(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
As leituras salvo algumas que fiz nas duas últimas semanas, não me encaixam. Não interessa para aqui estar a repetir o imperativo do Verbo ler porque não consigo fazer que aquilo que leio se enquadre no tempo presente. Este é um tempo assaz atípico, porque não há saída para este "far niente" que me sufoca. Mas há a minha memória e ela não pára quieta, sempre a andar para trás numa tentativa de me colocar em situação despreocupada, respondendo à inacção do tempo actual.
Então surgem as memórias do mundo em que eu vivi. Esse mundo era bem aqui ao pé onde hoje me encontro e por razões insondáveis me parece estar em outro lugar que não nesta cidade de "altitude média e clima temperado" e aberta a todos os que a habitam e visitam. As recordações vão para os recantos mais variados da cidade que eu percorri com sol, com chuva, com nevoeiro e neblina, com neve e com o calor de Verão que dourava a pele e nos abria largo caminho para o Sabor, Rio mítico da minha infância e juventude que foi o lugar que mais amei até aos meus vinte e quatro anos. Ao rio associo elementos vivos que eram a parte que influenciava toda esta tela colorida que se ia transformando em vida e me ocupou fisicamente todo esse tempo e hoje me surge como o assento à sombra debaixo da ramada fresca que cobria o tanque colocado à direita da Casa dos Cantoneiros ao chegar à Ponte Nova do Sabor.
Tenho presentes imagens de uma manhã bem cedinho em que pela estrada as lavadeiras faziam fila e a conversa se sobrepunha numa algaraviada que nos excitava, mulheres e garotos cada qual tentando acudir a tudo. À estrada e aos poucos automóveis, ao saco da roupa que a meio do caminho já pesava, à probabilidade de não encontrar lavadouro na "presa" e perder-se tempo para o encontrar e faltar depois campo com erva bastante para "por à cora".
As mulheres mais velhas eram comandantes duma tropa que não marchava a toque de caixa, mas que não deixava de ser coesa e disciplinada. À frente e quase imponente a Tia Aniceta, seguida da tia Lúcia, sua filha Glória e Tia Ana Batata. Outras acompanhavam este quarteto de notáveis como se dele dependesse o bom desfecho da jornada que aquela hora se iniciava e terminaria cerca das seis da tarde à volta do tanque, já com a roupa lavada e seca, e com a esperança que aparecesse um Chaufer dos "nossos" que desse boleia até ao Patronato. O rancho que de madrugada era compacto à tarde era fragmentado, mas os elementos sentiam um como que alívio de dever cumprido. Aqueles que não esperavam por boleia , metiam pés ao caminho, os restantes na frescura da ramada e sentados nas pedras de chisto que ladeavam o tanque preguiçavam e pacientemente esperavam pela possível boleia.
Entre a coluna da manhã e os pequenos grupos do regresso havia apenas a diferença de à ida, irem todos para o mesmo sítio e à vinda irem para os mais diferentes destinos.
O sentido de pertença que hoje ainda guardo e que mais das vezes quando tento explicá-lo às minhas filhas, por exemplo, é sempre, de diminuto interesse pera elas. O ambiente e as pessoas que povoaram o meu princípio, já não são detectáveis pela geração que nasceu da minha. Há a fronteira dos anos 60 e as diferenças do tempo pós Abril de 74.
Mas ao escrever hoje as memórias que me ocorrem, vejo com clareza que elas me servem para aliviar o meu espírito da carga nociva que o presente nos está servindo. Basta rever certos trechos que fizeram o todo da minha primeira idade e sobrepô-los à realidade desta terceira que o pensamento me transportará para outra dimensão em que não há Estados de Calamidade nem Corona Vírus mas sim manhãs serenas que antecedem o raiar dum glorioso Sol que é para todos porque Deus assim o quis.
Há também os caminhos e as estradas abertos para que passe o rico e passe o pobre, para as lavadeiras e o garotio, para aquecer e corar a roupa e há pessoas que trabalham porque têm saúde e não estão infectas.
Das minhas divagações e muito especialmente destas idas para o Sabor, recordo com saudade o grande amigo José Verde-gaio que sendo muito mais velho, sempre me dispensou uma simpatia inquestionável. Recordo-o hoje pois o epílogo dos dias de roupa no Sabor fazia-mo-lo na sua Cervejaria Paris onde era imperativo chegarmos antes das 19:00 para ouvirmos, difundido pelo Rádio Clube Português o novel Teatro Tide, que ele, sem se manifestar , como sempre homem de boas maneiras, também gostava de ouvir. E são as personagens de outro Teatro, este real que representaram toda a peça do Teatro da Vida que me coube viver até aos meus vinte anos, que agora recordo e me dão o refrigério que estas febres abrasadoras que o Covid 19 neste 2020 AD ameaça trazer em si.
Presto a minha homenagem a estas mulheres de Bragança que foram o verdadeiro "POVO QUE LAVAS NO RIO" que o poeta Pedro tão alto ergueu. Tia Aniceta,Tia Preta,Tia Lúcia,Tia Glória, Tia Ana Batata e uma multidão de outras que foram as nossas mães e avós.
São elas ainda quem mantém a sanidade que temo perder.
14/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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