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Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
Bragança: terra fria cheia de tons quentes e sabores genuínos
Ergueu-se como cidade-fortaleza do reino na Idade Média, mas a riqueza de Bragança vai além das muralhas. População e natureza andam de mão dada numa relação que começa na terra e acaba na mesa.
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(Fotografias: Rui Manuel Ferreira/GI) |
«A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão», afirmou Miguel Torga em 1941 no congresso em que batizou Trás-os-Montes de «Reino Maravilhoso». O escritor, cuja obra viria a espelhar aquelas paisagens, referia-se então à Terra Fria, território que abrange Mogadouro, Miranda do Douro, Vimioso, Vinhais e Bragança. No ponto extremo do Nordeste de Portugal, entre montanhas austeras e vales de terra bravia, fica a cidade que desde os primórdios da sua existência faz das tripas coração.
Bragança, cenário de numerosos conflitos fronteiriços entre Portugal e Espanha ao longo dos séculos, palco de caos durante as invasões francesas, sempre arregaçou as mangas para sobreviver face ao solo agreste e ao clima hostil. Não admira, pois, que tire partido de uma das zonas com maior diversidade de fauna e flora do país – o Parque Natural de Montesinho, ex-líbris transmontano que integra os concelhos de Bragança e Vinhais numa área de 74 mil hectares. Aqui fica a aldeia de Oleiros, onde os castanheiros se alinham planalto fora. «O castanheiro é importante para a biodiversidade, mas também para a economia da região», explica António Sá, guia e fotojornalista, que em 2010 trocou Espinho por Lagomar, uma aldeia ao redor da serra.
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Muralhas da Cidadela |
Por esta altura, os ouriços das castanhas decoram a terra e as árvores centenárias recuperam de mais um inverno, mas é impossível não imaginar o brilho dourado dos bosques no outono. «Há famílias inteiras que vêm aqui para a apanha da castanha na primeira quinzena de novembro», conta António. Aqui, é grande a abundância desta espécie autóctone, Bragança detém 80 por cento da produção nacional de castanha. A presença de castanheiros significa, normalmente, a presença de javalis, que ali procuram refúgio e alimento. Por sua vez, estes garantem a existência de lobos, o que, continua o guia, «contribui para boa saúde da cadeia alimentar». Pelas curvas e contracurvas que ladeiam o rio Sabor até à aldeia de Cova da Lua, os carvalhos e as azinheiras dominam a paisagem e servem outros mamíferos selvagens como o corço e o veado, que muitas vezes descem aos lameiros para beber água. Na humidade destes terrenos, pastam animais como a ovelha churra galega bragançana ou a vaca mirandesa e, com a proximidade dos cursos de água, é possível avistar lontras ou toupeiras-de-água.
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Um passeio pelo Rio Fervença |
A 1000 metros de altitude, em pleno parque, encontra-se a aldeia que partilha do seu nome e charme. Montesinho é feita de ruas estreitas e casas típicas que obedecem à arquitetura simples transmontana. Aproveitando recursos naturais como o xisto e o granito e a madeira de castanheiro ou carvalho, a casa tradicional transmontana é constituída por um nível inferior, espaço que antigamente abrigava o gado, e pela habitação no nível superior, quase sempre com um alpendre a enquadrar a entrada. Esta é uma aldeia carismática em qualquer estação do ano. Por agora, a neve ainda tinge de branco os telhados e as árvores, mas a primavera já chegou e as caminhadas, piqueniques e passeios de BTT tornam-se mais apetecíveis.
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Pedra, madeira e neve: a moldura da aldeia de Montesinho, dentro do parque que lhe dá nome |
Embora esteja numa das zonas de maior biodiversidade da Península Ibérica, é na resistência das suas gentes que Bragança encontra prosperidade. A economia regional move-se pela criação de gado (vaca, porco bísaro utilizado para fumeiro, ovelha e cabra), pelo cultivo da castanha, da batata e de cereais como o trigo e centeio e pelas madeiras dos seus bosques.
A relação simbiótica entre populações e natureza já vem dos dias em que o Castelo de Bragança e a sua cidadela eram o centro da vida dos brigantinos. Pensado para funcionar como um centro regional da zona mais periférica do reino por D. Sancho I no século XII, o edifício medieval viria a tornar-se símbolo de poder militar na fronteira. De olhos postos no castelo, salta à vista a Torre da Princesa, ornamentada com várias janelas góticas. Ao lado, fica o pelourinho que é, segundo a especialista Emília Nogueira, o mais antigo vestígio da vila. Datado do século XIII, inclui a figura de um berrão, da Idade do Ferro, «uma das muitas esculturas ilustrativas de rebanho feitas na época no Norte da Península».
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Um passeio pela aldeia de Montesinho |
Em frente ao castelo, a Igreja de Santa Maria é paragem obrigatória para observar as linhas torcidas e a talha dourada do barroco em contraste com o teto de madeira. A um passo da igreja está a Domus Municipalis, uma estrutura medieval de estilo românico que servia simultaneamente como espaço de reunião e como cisterna de água, tendo sido depois utilizada como Paços do Concelho. Antes de se rumar ao centro, passeie-se pela cidadela, onde as encantadoras ruas de granito, as vielas apertadas e as casas baixinhas roubam o protagonismo ao castelo sem grande esforço.
Antigo e moderno
Descendo, chega-se à cidade moderna. Na Rua Engenheiro José Beça, o Solar de Santa Maria, hoje utilizado para turismo de habitação, é um exemplo vivo das casas senhoriais do século XVII. Mais à frente, naquela que já é conhecida como a «rua dos museus», a Rua Abílio Beça, situa-se o Museu do Abade de Baçal, detentor do maior acervo cultural e artístico da região, com obras que abrangem arqueologia, epigrafia, arte sacra, pintura, ourivesaria, numismática, mobiliário e etnografia. A alguns metros dali fica a igreja de São Vicente, uma das mais emblemáticas da cidade, pois diz-se que terá sido palco da boda secreta de D. Pedro e D. Inês de Castro.
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Bragança é também casa do Centro de Fotografia Georges Dussaud |
O tradicional e o contemporâneo encontram-se ao virar da esquina, no Centro de Fotografia Georges Dussaud. O edifício neoclássico construído para receber a família real no início do século XX – propósito que o regicídio deitou por terra –, guarda uma coleção de 148 fotografias a preto e branco do fotógrafo que se apaixonou por Trás-os-Montes. Ao fundo da rua, o visitante é convidado a conhecer um dos mais icónicos nomes da arte do século XX, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, dedicado à obra da pintora transmontana. Atualmente, tem em exposição Cabo Verde – O espírito do lugar, que reúne o conjunto de obras ilustrativas da sua residência artística naquele país entre 1988 e 1989, e que estará patente até 17 de junho. O museu reserva, ainda, lugar à obra de artistas convidados, como é o caso da exposição Knife and Wound, de Filipe Marques.
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Vista para o interior da Igreja de Santa Maria do Sardão, na Rua da Cidadela |
Em Bragança, as raízes eternizam-se na tela, mas são sempre o prato do dia. Entrar no Solar Bragançano é como entrar na casa de uma família transmontana onde a comida conforta o estômago e a hospitalidade aquece a alma. A sala de entrada anuncia a decoração acolhedora que carateriza o restaurante e sobre as mesas amontoam-se livros e jogos de tabuleiro para enfrentar eventuais esperas. Os proprietários, Desidério Rodrigues e Ana Maria Baptista circulam entre a cozinha – onde se confeciona a comida em pote de ferro – e as salas de refeições, com a cortesia com que brindam os clientes há vinte anos. Na carta, destacam-se pratos como o javali à campesino estufado e a posta de vitela à mirandesa. O pudim abade de Baçal (semelhante ao abade de Priscos, mas com presunto em vez de toucinho) e o cremoso bolo de chocolate são algumas das apetitosas sobremesas.
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O cozido à portuguesa do restaurante O Poças, junto à Praça da Sé |
Ainda junto à Praça da Sé podemos encontrar o Poças, uma referência local da cozinha regional. É composto por três salas e alia a arquitetura do século XX ao ambiente familiar quase de taberna. Serve clássicos como o cozido à portuguesa com os bons enchidos da região. Enchidos esses que são transversais a toda a carta. Produtos como a castanha, o cogumelo e carnes como o porco e o javali são também imagem da casa.
Javali à mesa
Vindo das serras onde esgravata por invertebrados e se esconde entre as árvores, o javali é presença assídua na ementa de qualquer restaurante típico. É assim também na Taberna do Javali, mesmo ao lado do castelo, onde há risoto de javali, sandes de javali e, até, francesinha de javali. Aqui, a castanha é a estrela das sobremesas, podendo vir em pudim ou em tarte.
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Na renovada Pousada de São Bartolomeu, dorme-se com o castelo à vista |
A tradição não impede a inovação. O Porta, restaurante onde tudo tem mão do chef André Silva (que antes liderou o estrela Michelin Casa da Calçada, em Amarante), tem uma decoração sóbria com pequenas esculturas de caretos que dão a volta à sala. Além de reinventar ingredientes como a alheira e a castanha numa trufa que é servida de entrada na língua de um careto, também oferece o tradicional javali envolto em pão torrado com torresmos, molho de vinho tinto, creme de maçã e castanha. Se é verdade que aqui a cozinha de autor se faz sem medo, é a magnífica vista panorâmica sobre o castelo que tira o fôlego.
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No restaurante Porta, do chef André Silva, a tradição não impede a inovação. As duas complementam-se |
Ao cair da noite, depois de encher os olhos de paisagem e a barriga de comida, nada melhor do que descansar na Pousada de São Bartolomeu. Em terra de reis e rainhas, não podiam faltar as camas de princesa das suas 28 luxuosas suítes. Na sala do pequeno-almoço, a natureza é novamente protagonista, com uma árvore que «brota» da parede envidraçada. O olhar, esse, vai sempre ter ao castelo, o ponto de partida e de chegada de uma cidade com as unhas sujas de terra, o peito inchado de orgulho e os braços abertos prontos a receber quem a queira descobrir.
Texto: Maria João Monteiro
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