E se um caga-lérias qualquer armado em guicho perguntar a um transmontano “É verdade que vocês usam bô em tudo o que dizem?”, ele vai responder ao lapantim: “Bô, eu cá não concordo nada.”
Desde muito pequeno que me lembro dessa interjeição. O meu pai, beirão por nascimento, transmontano por adoção, usava-a e, sempre que ia a Chaves ou a Bragança, ouvia-a, variadíssimas vezes e em diferentes contextos, ao ponto de não a conseguir interpretar corretamente e ter que pedir explicações. Logo me disseram que queria dizer tudo e não queria dizer nada, ao mesmo tempo.
Na altura, fiquei resignado com a justificação. Demorei alguns anos a questionar-me novamente. A verdade é que, na maioria das vezes, não valorizamos e nem sequer nos apercebemos de que, todos nós, somos bibliotecas vivas e dicionários em permanente atualização. Por esse motivo, são geralmente as pessoas de outras regiões que nos chamam a atenção para determinada palavra ou expressão que usamos e à qual o ouvinte reagiu, por não conseguir descodificar o seu sentido. Eu, que sou do Porto, só me apercebi de que a expressão “à minha beira” é propriedade quase exclusiva dos nortenhos quando, num programa de televisão, o apresentador, que tinha passado parte da sua vida no Norte, salientou esse facto, quando, a propósito de algum assunto, lhe dizia que estava ali, “sentado à sua beira”. No Sul, usam “junto de mim”. Não tem a mesma força nem a mesma paixão, digo eu. Tal como “Bô”. É das palavras mais pequenas, mas das que mais significados e estados de espírito abrangem!
Bô, bendita região transmontana! É terra de gente de respeito, de trabalho, de grande coração, que tão depressa promete uma arrochada a quem o tenta guilhar, como oferece a sua melhor canhona ao amigo. Gente de asseio que não preza bodalhices, seja uma carranha fora do local certo, seja a cama emboligada de forfalha. É terra abençoada, um cibinho de céu ao alcance de todos.
Um abraço arrochado para todos!
Ora essa! | Bom | Não acredito
Em termos de classificação morfológica, “Bô” é apenas uma interjeição, a forma antiga e popular do adjetivo bom. Mas para os transmontanos é muito mais do que isso. É uma expressão utilizada, ainda nos nossos dias, quase diariamente por muitos milhares de falantes e, curiosamente, serve para várias situações. Bô, sejamos honestos: serve para quase tudo!
Este interjeição tanto pode designar espanto ou incredulidade, como desconfiança como ainda simplesmente funcionar como cajado de ajuda linguística para dar tempo a pensar no que se vai dizer a seguir. Na verdade, é praticamente impossível definir o seu significado. A forma como o transmontano a pronuncia e entoa pode ajudar um pouco a descodificar o seu real sentido, mas isso é um código que só quem é de Trás-os-Montes domina. Dependendo do contexto, pode querer dizer “Ora essa!”, “Estás a tentar enrolar-me!”, “Pensando bem”, “Bom” e tantas outras coisas.
Por outro lado, introduz uma das expressões mais usuais entre os falantes, que é o celebérrimo “Bô, bem m’eu finto!”, uma espécie de “Fia-te na Virgem e não corras…, que a mim não me enganas!”.
Porcarias | Sujeiras | Falta de asseio
Se pensamos em palavras decorrentes das respetivas palavras, encontramos algumas que, pela sua sonoridade, musicalidade e etimologia nos apetece dizer ou fazer. No que diz respeito a bodalhices, é das que dá muito gozo dizer, mas já se deve pensar um pouco antes de as materializar, pois a palavra é sinónimo de falta de asseio, porcarias. Fazer bodalhices é sujar-se, mas sujar-se em excesso, tal como os porcos gostam de chafurdar na lama. Em Trás-os-Montes, reporta-se a sua utilização a miúde em diversas situações, mas principalmente nas reprimendas ou conselhos dados de mães aos filhos.
A palavra tem uma explicação tão simples quão lógica: vem de bodalho, que significa leitão ou “porco novo”. Assim, se porco origina as porcarias, bodalho transforma-se em bodalhices!
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