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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O PARRATCHAS

 Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Depois da Tia Genoveva - a parteira e a benzedeira da aldeia - lavar as mãos numa bacia de esmalte e ter cortado o cordão umbilical com uma tesoura enferrujada e desinfectada com aguardente, e lhe ter dado um nó cego, disse para o Ambrósio, que esperava ansioso sentado nas escaleiras da casa:
     - Pronto, Imbrósio. Já ´stá! Tães mais uma rapariga.
    - O que me dizes, J´nobeba?! Mais uma greta parideira?
   - Foi o que Deus quijo. – Respondeu indiferente.
   - Mas num foi o qu´eu qu´ria. E Deus aqui no manda nada, porque no sabe nada do qu´eu preciso- disse desesperado, atirando o chapéu ao chão.
   - Pois é o que Deus te deu e agora já num há nada a fazer – disse virando-lhe as costas e indo embora.
      Ambrósio entrou furioso em casa e disse em tom ameaçador, de dedo em riste para a mulher que acabara de parir uma bela e gordochinha menina:
   - Num tinhas já quatro birgos que te tchigassem?! Inda me destes mais uma greta?! Pois fica já sabendo que s´o próximo rebento que me deres se for mais uma parratcha, nunca mais te monto – ameaçou sem sequer olhar para a filha que mamava como uma desalmada nos fartos seios da tia Camila.
    - Pois sim – limitou-se a Camila a encolher os ombros, aconchegando a recém-nascida.
    Ambrósio tinha vivido os últimos sete meses – desde que soubera que a mulher estava “ prinhada “ – embalado e a flutuar no sonho de ter um rapaz. Já tinha quatro filhas e o seu sonho era ter um filho homem, que o ajudasse na lavoura. As filhas eram, acima de tudo, bocas para alimentar e vestir, aliás, como era o pensamento reinante naquela época sobre as raparigas.
     Todas as noites pedia a todos os Santinhos e, em particular a S. José, que lhe desse um “ pilas “. Tinha até prometido duas voltas de joelhos à capela de Santa Luzia e já tinha escolhido o nome: “ Jesus Salvador Seixas “. Em todas as conversas dizia: Q´ando o meu Salbador nacer...”
        Ambrósio era um homem baixo, chupado de carnes, com as maçãs do rosto e os maxilares salientes. Os olhos pareciam duas cavernas escuras, sem qualquer luminosidade. Tinha, no entanto, um rosto belo, a pele mimosa, “ amerosinha “, sem rugas. Era um trabalhador incansável, labutando de sol a sol, de Domingo a Domingo. A mulher e as filhas mais velhas ajudavam-no no que podiam, mas Ambrósio nunca estava satisfeito. Queria à viva força ter um rapaz. Todo o seu mundo girava à volta disso.!  " Q´ando o meu Salbador nacer...!”
        Sem um filho, Ambrósio era um homem infeliz e desiludido e ao saber que tinha mais um “ grelo “, o mundo desmoronou-se e ficou sem norte.
          Foi para a taberna do Peixoto dizer impropérios contra as mulheres; que não serviam para nada, a não ser mortificar a alma dum homem e que o mundo seria bem melhor sem essa " raça ´scamungada, que só sabem " cumer e arreliar um home ". Como já lhe conheciam o feitio e sabiam da sua forte e obsessiva ambição, deixaram-no carpir as mágoas. Já tinha três raparigas e todos sabiam do seu desejo firme em ter um rapaz para o ajudar na lavoura e agora... Saiu-lhe mais um " pito "! “ Q´al é o home qu´aguenta uma praga destas? “ – Perguntava virando os olhos para o céu. “ Agora tanho cinco parratchas em casa! Quem quer uma parratcha?”- Gritava fora de si. Toda aquela revolta e angústia lhe vinha das vísceras mais recônditas do seu ser. Ambrósio era um homem abandonado pelos deuses; ninguém compreendia a sua necessidade premente de ter um filho!
        - Prá oitra bez tães que le dar com mais força, ó Imbrósio.  – Espicaçou-o o Zé Amado.
     - Tamãe só prometestes duas boltas à capela! Tães que prometer quatro ou cinco – reforçou o Madaleno.
   - No bos meteidens co ele, qu´ind´árranja práqui algum refustedo – repreendeu-os o “ Pressinhas “.
           À medida que ia bebendo iam aumentando as lamúrias e o tom do desespero:  " Quem quer uma parratcha. Agora tanho cinco parratchas lá em casa que só sabem buber e cumer. Quem quer uma parratcha? " - Gritava a plenos pulmões, cambaleando. Ambrósio apanhou uma valente carraspana e foi já sem nenhum equilíbrio para casa. Porém, antes de chegar, tropeçou e caiu à entrada do canelho, passando aí o resto da noite – como acontecia diversas vezes, diga-se de passagem! Quando de manhã alguns populares iam trabalhar, entre eles o Zé Amado, que tinha assistido à cena na taberna, disse em tom jocoso: " Olhó parratchas!!. Alebanta-t´ó parratchas e bai pra casa “. 
        Todos acharam graça e a alcunha foi como um veneno; rapidamente se espalhou por todo o corpo da aldeia. Uma semana depois só já era conhecido pelo " parratchas ".  
        (Este Zé Amado também era Pai de três filhas e de quatro rapazes. Tinha a alcunha do “ andai lá, andai lá “. Esta alcunha vinha-lhe do facto de um dia duas das suas filhas terem ido roubar uvas ao senhor Antero, na vinha do “Concthoso “. À noite, o senhor Antero foi a casa do Zé Amado reclamar e disse-lhe: “ Ó Zé! Olha qu´as tuas filhas foram-m´ às ubas. A ber se as abisas pra no boltarem lá “. O Zé Amado virou-se para as filhas e admoestou-as abanando a cabeça: “ Hum..., hum...Andai lá, andai lá...!”  
         - “ Isso, Zé! Isso! Bolta-mas lá mandar!” – Protestou o Senhor Antero). 
     O Senhor Antero era conhecido pelo seu refinado sentido de humor espirituoso e inteligência psicológica. Um dia o “ Cai - Cai ” bateu-lhe à porta.
      - Ó Senhor Antero. Binha ber se me´mprestaba o seu jerico pra ir a Carbiçais.
     - ´Stá bem. Leba-sio, mas num bás sempr´acabalo. Apeia-te de bez em quando, mormente nas subidas, porqu´inda é um bô sticão.
        - Fiqu´ assossegado. Bou entremeando a cabalo e apiado – garantiu convictamente.
   Quando à noite lhe entregou o jumento, observou o Senhor Antero:
   - Ó...! Caratchos! Inté bem a albarda toda roçada de tanto te subires e desceres, home do catano!
   - Aixe... Que mentira!! Olhe que não, Senhor Antero! Montei - m´aqui e só me desci em Carbiçais.
     O senhor Antero tinha um filho casado que vivia em Leiria, com a mulher e um filho. Um verão em que tinham ido ao Larinho passar as férias, comentava o senhor Antero num adjunto, bastante preocupado:
     “ Cando sa´lbantam, labam-se. Òs pois do mata bitcho, boltam- s´alabar! Ientes do jantar, labam- s´oitra beze! A mesma cousa intes da mrenda e antes da ceia. E despois ainda se boltam a labar-se cando bão prá cama! Arre porra! Nunca bi gente mais porca!”.
     Desconfiamos que foi o Maltês que lhe leu o Ramalho Ortigão.
              Quando o acordaram, em vez de se dirigir para casa, o parratchas foi para o palheiro que tinha arrendado ao Senhor Manuel da Cardanha. Desesperado e mal dizendo a vida, tomou a resolução de viver num pequeno e velho palheiro que ficava para os lados da Canelha do Gabriel, como protesto contra a vontade Divina. Quase todas as noites se embebedava e cedo se transformou numa espécie de circo.
           Era a filha mais velha que lhe levava a comida e bem lhe suplicava:
     - Ande pró pé de nós, meu Pai.
     - No bou. Bou biber aqui.
      - Num seij´assim tão telhudo, meu Pai. Coitada da Mãe - disse num lamento.
     - No mim´tressa. A essa tamãe já le li a pangelina.
     - Mas que curpa é qe´ela tãe? E nós, que curpa é que tenemos?
      - Num sei de quem é a curpa e nem m´intressa. Minha é que no é - disse resoluto.
      - A curpa num é de ninguém, meu Pai. É a bontade Dbina e contra isso a gente no pode fazer nada, a não ser aceitarmos as cousas conform´elas são.
   - Esse Dbino que desça cá baixo que bai ber o que l´acontece. Atão s´ele é bom e miscordioso- c´mo diz o padre - por qué que no me deu um raparigo?! Mais uma parratcha? Quem é que me bai ajudar na laboura? Sim, quem é que m´ajudar a labrar, a segar, a semiar e acarrar e a tirar o ´strume da loje e a ´spalhá-lo? Bá, quem é? - Perguntou indignado de queixo em riste para a filha.
       Naquelas circunstâncias, a filha até compreendia a angústia e a revolta do Pai.
    - Atão... A Mãe e eu tamãe ajudemos no que podemos, no é?
    - Q´ais ajuda! Eu preciso é dum home.
    - Pois ´stá bem, meu Pai, mas num no temos. Pode ser qu´ainda banha - disse a filha em tom amigável para ver se o animava.
      - Agora o qué qu´eu bou fazer com cinco ratchas em casa?! Já biram a minha bida?!
      - Atão o Pai atcha qu´a curpa é da Mãe? Coitada dela, qu´inté nem bem cá co medo qu´o Pai le dê algumas arrotchadas.
      - É ó qu´stá sujeita, por i!
      Por mais argumentos que a filha usasse, não o convencia a ir para casa. E ali viveu cerca de cinco semanas, no meio da palha, do feno e das cavacas. Um dia apareceram - lhe as três filhas com a bebé, estratégia engendrada entre Mãe e filhas.
      - Olhe, meu Pai, que cousa mais linda - disse -lhe a Alzira, a filha mais velha, mostrando-lhe uma menina bochechuda, calma, a querer sorrir com os olhos negros e redondos. Ambrósio olhou de soslaio e indiferente, desviando o olhar. Daí a instantes voltou a olhar e pousou-o demoradamente e com ternura, de modo embevecido naquele rosto divinal e não escondeu um sorriso de felicidade. Alzira pousou-lha nos braços e Ambrósio sentou-se numa facha de palha com a filha ao colo e ficou a contemplá-la por instantes, embevecido.
     - É mais guapa do que todas bós - disse sorrindo, não conseguindo disfarçar a emoção.
      Quando os sentimentos são genuínos, vindos do nosso mais profundo ser, não há disfarce, hipocrisia e arte da encenação que os simule. Toda a verdade, com toda a força visceral, irrompe como um vulcão e nada a impede. Assim aconteceu com os sentimentos recalcados do Ti Ambrósio e este não conseguiu esconder as lágrimas. Abraçou as filhas e pediu-lhes com a mais profunda humildade e simplicidade, sem vergonha de ceder, que o levassem para casa. Fez questão de ser ele a levar a bebé ao colo até casa. Quando chegou, olhou para a mulher de modo acossado e esta disse-lhe a sorrir:  
      - Atão que teima é ess´agora, home de Deus?
     - Oh. - Disse encolhendo os ombros, sem saber o que dizer. – Bá..., lança-me lá uma malga de caldo que ´stou tcheio fome. - Respondeu envergonhado, olhando sorridente para a filha que tinha nos braços, como se aquele "anjo " valesse todas as explicações e todo o perdão do mundo. (" O melhor do mundo são as crianças " - já dizia o poeta).
       Camila recebeu-o com um brilho num olhar cheio de perdão e encheu-lhe uma malga de caldo de grabanços com massa e batata. E assim a harmonia e a felicidade voltou a reinar naquele lar cheio de vida e de esperança. No velho casebre não houve palavras bonitas e inúteis; apenas brotaram sorrisos de alegria e verdadeiros sentimentos a cimentar a dura realidade, baseada na crua, bruta, animalesca e genuína união familiar. Entre aqueles simples e autênticos seres estava consubstanciada a síntese dos sentimentos e ancestrais laços humanos. E quando assim é, só nos resta o silêncio e a paz que o silêncio quase sempre traz.
           Onze meses depois, estava a Tia Genoveba, com a mesma tesoura enferrujada e desinfectada em aguardente, a cortar o cordão umbilical do... Jesus Salvador Seixas!
        Tio Ambrósio deu seis voltas de joelhos à capela de Santa Luzia, apanhou uma bebedeira de oito dias e continuou a " montar " a Tia Camila, em prol do equilíbrio do Universo.

  Texto extraído e adaptado do romance " Por Entre a Solidão das Fragas ", a publicar.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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