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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

A LENDA DAS SETE SENHORAS: Contributo para o estudo da imaginária de vestir em BRAGANÇA - MIRANDA

 DIANA RAFAELA PEREIRA*
Resumo: A Lenda das Sete Senhoras conta que no cimo de sete serras de Bragança, Zamora e Salamanca, estão sete santuários marianos, cujas titulares se vêm e falam entre si. Não existe consenso sobre quais as sete Senhoras, sendo que as diversas versões portuguesas e espanholas diferem quanto às mesmas.
Entre as dezassete habitualmente indicadas, contam-se cinco imagens de vestir portuguesas, as quais constituem o nosso objeto de estudo. São elas as Senhoras da Luz (Constantim), da Assunção (Vilas Boas), do Naso, das Neves (Sambade e Covelas), e do Monte (Duas Igrejas).
Os casos acima identificados são contemplados tendo em conta a origem do seu culto, as sub tipologias escultóricas e os enxovais. Para tal foi imprescindível o contacto direto com as zeladoras, as quais são o principal repositório de memória das vivências que envolvem estes objetos.
Palavras-chave: Imagens de Vestir; Senhoras Ouradas; Devoção Mariana; Trás-os-Montes.
Abstract: The Legend of the Seven Ladies says that on top of seven hills between Bragança, Zamora and Salamanca, there are seven Marian sanctuaries, whose Ladies see and talk amongst each other. there is no consensus about which are the exact seven Ladies, as they differ according to the several Portuguese and Spanish sources. Among the seventeen usually indicated, there are five Portuguese dressed sculptures, which are our study objects. ey are Our Lady of Light (Constantim), of Assumption (Vilas Boas), of Naso, of Snow (Sambade and Covelas), and of the Mount (Duas Igrejas).
Aspects as the origin of their worship, their sub-typologies and their trousseaus are taken into consideration. For such purpose the direct contact with these sculptures’ caretakers is crucial, as they are the main memory repository for the practices involving these objects. Keywords: Dressed Sculptures; Adorned Virgins; Marian Devotion; Trás-os-Montes.

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* FLUP/ CITCEM/ FCT. dianarafaelapereira@gmail.com.
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SAN SIETE E TODAS SAN SANTAS

A Lenda das Siete Senhouras Armanas remonta a tempos incertos e foi transmitida oralmente de geração em geração por terras de Miranda versando que «no alto dos siete cabeços, estan las siete senhoras, san siete e todas san Santas, todas santas e ermanas, a toda a hora se beim e falam todas las manhanas»1.
Em 1942, o pároco e estudioso António Maria Mourinho2 materializou por escrito uma das suas versões que, pelo que nos foi possível apurar, é a versão escrita mais antiga desta tradição que tão bem exemplifica a presença da devoção mariana no nordeste transmontano.
No extenso poema identifica como as sete irmãs as Senhoras do Castelo de Pereña de la Ribera (Salamanca), do Naso (Póvoa), da Assunção de Vilas Boas, da Saúde de Vale de Janeiro, da Serra da Nogueira, das Neves de Sambade e Covelas, e da Luz de Constantim3.
Mas são várias as versões que diferem entre os diversos autores consultados, a memória dos mirandeses inquiridos, e o lado da fronteira, visto ser esta uma lenda partilhada com o imaginário espanhol.
Tal não surpreende, se tivermos em conta os inúmeros santuários marianos localizados no cimo de montes transmontanos, que dependendo da região, se alcançam uns aos outros.
Entre as dezassete4 Senhoras habitualmente indicadas nas diversas versões, contam-se oito imagens de vestir, três espanholas e as cinco portuguesas que constituem o nosso objeto de estudo.
Seriam ainda mais, isto porque através do Santuário Mariano de Fr. Agostinho de Santa Maria, sabemos que as antigas imagens da N.ª S.ª da Serra da Nogueira e da N.ª S.ª da Ribeira de Quintanilha seriam vestidas pelo menos até inícios do séc. XVIII5, mas atualmente são ambas de talha inteira.

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1 OLIVEIRA, 1998: 68.
2 MOURINHO, 1961: 130.
3 MOURINHO, 1961: 14-18.
4 N. S. da Luz; N. S. do Naso; N. S. da Assunção (Castanheira, Mogadouro); N. S. da Serra da Nogueira (Rebordãos); N. S. da Assunção (Vilas Boas); Virgen del Castillo; N. S. da Saúde; N. S. da Ribeira (Quintanilha); Virgen de la Soledad (Trabazos, Zamora), de vestir; N. S. das Neves; N. S. do Amparo (Mirandela); N. S. do Aviso (Serapicos); N. S. de Pereiras/Visitação (Vimioso, Bragança); N. S. do Monte (Duas Igrejas); Virgen de la Salud (Alcañices, Zamora); Virgen de la Encarnación (Villalcampo, Zamora), de vestir; Virgen de Árboles (Carbajales, Zamora), de vestir. MOURINHO, 1961: 14-18; RIBEIRO, 1967: 410; OLIVEIRA, 1998: 68; FEIO, 2012; SEBASTIÁN, 2015. 5 MARIA, 1716: 610-618.
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Salvo possíveis incongruências muitas vezes patentes na obra «mais hagiográfica que historiográfica» de Fr. Agostinho6, não podemos descartar de imediato a veracidade destas e de posteriores descrições, visto que o autor tem o cuidado de referir que obteve informações através de uma relação feita pelo vigário geral de Duas Igrejas, Manoel de Matos Botelho (1661-1744)7.

AS SENHORAS VESTIDAS


A primeira das cinco imagens portuguesas que se mantêm de vestir atualmente é a N.ª S.ª da Luz de Constantim (Miranda do Douro), a mais consensual em todas as versões da Lenda, cujo santuário se situa no alto do cabeço da Luz, na raia portuguesa com Zamora.
Visto que este se encontra num local ermo, a imagem de vestir da Senhora da Luz recolhe-se durante todo o ano à Igreja de N.ª S.ª da Assunção (Matriz de Constantim) e apenas sobe ao seu santuário por altura da romaria e feira internacionais no último fim-de-semana de abril.
Aí passa apenas uma noite, guardada pela Guarda Nacional Republicana (em tempos idos pela juventude da aldeia) para que não seja roubada.
A referida escultura não está datada. Segundo o Santuário Mariano, em inícios do século XVIII a imagem ao culto era «de roca & de vestidos», de estatura grande e com o Menino Jesus nos braços8, aspeto que não se verifica na atual.

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6 GOMES in MARIA, 2006: XXII-XLV.
7 MARIA, 1716: 614; 618; Governador do Bispado de Miranda na ausência do arcebispo D. João Franco de Oliveira, e protonotário apostólico e comissário do Santo Ofício.
8 MARIA, 1716: 637.
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Além desta imagem vestida, existe uma escultura de pedra bastante anterior, atribuída ao século XVI e considerada a imagem original da Senhora da Luz – essa sim com o Menino nos braços e que permanece sempre no seu santuário, mas que não é vestida.
A segunda imagem mais consensual entre as sete irmãs é a N.ª S.ª do Naso (Póvoa, Miranda do Douro). Ao que parece é um dos cultos marianos mais antigos de Trás-os-Montes, que segundo as lendas remonta aos tempos da Reconquista.
O santuário atual, cuja construção se atribui ao século XVI e tendo sofrido várias alterações posteriores, implanta-se perto de uma suposta via romana e de uma lagoa artificial que servia para acumular a água das chuvas numa região naturalmente árida mas cuja atividade principal era a agro-pastorícia9.
Como sublinham António M.ª Mourinho e Francisco Vaz, as lendas conhecidas sobre este culto, associam-no por um lado aos conflitos entre mouros e cristãos durante a Reconquista e, por outro, à feição agro-pastoril da comunidade que ali vivia10.
Fr. Agostinho de Santa Maria relata que: he tradição, que estando em Argel captivo hum homem daquellas partes; se encomendàra com grande fé em huma noyte à mesma Senhora, & que na madrugada seguinte se achara às portas da sua Igreja, de que ainda hoje existem nella por memoria os grilhões do mesmo captivo11.
Sobre a origem do santuário é conhecida outra lenda que relata como a Nossa Senhora apareceu a um pastor que guardava as suas vacas, e lhe disse para ali lhe construir uma capela12.

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9 VAZ, 1995: 258-259.
10 MOURINHO, 1984: 11-13; VAZ, 1995: 258.
11 MARIA, 1716: 631.
12 MOURINHO, 1984: 12.
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Quanto à imagem de vestir em funções, também não tem datação reconhecida.
No Santuário Mariano, Fr. Agostinho descreve uma imagem «de roca & de vestidos», que tal como a da Senhora da Luz tinha cinco palmos e o Menino nos braços13, mas a atual escultura pode ser igualmente posterior.
Em Duas Igrejas (Miranda do Douro) fica o santuário da N.ª S.ª do Monte.
Segundo a tradição, apareceu ali no dia 15 de agosto uma imagem da Senhora sobre uma giesteira a uma pastorinha surda-muda, a qual curou e à qual pediu que transmitisse a toda a gente daquele lugar, a necessidade de lhe construírem ali uma igreja14.
Nesta lenda, à semelhança de inúmeras lendas que relatam o aparecimento de imagens, a população tenta levar a imagem de Nossa Senhora para a igreja paroquial (de St.ª Eufémia) e dedicar-lhe aí um altar, no entanto vê as tentativas frustradas porque a escultura volta continuamente para o lugar onde apareceu, obrigando os devotos a ceder e erigir-lhe uma igreja própria15.
Fr. Agostinho conta-nos que em 1665, a «muyto delicada» imagem «de roca & de vestidos» da N.ª S.ª do Monte terá sobrevivido por milagre à queda de um raio sobre a capela do seu santuário onde o abade celebrava missa e o qual teve morte imediata16. À semelhança das anteriores imagens, não temos como saber se a atual é ainda a mesma descrita por Fr. Agostinho.
Segue-se a N.ª S.ª da Assunção de Vilas Boas (Vila Flor). Segundo Fr. Agostinho, do seu santuário viam-se «as terras de sete Bispados, assim de Portugal, como de Castella»17.

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13 MARIA, 1716: 632.
14 MARIA, 1716: 627-628; MOURINHO, 1983.
15 MARIA, 1716: 627-628.
16 MARIA, 1716: 629-630.
17 MARIA, 1712: 224.
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A origem da edificação primitiva perde-se no tempo, mas datam de 1673 as aparições de Nossa Senhora a uma menina de dez anos chamada Maria, filha de Jacome Trigo, a quem a Virgem terá curado as maleitas, e pedido que se concertasse a sua antiga igreja, deixada ao abandono, e onde naquela altura se recolhia o gado nos dias de verão18.
Perante o sucesso de tais milagres, começaram a chegar de todo o Reino «os Romeyros, & os enfermos, & logo na presença da Senhora cobravaõ perfeytissima saude em todos os seus achaques» 19, tornando-se este um santuário bastante celebre, que em 1837 seria reconstruído como vemos hoje.
A imagem de vestir da Senhora da Assunção, de pequenas dimensões, fica colocada na capela-mor, num nicho do lado da epístola. Parece ser bastante mais recente que as anteriores pelo que, apesar de não se encontrar datada, é atribuível ao séc. XX.
Segundo o Santuário Mariano a imagem em funções era «de escultura de madeyra incorruptível, com estatura de três palmos, & apesar de ser perfeytissimamente obrada, a adornavam (por mayor veneração) com ricas roupas»20.
Além da imagem de vestir existe uma outra escultura anterior da Senhora da Assunção que pode corresponder a esta descrição.
Saem as duas em procissão na Festa de 15 de agosto: a de vestir num grandioso andor com baldaquino carregado por cinquenta homens, e a anterior numa carroça de bois. A romaria é a maior da região e a procissão de onze andores e cerca de cem figuras bíblicas é acompanhada por bandas de música e milhares de peregrinos21.
Por fim refira-se a N.ª S.ª das Neves de Sambade e Covelas (serra de Bornes ou Monte-Mel, Alfândega da Fé), cuja tradição conta que terá aparecido a uma pastora, sobre um castanheiro e entre um círculo de neve, o qual indicava o sítio onde se devia construir a sua capela.

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18 MARIA, 1712: 225-229; LEAL, 1886: 1402.
19 MARIA, 1712: 227-228.
20 MARIA, 1712: 229.
21 FERREIRA, 2015: 130.
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Não há certezas sobre o início do seu culto ou da sua ermida primitiva que foi substituída por uma «moderna» segundo o Portugal Antigo e Moderno de 1878-22.
Desde então o santuário sofreu várias remodelações profundas.
A imagem atual é a mais recente das que aqui analisamos. Substituiu uma anterior também de vestidos em meados do século XX, que segundo a atual zeladora da imagem era ligeiramente mais pequena e «tinha o mundo aos pés»23.
Dela, Pinho Leal disse ser «uma das mais perfeitas de Portugal, que tem sido admirada por diferentes escultores e pintores»24.
A imagem é mudada do seu santuário de Covelas para a Matriz de Sambade no primeiro Domingo de maio e aí fica até ao terceiro Domingo de agosto, dia da Festa, no qual volta em Procissão e passa pelas ruas principais de Sambade.
Após a identificação dos objetos em análise, tornou-se imperativo o contacto direto com as zeladoras ou camareiras responsáveis por vestir as imagens.
Na maioria dos casos as comissões de festas ou confrarias renovam-se a cada dois ou três anos. São tradicionalmente compostas por quatro ou cinco casais e jovens solteiros e solteiras. Ao fim dos anos previstos, os mordomos a sair nomeiam os seguintes.
Às mulheres cabe tratar da limpeza da igreja, da imagem e suas vestes. Aos homens cabe a organização das festas e o transporte dos andores.
No caso da Senhora do Monte, além dos casais, nomeiam-se cinco raparigas
solteiras especificamente para zelar e vestir a imagem. Estas raparigas exercem

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22 LEAL, 1878: 376.
23 Otília Afonso (zeladora de N. S. das Neves), 25/03/2016: entrevista da autora.
24 LEAL, 1878: 376.
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funções durante quatro anos, ou até casarem, e são escolhidas «quando chegam à idade de assumir responsabilidades»25.
Já a camareira da Senhora das Neves voluntariou-se ainda jovem para tratar da imagem e santuário, dedicando-lhe assim grande parte da sua vida26.
Um dos aspetos absolutamente centrais para o estudo da imaginária de vestir, é perceber como são as estruturas escondidas pelas roupas. Embora seja o conjunto final, com vestes e adornos, que permite a leitura iconográfica e devocional do objeto, nunca poderão ser ignorados os seus corpos mais ou menos esculpidos.
No entanto, ao falarmos de imagens devocionais em funções, existem barreiras difíceis de ultrapassar.
Às perguntas «Posso tirar fotografias à imagem sem as roupas» ou «Como é a imagem sem vestes», os entrevistados em Constantim responderam «Não. Você também não gosta que lhe tirem fotos nua, pois não?» e «Isso é um segredo da aldeia, nem os homens sabem». Após alguma insistência, revelaram apenas que a escultura da Senhora da Luz «não é toda inteira»27.
A mesma ocultação sucedeu relativamente às imagens do Naso, de roca28, e de Vilas Boas, cujo pároco descreveu como um corpo completo mas tosco e sem estofado.
Este recato e preocupação em não permitir ver as imagens sem vestes prender-se-há com variadíssimos factores.
Em primeiro lugar, o ato de despir e vestir indicia desde logo nudez. Deste modo, vista como uma verdadeira mulher, a escultura da Virgem deve ser vestida apenas por mulheres e em privado.
Mas na realidade são poucas as imagens de vestir que, de facto, representam nudez anatómica. Na sua maioria indicam a presença de vestes interiores simplificadas com uma policromia plana que cobre todo o corpo a vestir29.
A escultura da Senhora do Monte apresenta um estrutura cónica e oca mas fechada em vez de pernas, deixando entrever apenas um pé. Esta tem uma policromia azul, com pontuais registos vegetalistas, que continua pelo tronco, e a pintura de carnações encontra-se apenas nas mãos, rosto, pescoço e pé existente (ver Fig. 3).
Toda a estrutura tem, assim, o desenho de um vestido interior.
A imagem novecentista da Senhora das Neves tem esculpido um vestido simples que a cobre até aos pés, apenas pintado a azul-escuro, e mostra carnações somente no rosto, pescoço e mãos.

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25 Teresa Lopes (mordoma de N. S. do Monte), 26/03/2016: entrevista da autora.
26 Otília Afonso, 25/03/2016: entrevista da autora.
27 Irene Fernandes; Regina Pimentel (mordomas de N. S. da Luz), 26/03/2016: entrevista da autora.
28 MOURINHO, 1984: 8.
29 QUITES, 2006: 253; PEREIRA, 2014: 101-102; PEREIRA, 2016: 12.
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Existem ainda esculturas de talhe perfeito, policromadas e estofadas, que ainda assim são totalmente vestidas com têxteis, e estão envoltas nesse mesmo sigilo.
Apesar de, no que toca às zeladoras, a questão da ocultação da nudez da Virgem ser essencial, o problema central parece ser o acesso à intimidade com o sacro.
Em Miranda do Douro a mudança de vestes é um ritual restrito em que assistem as mulheres da comunidade, habitualmente escolhidas por nomeação. Trata-se de um privilégio.
Como explica Albert-Llorca, «concéder que l’on puisse les vêtir de pied en cap, c’était ouvrir la possibilité de sacraliser cette opération et ses agents»30.
A paradigmática escultura da N.ª S.ª da Conceição de Vila Viçosa, vestida apenas por mulheres distintas da comunidade, continua a ser um mistério para a mesma.
Em 1683, Cadornega dizia que a matéria da imagem não era determinada31, o que é repetido por Fr. Agostinho que explica que a mesma estava envolta por um tecido branco que nunca se lhe tirava32, e pelo P.e Espanca já no séc. XIX33. Ainda hoje, a escultura, que sabemos ser de pedra, está envolta por um pano que nunca se remove aquando as “mudas”, o que significa que apenas uma escassa minoria
teve a oportunidade de ver a totalidade da escultura até à atualidade.
Encontramo-nos, porventura, perante uma tentativa de restrição do contato direto com o sacro a um mínimo possível, talvez como forma de precaução contra a banalização e generalização do mesmo. Ao mesmo tempo privilegiam-se determinadas personalidades da sociedade e perpetua-se o caráter milagroso dos objetos e inalcançável do sagrado.
Por último, é palpável o grande sentimento de posse por parte das populações a que as imagens de facto pertencem, o que leva a uma necessidade de proteção das mesmas e a alguma desconfiança por quem vem de fora da comunidade.
Os extensos enxovais destas esculturas demonstram bem a ampla devoção que lhes é votada. Cada uma conta com dezenas de vestidos, imponentes mantos, roupas interiores e joias, oferecidos como pagamento de promessas ou simples veneração.
Nos casos mirandeses não existem critérios específicos para vestir as imagens no que respeita a cores e tempos litúrgicos, prevalecendo o gosto das mordomas e das pessoas que oferecem os vestidos, entre os quais predominam cores claras e dourados. Apenas a Senhora da Luz segue a convenção do roxo durante a Quaresma34.

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30 ALBERT-LLORCA, 2002: 153.
31 CADORNEGA, 1983 [1683]: 24.
32 MARIA, 1718: 200-201.
33 ESPANCA, 1985: 73.
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Existe sim a preocupação em seguir um “código de pregas” simétrico, conseguido através de um jogo de alfinetes35.
Os vestidos da N.ª S.ª do Naso seguem sempre o mesmo modelo constituído por corpete, mangas e saia aos quais se junta um cinto, um longo manto e o vestido do Menino36. Já a Senhora da Luz apenas tem vestidos de peça única, peitilho, manto e um cinto com laço frontal37.
A maioria dos vestidos da N.ª S.ª do Monte são também de peça única à qual se adiciona o manto. Ao longo da sua Novena em agosto, os conjuntos trocam-se regularmente por consideração pelos ofertantes que gostam de os ver usados. Para a saída em procissão veste-se o conjunto que não é usado há mais tempo38.
As imagens da N.ª S.ª das Neves e da N.ª S.ª da Assunção só usam o convencional branco e azul.
A primeira conta com dezenas de conjuntos recentes encomendados pela zeladora à Paramentaria Vasconcelos de Braga, mas também com alguns vestidos mais antigos, que não lhe servem (possivelmente pertencentes à antiga escultura substituída) e que recentemente eram usados pelas raparigas que representavam figuras bíblicas nos cortejos processionais39.
Além dos extensos enxovais têxteis, todas estas imagens, umas mais do que outras, são presenteadas com joias que exibem sobretudo em procissão.
Segundo Rosa Mota, as ofertas de objetos áureos são feitas sobretudo por mulheres40.
A doação de peças de joalharia assume um papel especial na aproximação do devoto à santa visto falarmos de objetos pessoais usados pelas ofertantes, o que habitualmente não acontece com as vestes apesar de ainda ser comum a oferta de vestidos de casamento, baptismo ou primeira comunhão.
Ao serem expostas nas imagens as joias impressionam pela quantidade, expressando o grande poder milagroso daquele santo ou santa que a tantos pedidos atendeu ou que tanta comoção move.
A mesma autora conclui que este fenómeno alcança maior presença no interior do país, estando praticamente extinto no litoral, admitindo ainda que é mais comum a imagens de vestir41.

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34 Irene Fernandes; Regina Pimentel, 26/03/2016: entrevista da autora.
35 Teresa Lopes, 26/03/2016: entrevista da autora.
36 Rosalina Falcão (mordoma de N. S. do Naso), 26/03/2016: entrevista da autora.
37 Irene Fernandes; Regina Pimentel, 26/03/2016: entrevista da autora.
38 Teresa Lopes, 26/03/2016: entrevista da autora.
39 Otília Afonso, 25/03/2016: entrevista da autora.
40 MOTA, 2014: 243-244.
41 MOTA, 2014: 257.
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As zeladoras da N.ª S.ª das Neves e da N.ª S.ª da Assunção optam por adornar as imagens com poucas peças, contrariando o carácter expositivo das restantes esculturas em estudo. Por altura das festividades usam-se apenas as coroas douradas, brincos e alguns cordões e medalhas, devidamente guardados longe de olhares alheios ao longo do ano.
Já as Senhoras do Naso, da Luz e do Monte saem em procissão adornadas com complexos sistemas compositivos que primam pela simetria e que ultrapassam o mero carácter ornamental de quando se recolhem ao altar.
O número e a disposição dos ornatos utilizados depende do gosto das zeladoras, mas seguem composições semelhantes, cuja origem se perde na memória mas que é transmitida de geração em geração.
Como sistematizado por Rosa Mota, os adornos são colocados em três níveis: no cabelo, sobre as vestes e em triângulos a partir da coroa e das mãos42.
Sobre as cabeleiras exibem as coroas em ouro. Além destas, a N.ª S.ª do Naso usa uma grinalda de ores, comum a outras imagens da região, e a N.ª S.ª da Luz usa uma grinalda de pérolas. Lateralmente usam dois ou quatro ganchos e brincos compridos.
De seguida o ouro é colocado sobre as vestes: primeiro os colares ao pescoço e de seguida peças soltas são dispostas de forma simétrica do peito até abaixo da cintura, em crescendo de tamanho.
À semelhança do que acontece habitualmente em Espanha, a N.ª S.ª da Luz tem também um peitilho rendado onde se coseram algumas joias numa disposição simétrica.
Por fim, vários fios são arranjados a partir da coroa e das mãos, desenhando triângulos crescentes onde se penduram memórias, massos, borboletas, cruzes, corações, ou medalhas, de maior tamanho consoante se desce43.
Além do ouro, predomina obviamente a oferta de dinheiro, ores e toalhas de altar, mas no caso da Senhora do Monte, são ainda habituais as doações de terras44.
A zeladora da mesma refere que os doadores geralmente pedem segredo e que antigamente havia um desejo maior de mostrar a oferta – inclusivamente colocavam-se fitas de seda na imagem, onde se pregavam notas. Hoje em dia oferece-se de forma anónima, escondendo dinheiro ou joias sob o manto da imagem ou da toalha de altar45.

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42 MOTA, 2014: 263.
43 MOTA, 2014: 262-268.
44 Teresa Lopes, 26/03/2016: entrevista da autora.
45 Idem.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A convivência direta com pessoas responsáveis por guardar e vestir as imagens é uma ferramenta indispensável para esta investigação, já que só assim se entende a vivência e experimentação afetiva destes objetos devocionais e a sua proximidade com os crentes.
Apesar do envolvimento dos homens e da sua função de transporte dos andores, que requer algum sacrifício e dedicação, o fenómeno de vestir imagens da Virgem em Portugal afigura-se, sem dúvida, como uma prática do universo feminino, que privilegia as mulheres no seio das suas comunidades.
Todas as zeladoras expressaram a sua devoção, gosto, sentido de obrigação e honra pelas funções que exercem. Por fim, foi igualmente tangível a preocupação em querer manter vivos os costumes identitários destas comunidades, ameaçadas pela desertificação, e o orgulho na posse de tradições que tantos romeiros trazem às suas aldeias.

BIBLIOGRAFIA
ALBERT-LLORCA, Marlène (2002) – Les Vierges miraculeuses: Légendes et Rituels. Bona: Gallimard.
CADORNEGA, António de Oliveira; TEIXEIRA, Heitor G. [int.] (1983 [1683]) – Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda.
ESPANCA, Joaquim J. R. (1985) – Memórias de Vila Viçosa. «Cadernos Culturais da Câmara Municipal de Vila Viçosa», nº 24. Vila Viçosa: Gráca Calipolense.
FEIO, Rui (2012) – Roteiro do Culto Mariano em Terras de Bragança e Zamora. Bragança: Câmara Municipal de Bragança.
FERREIRA, Soa (2015) – Festas e Romarias: Norte de Portugal. Disponível em <http://www.portoenorte.
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LEAL, Augusto S. A. B. Pinho (1878) – Portugal Antigo e Moderno, Vol. 8. Lisboa: Mattos Moreira & Companhia.
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