Por: António Pires
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Em pleno século XXI, é notório como a nossa sociedade, a nível de mentalidade, ainda não se conseguiu libertar das amarras do feudalismo, período histórico no qual a condição social era a principal virtude para se obter o reconhecimento, o respeito e a consideração dos demais, e onde o ter era inquestionavelmente muito mais importante do que o ser, a essência da pessoa.
Para quem, como eu, a nobreza de espírito e a excelência do ser humano radicam noutros pressupostos, é-me difícil compreender o pretensiosismo ridículo de certos elementos que dela (sociedade) fazem parte.
Para dar uma ideia de como certos preconceitos próprios dos tempos das armaduras, das bestas, dos escudos e das espadas estão cada vez mais presentes e disseminados nos dias de hoje, é atentarmos na passagem seguinte.
Há uns tempos, um jornalista lisboeta, dos quadros da RTP, de visita ocasional a Bragança, foi jantar a um prestigiado restaurantes da cidade. O gerente, pessoa de trato fino e esmerada educação, dirigiu-se ao dito na mais previsível e clássica das abordagens: “ O senhor o que deseja comer?”. Puxando dos galões da autoridade, a pública figura, como que afrontado, respondeu: “Desculpe, faça favor, trate-me por senhor doutor!”.
Não é que duvide da doutorice daqueles que reclamam tal estatuto. Apenas acho presunçoso e pouco elegante a forma como certos indivíduos pretendem granjear a respeitabilidade e a consideração dos outros. Porque títulos como este e outros que tais, conseguidos em Coimbra, ou na menos credível das instituições de ensino, não sendo um direito consignado na Constituição da República, mas decorrente da mais pura convenção social, tal como o respeito e a veneração, não se exigem; merecem-se, conquistam-se naturalmente.
Em que nos baseamos para dizer que tão garboso rótulo releva dum contrato social? Em boa verdade, a forma de tratamento doutor é, etimologicamente falando, muito mais adequada aos professores do que a quem tradicionalmente recebe esse trato: aos médicos e aos advogados; porque ela provém do verbo latino docere, que significa ensinar.
A quem era consagrada, afinal, a distinta e honrosa designação de doctor, na Antiguidade Clássica? Era a um número muito restrito de figuras que dominavam proficientemente todas as áreas do conhecimento: a Retórica, a Matemática, a Filosofia, a Gramática, a Medicina, a Astronomia, etc. Como essas doutas personalidades foram rareando com o passar dos séculos, e porque até ao século XIX assistimos à total e completa autonomia (emancipação) destas ciências – “desmembramento” que teve início ainda na Idade Média – essa designação passou a ser atribuída a quem era versado apenas num dado ramo do saber. Como consequência, a partir dos finais desse mesmo século, na mais perfeita subversão etimológica do termo “doutor”, a sociedade convencionou que os médicos e os advogados haveriam de ser tratados reverentemente por “dê erres”. Daí à generalização foi um passo: no último quartel do século XX – sem qualquer rigor cronológico -, todos os licenciados, independentemente da área de formação, passaram a ser, no país da saudade, abrangidos por esta honorífica distinção; ao ponto de se tornar, ainda que cada vez mais banal e corriqueira, um culto obsessivo para determinados indivíduos.
Há, no entanto, quem, numa clara intenção de “separar o trigo do joio”, defenda que doutor é a pessoa que possui o grau de mestre; e professor quem tem o doutoramento. Ora, só desconhecendo o actual sistema de ensino, se pode conceber que tais conceitos se reduzam à subjectiva linearidade da hierarquia académica. Senão, vejamos: hoje é possível, por exemplo, não na Cidade dos Brinquedos, onde reside o Noddy, mas no País do Fado, uma pessoa com o 9º ano de escolaridade, ou até menos, feito ou não através do método de cruzes, obter o doutoramento em apenas seis anos. Ou seja, fica com mais habilitações literárias do que a competentíssima e muito profissional pediatra dos meus filhos.
Confesso, era minha intenção escrever qualquer coisa alusiva ao Natal. Mudei de ideias, porque o homem que vem desde a Lapónia, com a barriga da prosperidade, fato vermelho e barbas branquinhas, apenas povoa o imaginário das crianças.
N B: Para os que, no exercício da docência, exigem aos alunos e funcionários o tratamento de doutor, deixo aqui a opinião de D. Pedro I, Imperador do Brasil, acerca desta profissão – com a qual estou inteiramente de acordo: “Se não fosse imperador, desejaria ser professor. Não conheço missão maior e mais nobre que a de dirigir as inteligências jovens e preparar os homens futuros”.
Para quem, como eu, a nobreza de espírito e a excelência do ser humano radicam noutros pressupostos, é-me difícil compreender o pretensiosismo ridículo de certos elementos que dela (sociedade) fazem parte.
Para dar uma ideia de como certos preconceitos próprios dos tempos das armaduras, das bestas, dos escudos e das espadas estão cada vez mais presentes e disseminados nos dias de hoje, é atentarmos na passagem seguinte.
Há uns tempos, um jornalista lisboeta, dos quadros da RTP, de visita ocasional a Bragança, foi jantar a um prestigiado restaurantes da cidade. O gerente, pessoa de trato fino e esmerada educação, dirigiu-se ao dito na mais previsível e clássica das abordagens: “ O senhor o que deseja comer?”. Puxando dos galões da autoridade, a pública figura, como que afrontado, respondeu: “Desculpe, faça favor, trate-me por senhor doutor!”.
Não é que duvide da doutorice daqueles que reclamam tal estatuto. Apenas acho presunçoso e pouco elegante a forma como certos indivíduos pretendem granjear a respeitabilidade e a consideração dos outros. Porque títulos como este e outros que tais, conseguidos em Coimbra, ou na menos credível das instituições de ensino, não sendo um direito consignado na Constituição da República, mas decorrente da mais pura convenção social, tal como o respeito e a veneração, não se exigem; merecem-se, conquistam-se naturalmente.
Em que nos baseamos para dizer que tão garboso rótulo releva dum contrato social? Em boa verdade, a forma de tratamento doutor é, etimologicamente falando, muito mais adequada aos professores do que a quem tradicionalmente recebe esse trato: aos médicos e aos advogados; porque ela provém do verbo latino docere, que significa ensinar.
A quem era consagrada, afinal, a distinta e honrosa designação de doctor, na Antiguidade Clássica? Era a um número muito restrito de figuras que dominavam proficientemente todas as áreas do conhecimento: a Retórica, a Matemática, a Filosofia, a Gramática, a Medicina, a Astronomia, etc. Como essas doutas personalidades foram rareando com o passar dos séculos, e porque até ao século XIX assistimos à total e completa autonomia (emancipação) destas ciências – “desmembramento” que teve início ainda na Idade Média – essa designação passou a ser atribuída a quem era versado apenas num dado ramo do saber. Como consequência, a partir dos finais desse mesmo século, na mais perfeita subversão etimológica do termo “doutor”, a sociedade convencionou que os médicos e os advogados haveriam de ser tratados reverentemente por “dê erres”. Daí à generalização foi um passo: no último quartel do século XX – sem qualquer rigor cronológico -, todos os licenciados, independentemente da área de formação, passaram a ser, no país da saudade, abrangidos por esta honorífica distinção; ao ponto de se tornar, ainda que cada vez mais banal e corriqueira, um culto obsessivo para determinados indivíduos.
Há, no entanto, quem, numa clara intenção de “separar o trigo do joio”, defenda que doutor é a pessoa que possui o grau de mestre; e professor quem tem o doutoramento. Ora, só desconhecendo o actual sistema de ensino, se pode conceber que tais conceitos se reduzam à subjectiva linearidade da hierarquia académica. Senão, vejamos: hoje é possível, por exemplo, não na Cidade dos Brinquedos, onde reside o Noddy, mas no País do Fado, uma pessoa com o 9º ano de escolaridade, ou até menos, feito ou não através do método de cruzes, obter o doutoramento em apenas seis anos. Ou seja, fica com mais habilitações literárias do que a competentíssima e muito profissional pediatra dos meus filhos.
Confesso, era minha intenção escrever qualquer coisa alusiva ao Natal. Mudei de ideias, porque o homem que vem desde a Lapónia, com a barriga da prosperidade, fato vermelho e barbas branquinhas, apenas povoa o imaginário das crianças.
N B: Para os que, no exercício da docência, exigem aos alunos e funcionários o tratamento de doutor, deixo aqui a opinião de D. Pedro I, Imperador do Brasil, acerca desta profissão – com a qual estou inteiramente de acordo: “Se não fosse imperador, desejaria ser professor. Não conheço missão maior e mais nobre que a de dirigir as inteligências jovens e preparar os homens futuros”.
Ter, 19/12/2006
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