De regresso à aldeia nestes dias de festa, o biólogo Paulo Catry leva-nos por ruas e campos de Primavera cheios de vida, onde “há lebres que andam que parecem tolas”. Os coelhos é que nem por isso.
Páscoa 2022
O Interior esquecido renasce nestes dias. Há movimento nas aldeias, vozes animadas soam do lado do café, misturam-se com os sons mais corriqueiros de pardais, estorninhos e andorinhas. Em becos todo o ano abandonados estão agora estacionados carros luzidios, alguns de grandes marcas e de altas cilindradas. É a Páscoa.
Abrem-se janelas de casas que não sabíamos ainda vivas. Dentro, o cheiro familiar evoca nítidas memórias que se julgavam já perdidas. Arejam-se as salas escuras, o sol esgueira-se por entre cantarias e derrama-se num soalho de castanho antigo que desde há meses gelava e humedecia. Estendem-se toalhas e panos bordados. Olhares saudosos espreitam das molduras, de cima do aparador. Reencontram-se vizinhos, chega a formar-se como que uma fila à porta da mercearia da dona Maria.
As sardaniscas não sabem o que pensar de todo este reboliço. Até crianças há a correr na rua, veja-se bem; o melhor é, sem deixar de vigiar os gatos, prestar atenção a estes novos riscos, felizmente já pouco se usam as fisgas.
Este ano a erva não cresceu tanto, faltou-lhe a chuva, mas mesmo assim o quintal precisava de ser limpo (disto discorda um casal de pintassilgos empoleirados nos cardos lilases que mal começaram a florir). Acolá passou uma roçadeira, felizmente já se calou, e os melros saltam furtivos aproveitando a erva curta com deleite. Limoeiros carregados atrás de muros, não há gente que consuma tanta produção. Cheira bem.
Cores da Páscoa no Interior. Foto Paulo Catry |
As andorinhas gritam primeiro e depois conformam-se com a desventura. Bem bastava já o tempo seco, que não deixa juntar a lama necessária à olaria; mesmo debaixo do ninho semiacabado há agora risos e conversas de volta da mesa farta posta no alpendre da moradia. Estas andorinhas-das-chaminés estão um pouco atrasadas, ali ao lado anda uma família precoce com crias voadoras e espevitadas.
No campo de volta da aldeia o verde serve-se de todas as cores: verde-freixo, verde-carvalho, verde-negrilho, verdes tenros de muitos nomes nos prados e de bons paladares para os herbívoros. Flores nas árvores (alvas nos pilriteiros, as mais bonitas nos marmeleiros ou, a Norte, nos cerdeiros). Flores nas courelas e nas bermas dos caminhos. Pudéssemos guardar isto tudo e levar no fim da breve estadia.
Nas veigas e no monte bravio há lebres que andam que parecem tolas. Aos pinotes umas de roda das outras, perdem o medo às pessoas, ficam como cegas quando estão entretidas. São machos atrás de fêmeas que querem e que não querem. São lutas entre os mais rufias. Ele é com cada lebrão que nos salta ao caminho! As lebres reproduzem-se todo o ano, mas há alturas em que que dão mais nas vistas. As crias (geralmente só uma ou duas por ninhada em Portugal) são discretas, amamentadas no máximo um par de vezes ao dia, já depois do sol posto. Nascem de olhos abertos e casaco de pelo completo; não vivem em tocas, têm mobilidade precoce mas mantêm-se sempre bem escondidas.
Lebre Lepus granatensis. Foto: Juan Lacruz/Wiki Commons |
Em muitas terras foram-se os coelhos todos até ao último, levados pelas epidemias*. Já houve um tempo em que os coelhos comiam tudo, não se podia fazer uma horta. Agora, de tão poucos fazem falta aos linces e a tantos outros predadores carnívoros, alguns dos quais acabam por rarear também.
Sempre vaidosa, a Primavera faz que não vê e arranja-se contente com a abundante beleza disponível. Se perguntada, responde aos reparos críticos lembrando que não havendo coelhos há lebres (e das grandes!) para quem insistir numa Páscoa com bichos. E recomenda que oiçam os rouxinóis pelos silvados da ribeira, cantam de noite e de dia.
Entretanto, num instante, abril avança. Fecham-se as casas outra vez. Os carros brilhantes regressam velozes à cidade, levam saudades e deixam a Primavera sossegada, entretida com trabalhos de polinização e de moldagem de ninhos. Na fonte velha a água volta a gorjear no silêncio. Uma raposa noturna, frustrada de não ter pernas para as lebres, afoita-se pelas quelhas empedradas da aldeia já quase vazia.
* Nota: infelizmente as lebres também sofrem com epidemias; recentemente estão a ser bastante afetadas, tanto em Espanha como em Portugal, por uma nova variante de uma estirpe da mixomatose (García-Bocanegra et al 2021. Transbound Emerg Dis)
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