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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

VARANDA DE MEMÓRIAS

 Todos os domingos ia a Rebordainhos, uma pequena aldeia no Distrito de Bragança, visitar o meu avô paterno, César Ramos (ou Tio César para os mais próximos). À chegada, já era previsto que ele estivesse de pé, na varanda de casa, à espera de que eu e os meus pais passássemos de carro para nos acenar. 
Enquanto o meu pai estacionava o carro, eu abria a porta e corria para as escadas onde se encontrava o meu avô e dava-lhe, como o habitual, um beijo “na careca”.
No lado direito estava a porta da sua pequena e humilde casa por onde entrava a pensar nas torradas feitas ao lume que já sabia que tinha à minha espera. Apesar de suportar as dores de costas que carregavam a sua vida inteira dedicada ao trabalho árduo no campo, levava-me à loja ver a Burra e os restantes animais. Era a minha parte favorita e sei que a dele também. Tal como o Tio César, eu adorava, e adoro, animais. Menos vacas. Sempre que elas passavam pela aldeia, eu escondia-me e ele soltava aquele sorriso contagiante da sua boca, já sem dentes. 
Durante o caminho, o cheiro a alecrim e a ar puro deixava-nos num mundo à parte – no nosso mundo. No fim do dia, regressávamos a casa e eu voltava para Bragança com os meus pais. As semanas passavam. As mãos dele já tremiam pela idade. A sua incapacidade física já não lhe permitia levar-me à loja ver a Burra nem o resto dos animais. Eu não percebia porquê. A cada semana, mais uma ruga lhe nascia no rosto. Vi-o envelhecer. A idade não o perdoou e ele só piorava.
Com o passar dos anos, o meu avô começou a adoecer cada vez mais. Na varanda, continuava a acenar-me, mas, agora, sempre sentado. Em 2011 foi levado para o lar de Bragança. Continuei a visitá-lo todos os domingos. Aquele já não era o nosso mundo. Já não havia campo. Já não estava no cantinho de conforto de sua casa onde brincávamos. Agora, era só o lar. Sabia que ele tinha saudades de casa, de brincar lá comigo e de passearmos por aquele ambiente campestre, mas não havia solução. Já não conseguia tomar conta de si próprio. Continuava a ir visitá-lo aos domingos, agora, não tão coloridos como no campo. Com a minha chegada, os olhos dele brilhavam e, ao mesmo tempo, soltava um sorriso como se o tivesse guardado a semana toda para o soltar ali, naquele momento.
Os domingos eram os dias dele. O beijo “na careca” à chegada não podia faltar. A cada domingo, ele parecia mais distante.
O pior avistava-se e os meus pais foram-me preparando. - O avô, um dia, vai ter de ir para o céu. – diziam-me eles. Eu não queria acreditar. Do que eu ouvia, o céu era um lugar para pessoas boas, mas eu não queria que ele fosse. Queria-o perto de mim. À hora de ir embora, voltava a dar-lhe o beijo “na careca”. -Adeus, avô. - Despedia-me acenando-lhe.
No dia 17 de junho de 2012 às 23h45, o meu pai recebe um telefonema. Como eu já dormitava, acabei por não o ouvir.
No dia seguinte acordei e vi, pela primeira vez, o meu pai chorar. Era pequena, mas senti-o, já sabia do que se tratava. O meu avô morreu.
Aquele foi o último adeus, o último beijo “na careca”, a última vez que o vi. Foi o pior dia da minha vida. O pior das nossas vidas, nunca me vou esquecer. Os domingos passaram a ser cinzentos.
Escrevo agora com a mesma dor que senti na altura. As saudades aumentam. O coração aperta. A pessoa mais bondosa que alguma vez conheci e que me fez crescer partiu. Imagino, várias vezes, na minha cabeça, a reação dele se soubesse que hoje estudo Jornalismo na Universidade de Coimbra, pois a última vez que me perguntou, queria ser médica pediatra. Para me sentir mais próxima dele, às vezes, vou à aldeia. Ir lá devia aliviar-me, mas a verdade é que isso não acontece.
Ao passar à frente de sua casa olho para a varanda, mas já não avisto ninguém. O seu canto transformou-se numa varanda de memórias.
A ti, avô, que no próximo ano faz cem anos que vieste ao mundo e dez que me deixaste, até um dia.

Ana Sofia Pereira

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