiais reaproveitados. É um passado que espreita a todo o momento, como dizia um dos maiores pensadores da cultura transmontana do século XX, o abade de Baçal.
A magia das arribas do Douro continuou nos séculos seguintes, convidando à reflexão e à espiritualidade. Num espaço de meditação, o cristianismo edificou pequenas ermidas nos séculos XV e XVI em lugares de enorme deslumbramento, ligados muito provavelmente a itinerários de santidade.
Nas ermidas, recolhia-se um pequeno número de frades em oração e contemplação de Deus. Na tradição do antigo ascetismo quase contemporâneo da fundação do cristianismo, pequenas comunidades de monges estabeleceram-se por todo o mundo antigo. Ninguém sabe ainda a que ordens pertenceram os homens que ocuparam este território nessa altura, mas as marcas da sua passagem permaneceram nas fragas do Douro.
Santo André em Cércio, São Facundo em Urrós, Os Santos no limite das freguesias de Sendim e Picote, Senhora da Teixeira em Torre de Moncorvo, são topónimos bem presentes no coração da terra transmontana e indícios de uma cultura preservada na tradição oral.
No caminho para o Eremitério de Santo André, acompanhado por um morador da aldeia de Cércio, vamos percorrendo velhos caminhos de contrabando. Há sessenta anos, “a travessia ilegal de uma fronteira era uma tarefa heróica”, confidencia António Domingues, o meu guia. O rio determinava a esperança de uma vida melhor, travando ou permitindo o sonho de alcançar a Europa para lá dos Pirenéus. Schengen era ainda designação desconhecida.
A travessia do grande rio ibérico do Norte era também o passaporte para amealhar mais alguns escudos e ultrapassar existências miseráveis.
O contrabando, documentado desde a década de 1930 nos ficheiros das polícias de fronteira mas provavelmente anterior, tentava suprir necessidades básicas. Levava-se bacalhau, café, açúcar e sabão e trazia-se peças de vestuário, tecidos, bilhas de barro, colorau, entre outros. Era um jogo permanente com a zelosa polícia de fronteira que amiúde disparava a matar para manter este espaço inviolável.
Se nesse passado relativamente recente estes percursos eram zonas de risco, hoje conduzem-nos a locais de sonho, por onde quase não passam agora os seres humanos. As ruínas da ermida de Santo André debruçam-se sobre o rio num ambiente que não custa imaginar perfeito para quem se entregava à oração. Entre a vegetação que nunca se compadece com a colonização de espaços monumentais sagrados ou profanos, pequenos nichos já não guardam as imagens de santos. Alguns sarcófagos abandonados e um espaço revolvido revelam sinais da crença comum em todos estes lugares perdidos em que histórias mirabolantes de tesouro acompanham o imaginário popular e muitas vezes destroem inutilmente vestígios históricos insubstituíveis.
A verdade sobre estas comunidades costuma ser bastante mais prosaica. Vieram, instalaram-se, desapareceram – do seu rasto, ficaram apenas as rochas.
O pequeno lugar de culto ainda lá está, apesar de arruinado, orientado para a cidade de Jerusalém, património de várias religiões. Por cima do arco, a imagem da cruz de Santo André persiste. Ornamenta um templo onde o voto de pobreza seria o traço mais evidente. Uma vez mais, a linha do tempo devolve-nos o passado. Na aldeia de Cércio, continua a contar-se uma história a propósito deste Eremitério.
Muito antes do tempo dos avós dos nossos avós, viviam aqui quatro frades. Três iam à missa do outro lado do rio e deixavam para trás o quarto frade, por ser glutão. Invariavelmente, o frade guloso chegava antes à missa e ao alimento, para surpresa dos restantes. Cruzava as águas do Douro, protegido pelo seu manto. Religião e magia misturam-se nas regiões onde a autoridade tem mais dificuldade em uniformizar crenças.
O abandono a que estão votados estes espaços é confrangedor. Muitas destas ruínas carecem de uma intervenção urgente sob o risco de património único, classificado durante o século XX, se perder para sempre. Apesar de tudo, “é surpreendente a resiliência do abrigo da ermida dos Santos”, admite Lúcia Cardoso Rosas, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Os frescos estão bastante danificados por quase quinhentos invernos e verões impiedosos, mas permanecem in situ, pacientes e aguardando um eventual restauro que os salvaguarde. Um estudo sobre Eremitérios no território transmontano dirigido por esta investigadora revelou um conjunto significativo de espaços edificados ao ar livre sob rocha granítica com orientações geográficas de nascente e sul e um conjunto de painéis com pintura mural sobre reboco notáveis e absolutamente inéditos em Portugal.
Nova observação atenta ao painel revela a coroação de Nossa Senhora pela Santíssima Trindade, São Paulo Apóstolo, a conversação entre Santo Antão e São Paulo Eremita e a crucificação. É um mural completo, um livro de pedra com cinco séculos.
A marca de 1553 presente num dos painéis confere uma datação mais precisa para este espaço de recolhimento. A água abundante permitia o estabelecimento de hortas e, com elas, a produção de alimentos para os frades que viviam em completo isolamento. A coroação pela Santíssima Trindade de Nossa Senhora (representada de olhos baixos e ladeada por Deus Pai e pelo Filho segurando a coroa, com a pomba do Espírito Santo envolta em luz) decora o maior dos três painéis. No lado esquerdo, São Paulo Apóstolo contempla a cena com uma espada ao ombro.
Num painel distinto, figuram Santo Antão, nascido em 251 d.C., em visita a São Paulo Eremita (229 d.C.). O diálogo entre os dois eremitas remete-nos para a vida de dois santos que viveram nos primeiros séculos do cristianismo.
A vocação eremítica do abrigo está por isso bem patente na própria temática dos frescos. Neste período, o Império Romano do Ocidente começava a dar os primeiros sinais de colapso e o cristianismo, como escreveu mais tarde Agostinho de Hipona que assistiu ao primeiro saque de Roma em 410 d.C., faria a sua refundação.
O império não sobreviveu na Europa, mas a Igreja protegeu e salvou de certa forma parte do seu legado cultural. Os textos antigos chegaram até aos nossos dias pela mão de monges copistas em mosteiros, que funcionaram como fiéis depositários dos saberes clássicos e estas obras estão na base da cultura europeia. Homens como Severino Boécio, considerado o último romano e o primeiro escolástico que viveu entre os séculos V/VI d.C., traduziram as obras de Aristóteles com comentários explicativos.
Enquanto os santos impressionam pela sua beleza, quando chegamos ao Eremitério da Senhora da Teixeira, a visão é arrebatadora. A abóbada é baixa, requerendo a submissão de quem nela penetrava. Para entrar, o eremita penetrava por uma passagem que o obrigava a rastejar, saindo depois de joelhos, o que o colocaria na posição mais humilde perante o altar. Toda a simbólica apela ao desprendimento material destes homens entregues a Deus.
A pintura mural retratando cenas da vida de Cristo encerra um santuário que nos esmaga pela sua qualidade pictórica. Por momentos, podemos pensar que estamos noutra Capela Sistina. Lutando contra a provável angústia motivada pela falta de espaço, o artista encontrou uma solução engenhosa para a representação da Última Ceia. Aqui, a mesa passou a ser redonda e Cristo consola carinhosamente São João Evangelista.
Esta simples cena, representada sucessivamente pelos melhores artistas da história com diversas interpretações e orientações estilísticas, provocou há poucos anos uma enorme polémica com o escritor Dan Brown, cuja interpretação da cena o conduziu a conclusões polémicas. Na parede de uma ermida esquecida, a Última Ceia está igualmente representada, singela e sublime, tal como o artista quinhentista anónimo aqui a concebeu.
A ermida tem mais um aspecto curioso, pois foi implantada em terreno privado, que pertence à mesma família há várias gerações. O proprietário, César Abel Gomes, gosta de contar que o avô foi um destacado maçon, que não escondia as suas fortes posições anticlericais. No entanto, como em tudo na vida, existem excepções. Para ele, o Eremitério da Senhora da Teixeira recaía fora do âmbito dessa recriminação.
A celebração de missa no domingo seguinte à Páscoa foi uma tradição inquebrável, mesmo nessa fase. Ainda hoje, o padre lá vai e a procissão antecede o ofício. Vem à memória o célebre poema de Miguel Torga: “Não tenho mais palavras / Gastei-as a negar-te / (Só a negar-te eu pude combater / O terror de te ver / Em toda a parte.) / Fosse qual fosse o chão da caminhada / Era certa a meu lado / A divina presença impertinente / Do teu vulto calado / E paciente…”
A peregrinação prossegue e os caminhos levam-nos a Picote, em Terras de Miranda. Nesta aldeia, o passado histórico posto a descoberto nos inúmeros achados arqueológicos com diferentes datações exprime a antiguidade do povoamento aqui desenvolvido. É provável que o Picote tenha desempenhado um papel de santuário durante séculos. A sua localização sobranceira ao Douro Internacional terá sido terreno para ritos proto-históricos. As gravuras incrustadas na rocha um pouco por todo o lado, as estelas com simbologias xamânicas e a ocupação romana são vestígios de um passado grandioso que o tempo não fez esquecer.
No meio de todo este mosaico histórico, uma descoberta recente colocou à vista uma pintura mural de meados do século XVI na igreja românica de Santo Cristo, no Picote, que originalmente seria dedicada a São João Baptista.
A imagem da sua decapitação durante o Império Romano está lá representada, lembrando que os ciclos políticos começam e acabam, mas os ícones religiosos têm uma ressonância potencialmente mais duradoura.
Joaquim Inácio Caetano, conservador-restaurador doutorado em História de Arte, com intenso trabalho nesta área, tem a convicção de que o artista que pintou os frescos das paredes laterais da capela-mor, campanha distinta da da parede fundeira, da Igreja de Picote pode ser o mesmo que trabalhou noutras igrejas de Espanha, nomeadamente da comarca de Sayago na província de Zamora. Alguns aspectos estilísticos, técnicas, o tipo de reboco e as incisões revelam um intenso intercâmbio entre os dois países no que toca à pintura mural em espaços eclesiásticos. O restauro total destes frescos que hoje podem ser contemplados por quem visita esta terra bem no coração de Trás-os-Montes é um excelente exemplo da valorização do património.
Uma vez mais, a igreja assenta no passado longínquo – aras romanas foram postas a descoberto na intervenção no espaço. Olho para uma das colunas na igreja e reparo que, no meio dos blocos nus de granito, está implantada uma inscrição romana. Este pormenor recorda-me um texto do abade de Baçal nas suas “Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança”: “A Igreja não só cristianizou os loca sacra com capelinhas e cruzes, mas também aproveitou habilmente a devoção pagã, canalizando-a no sentido cristão.”
Texto e fotografias: Hugo Marques
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