Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Alguém disse uma vez que a palavra cão não morde. Podíamos acrescentar que a palavra ébola não é contagiosa, bosta não cheira mal nem suja as solas dos sapatos, pobreza não faz um rico descer de classe, e assim por diante. As palavras referem-se àquilo a que chamamos a realidade. Como alguns aspetos dela evocam sentimentos desagradáveis, ou até penosos, transferimos esses sentimentos para as palavras que os designam, que ganham assim um valor emotivo para além do significado que têm no dicionário. Quando tal acontece podemos evitar pronunciá-las e ouvi-las, mas se isso não for possível reagimos a elas com as mesmas sensações de medo, desprezo, raiva, nojo, que teríamos na presença das próprias coisas.
O contrário também é verdadeiro. Há palavras que nos caem no goto porque de alguma forma se ligam a algo que desejamos ter ou ser. Usá-las pode ainda dar-nos a ilusão de participar ativamente no que está a acontecer à nossa volta, de não perder pitada. Há tempos uma adolescente dizia-me com o ar mais ressentido do mundo que tinha mudado de escola porque sofria “bullying” por parte dos colegas e da diretora de turma. Tadita, mas como poderia ela resistir a um estrangeirismo que não podia estar mais na berra? Por outro lado, sendo a linguagem socialização, usar certas palavras num grupo significa que queremos pertencer-lhe. Lembro-me bem do prazer que os jovens esquerdistas da minha geração experimentávamos entremeando as conversas políticas com “contexto” para aqui, “infraestrutura” para ali, entre milhentas novidades verbais que a revolução tinha trazido. Por essa altura tive um amigo que não conseguia dizer nada sem enfiar “pcebes, ptanto, pá?” na parte final das frases. De uma assentada juntava três bordões que, isolados, todos usávamos à farta por achar que davam um ar prá frentex, aquilo que na altura fazíamos questão de ser.
Os tempos mudaram. Mas continua a ser como forma de afirmar o desejo de ser reconhecida entre os pares e mostrar-se atual que a ganapada de hoje tem necessidade de saltear os discursos com aquele irritante “tipo” (irritante para quem, como eu, já se esqueceu do que dizia). É pela mesma razão que há quem ache proveitos e vantagens coisa ultrapassada, preferindo “mais-valias”, “valor acrescentado”, e se por acaso estes forem o produto de “um novo conceito”, então nem se fala. A propósito de novos conceitos, note-se que agora as notícias se tornam “virais” num piscar de olhos, a mesma rapidez com que “chocam” as pessoas, razão pela qual redes sociais e títulos noticiosos fervilham de gente “revoltada”, para quem “indignação” e “exigência” são sentimentos dominantes. E como nesses suportes informativos também todos “acusam” todos do que calha, pouco se faz também que não seja para “arrasar”.
É nessa mesma linha que quase já não se atribui a um evento, por mais insignificante, classificação inferior a “um espetáculo” e que perceções corriqueiras se obrigam a ser “espetaculares”. Há dias, nos dois segundos que passei num canal de tv falava-se de umas férias “brutais”. Fugi tão depressa quanto o polegar mo permitiu, mas fui-me esbarrar noutro, este de culinária, onde alguém referia o sabor “épico” de um bolo. Nada de estranhar, afinal, se tivermos em conta que o pessoal delira por se entregar a coisas “radicais”. E por falar nisso, haverá coisa mais radical do que uma maria qualquer ter milhares de “seguidores” que tanto lhe podem idolatrar o traseiro a poder de “likes” como atormentá-la porque numa das fotos “postadas” exibiu uma pontinha de celulite?
O que ressalta de muitas destas e outras modernas palermices é a vontade de exagerar sensações e emoções, dar a ideia de que se está em todas e se vive intensamente. O tempo atual já é frenético, assoberbados que estamos por essa fonte de inquietação – os media – que nos induz a ter e a parecer, mais do que a ser. Mas como inda há por aí calma, serenidade e reflexão quanto baste, estados de espírito que desencorajam grandes despesas, para incrementar os negócios torna-se necessário hollyhoodizar a realidade: criar ação e drama, suscitar empolgamento, excitação, ansiedade, carência. No fundo, sentimentos que levam as pessoas a buscar algo que as preencha e acalme, quer dizer, a consumir mais. Não há crise, o mercado tem sempre um produto à medida de cada necessidade.
O contrário também é verdadeiro. Há palavras que nos caem no goto porque de alguma forma se ligam a algo que desejamos ter ou ser. Usá-las pode ainda dar-nos a ilusão de participar ativamente no que está a acontecer à nossa volta, de não perder pitada. Há tempos uma adolescente dizia-me com o ar mais ressentido do mundo que tinha mudado de escola porque sofria “bullying” por parte dos colegas e da diretora de turma. Tadita, mas como poderia ela resistir a um estrangeirismo que não podia estar mais na berra? Por outro lado, sendo a linguagem socialização, usar certas palavras num grupo significa que queremos pertencer-lhe. Lembro-me bem do prazer que os jovens esquerdistas da minha geração experimentávamos entremeando as conversas políticas com “contexto” para aqui, “infraestrutura” para ali, entre milhentas novidades verbais que a revolução tinha trazido. Por essa altura tive um amigo que não conseguia dizer nada sem enfiar “pcebes, ptanto, pá?” na parte final das frases. De uma assentada juntava três bordões que, isolados, todos usávamos à farta por achar que davam um ar prá frentex, aquilo que na altura fazíamos questão de ser.
Os tempos mudaram. Mas continua a ser como forma de afirmar o desejo de ser reconhecida entre os pares e mostrar-se atual que a ganapada de hoje tem necessidade de saltear os discursos com aquele irritante “tipo” (irritante para quem, como eu, já se esqueceu do que dizia). É pela mesma razão que há quem ache proveitos e vantagens coisa ultrapassada, preferindo “mais-valias”, “valor acrescentado”, e se por acaso estes forem o produto de “um novo conceito”, então nem se fala. A propósito de novos conceitos, note-se que agora as notícias se tornam “virais” num piscar de olhos, a mesma rapidez com que “chocam” as pessoas, razão pela qual redes sociais e títulos noticiosos fervilham de gente “revoltada”, para quem “indignação” e “exigência” são sentimentos dominantes. E como nesses suportes informativos também todos “acusam” todos do que calha, pouco se faz também que não seja para “arrasar”.
É nessa mesma linha que quase já não se atribui a um evento, por mais insignificante, classificação inferior a “um espetáculo” e que perceções corriqueiras se obrigam a ser “espetaculares”. Há dias, nos dois segundos que passei num canal de tv falava-se de umas férias “brutais”. Fugi tão depressa quanto o polegar mo permitiu, mas fui-me esbarrar noutro, este de culinária, onde alguém referia o sabor “épico” de um bolo. Nada de estranhar, afinal, se tivermos em conta que o pessoal delira por se entregar a coisas “radicais”. E por falar nisso, haverá coisa mais radical do que uma maria qualquer ter milhares de “seguidores” que tanto lhe podem idolatrar o traseiro a poder de “likes” como atormentá-la porque numa das fotos “postadas” exibiu uma pontinha de celulite?
O que ressalta de muitas destas e outras modernas palermices é a vontade de exagerar sensações e emoções, dar a ideia de que se está em todas e se vive intensamente. O tempo atual já é frenético, assoberbados que estamos por essa fonte de inquietação – os media – que nos induz a ter e a parecer, mais do que a ser. Mas como inda há por aí calma, serenidade e reflexão quanto baste, estados de espírito que desencorajam grandes despesas, para incrementar os negócios torna-se necessário hollyhoodizar a realidade: criar ação e drama, suscitar empolgamento, excitação, ansiedade, carência. No fundo, sentimentos que levam as pessoas a buscar algo que as preencha e acalme, quer dizer, a consumir mais. Não há crise, o mercado tem sempre um produto à medida de cada necessidade.
(Nordeste - jan. 2020)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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