terça-feira, 28 de abril de 2020

E já não havia rosas - 2

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)


Conheci-te nos primeiros anos do Liceu, em Bragança. Quantas vezes, depois das aulas, fomos para o jardim José de Almeida. Cheirava sempre a rosas. Entardecia e ficávamos sentados num banco do jardim, saboreando vagarosamente um sorvete e olhando o rio Fervença. E os teus olhos eram o rio.
Depois partilhamos a vida, quase em comum, durante a Faculdade. E a amizade era tanta. Quando terminaste o curso e foste colocada numa Escola em Vila Flor ainda te encontrei uma ou duas vezes. Um dia ouvi dizer que tinhas casado. Mais tarde um amigo comum insinuou que penosamente carregavas um casamento cheio de silêncios e omissões. O acaso levou-te para Cascais e nunca mais te vi.
Às vezes lembrava-me. E envelhecia. Mas o teu sorriso estava sempre. Quando chegaste, recordo-me que falei de muitas coisas e tu ouvias. Mas, paulatinamente faltavam as palavras… então tu, como quem regressa de outros pensamentos, rompeste o silêncio, parecendo que cada palavra tua tinha um código que eu tentava decifrar.
Começaste por dizer que vinhas da Universidade de Valladolid, que tinhas ido despedir-te da cidade e ao passares perto da placa que indica a minha aldeia sentiste saudades de me ver. De conversar: - Terminei no ano passado o doutoramento e já tinha terminado o casamento, até rima! Disseste. E ficaste muito triste! Olhos de água. E sofri.  - Agora, gostava de viajar pelo mundo, visitar de novo todas as vilas e cidades do nordeste, conhecer pessoas, ir ao teatro, ao cinema, ler poesia, sair à noite para um bar qualquer. E ficaste ainda mais triste! – Gosto muito de me perder nas cidades e caminhar sem rumo, como se tivesses o tempo todo do mundo! Chovia. 
Disseste-me que tinhas frio. E chovia mais. Acendi a lareira e ficamos silenciosamente a olhar a chama como se tivéssemos muitas coisas para dizer. Mas as palavras não diziam! Só os olhos.  Levantei-me, fiz um cocktail com todas as bebidas que tinha em casa e servi em dois frágeis copos de cristal, decorados com uma folha de hortelã.
Tu sorriste. Preferias vinho! Eu também. Já me tinha esquecido dos teus gostos do tempo da Faculdade. Da taberna onde bebíamos um copinho de vinho, fazendo render, para estar mais tempo. Ainda tínhamos muito tempo. Bebemos. Peguei-te nas mãos e como uma criança assustada encostaste a tua cabeça no meu ombro. Depois abraçamo-nos e assim ficamos longamente. E sofremos.  - Lido mal com as minhas incertezas e algumas contradições. Disseste. Às vezes canso-me das cidades. Mesmo agora estava a pensar que gostava de ficar contigo, aqui na aldeia. Comprar uma casa como a tua. Ter uma horta… conversar com os vizinhos… ir ao comércio… viver sem pressa… e ser a tua melhor amiga! Curiosamente não falaste em amor… talvez para que eu hoje não estivesse a sofrer mais. - Fica!  Sorriste. - Já não tenho tempo! Falta-me o tempo! Recordo-me que chovia cada vez mais e mais e os pingos de água desenhavam lágrimas nos vidros das janelas. E a luz já era pouca e a noite alongava-se. - Olha, vou-me embora! - Fica para jantar! Ficaste. Uma vela ardia amaciando a noite. 
Não havia rosas na mesa, ainda não era tempo das rosas. No DVD ouvia-se, em surdina, a banda sonora do Love Story. E chovia. E tu sorrias mas os teus olhos estavam muito tristes. Muito.  Depois foste embora… nunca mais te vi e hoje pressinto a tua silhueta desenhada na longa noite transmontana e a tua mão dizendo adeus como se fosses para sempre. Abriste o vidro do carro e ainda te ouvi dizer, com um sorriso tão breve que se perdeu nos braços da noite e chovia mais e mais. - Quando houver rosas no teu quintal… leva-me uma rosa… só uma! E quando puderes diz-me uma coisa… diz-me uma coisa bonita!… Disse que sim acenando tristemente com a cabeça. A última curva levou-te. Para sempre. E a estrada fez-se ausência.
Não havia luar.  Chegaste e partiste no mesmo dia, mas agora só as tuas últimas palavras se repetem, dolorosamente. E repetem, porque agora sei que vieste despedir-te… como foste despedir-te de Valladolid. Vieste dizer-me adeus. Tinhas pouco tempo de vida… e morreste… e tu sabias! E nem uma estrela riscava o céu vestido de negro. - Quando houver rosas no teu quintal, leva-me uma rosa… só uma! E quando puderes diz-me uma coisa… diz-me uma coisa bonita!... E foste embora… e eu demoradamente fechei a porta.


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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