quarta-feira, 22 de abril de 2020

A batalha contra o vírus no interior

Bragança tem 157 casos positivos mas apenas seis mortos nos 785 nacionais. Reportagem entre os internados na enfermaria do hospital distrital.
UCI: Alice, 74 anos, irmã de Fernanda Pires, continua internada - Foto Leonel De Castro/global Imagens
Faz hoje um mês que Domingos Silva, 85 anos, viúvo, agricultor, entrou no Hospital de Bragança que serve a zona noroeste do país. Esteve no covidário, depois passou para a UCI - Unidade de Cuidados Intensivos, ficou aí 17 dias, metade deles num ventilador, a 9 de abril voltou para o internamento e agora aguarda a alta hospitalar.

O idoso é um dos 3142 de Bragança que já viviam sozinhos ou em isolamento social - são 41 868 em Portugal continental e a maioria está em Trás-os-Montes, com o número mais elevado estabelecido no distrito de Vila Real (4736); Lisboa terá 626 e o Porto 1026.

O seu caso merece sublimação: ultrapassou o tempo médio de permanência na UCI, que é ali de 11 dias, mas foi a sua interioridade geográfica, fator de discriminação negativa no pré-pandemia coronovírus, que o salvou e que é agora um princípio ativo de proteção - a que se juntam um estilo de vida mais saudável e de autossustentação que sai do cultivo da terra.
Domingos Silva, 85 anos, está prestes a ter alta - Foto Leonel De Castro/global Imagens
Os números provam: em Trás-os-Montes a densidade populacional por km2 é de 19,5 pessoas. Neste quadro, Bragança regista 98 casos de Covid-19, a doença respiratória aguda provocada pelo novo coronavírus, Vinhais tem 24, Mirandela 16, Macedo de Cavaleiros 19.

O total distrital, segundo dados do boletim da Direção-Geral de Saúde, é de 157 pessoas infetadas. Por comparação, no litoral da Área Metropolitana do Porto, a vida corre pelo lado pior: com uma densidade populacional por km2 de 843,1 pessoas, o Porto regista 1071 casos positivos, a Maia 742, Matosinhos 884 e Gaia 1066; o total é de 3763.

Os seis mortos do distrito
Domingos Silva, que o JN viu sair da UCI para a enfermaria, e que depois disso já ganhou cores, é mais um português que se vai juntar aos 917 recuperados da nova doença respiratória em todo o país. Acabado de chegar à enfermaria, que tem capacidade para 23 camas e regista 18 internados, estava muito desorientado, olhos descampados: sabia o seu nome, sabia que vive na Lagoa, aldeia de 312 pessoas, mas não sabia onde esteve estes dias e à pergunta da enfermeira Liliana Santos "sente-se aflito, sr. Domingos?", o idoso respondeu "não sei, menina".


É uma reação natural num pós-sedado, diz a jovem enfermeira que ali tem que trabalhar com máscara e viseira e luvas e um grande fato de proteção integral que a transforma numa figura de ficção tecnológica a mover-se numa paisagem lunar. "Ele é viúvo, sente-se sozinho, chorava imenso, estava cheio de ansiedades", diz a enfermeira a afagar-lhe a mão com as luvas elásticas de cor lilás.
Fernanda Pires, 65 anos, com os seus "dois anjos"
Até ao momento, o distrito de Bragança (três hospitais e 14 centros de saúde) continua a ter só seis mortes por Covid-19 entre os 762 que morreram no país. São cinco homens e uma mulher - o mais novo tinha 61 anos e o mais velho 91. O número valoroso mantém-se desde o domingo de Páscoa, quando o homem de 91 anos faleceu em Mirandela. Outro dado esperançado: no concelho de Mirandela, onde foi diagnosticado o primeiro caso do distrito, a 14 de março, já não regista qualquer infetado há oito dias consecutivos.

Há outras notícias boas, sublinha Eugénia Madureira, diretora clínica do Hospital de Bragança. Primeira: "Nós aqui, no interior, éramos sempre socialmente desfavorecidos e esquecidos, mas nesta pandemia temos menos casos que o litoral. Sim, a interioridade salva". Segunda: "Com o investimento no SNS, esta pandemia vai deixar-nos mais bem equipados, atenuando as assimetrias no interior" e exemplifica com os 28 ventiladores, o novo TAC, a máquina móvel de radiografias.

"É muito provável que os idosos do interior sejam mais saudáveis", concorda Tiago Loza, diretor da Urgência, a vincar não ter falta de material. "Estamos salvaguardados, a nossa capacidade equivale aos melhores hospitais do litoral", explica o clínico, que é portuense mas há 11 anos se dedicou ao interior.

Das quatro fases da pandemia previstas, Bragança entrou agora na fase 2, alargamento de serviços: pode internar 180 pessoas, tem 30 camas UCI, 2/3 do pessoal médico adstritos ao novo vírus. A fase 3 seria ter todo o hospital a tratar casos Covid e a 4, a mais grave, seria externalizar casos para o Pavilhão Multiusos local. "O pior já terá passado", diz o doutor Loza, otimista de coração.

Bravos os nossos velhos
A enfermeira Liliana Santos, que naquele dia cumpria turno com a enfermeira Cláudia Sá - ao todo são 14 enfermeiros e o seu regime é assim: no 1.0º dia trabalham das 8 às 20 horas; no 2.0º das 20 à 8 da manhã; e no 3.0º ficam de folga; quando voltam, tudo repete -, atualiza os dados de mais dois doentes com quem o JN falou: Fernanda Pires, 65 anos, de Lamas, Macedo de Cavaleiros, teve alta na segunda-feira após 12 dias internada e com passagem pela violência da UCI, mas que é um doce de boa-disposição; e Adriano Pereira, 75 anos, de Valdrez, Macedo de Cavaleiros, que já voltou a casa, apto após dois testes consecutivos negativos.

Adriano, que tem dois filhos e três netos que há demasiados dias não vê, foi um daqueles casos: antes de ser operado em Bragança por uma apendicite pontuda, passou pelos hospitais de Macedo e de Mirandela e contaminou-se lá. Diz ele de olhos muito abertos, agora sentado num cadeirão de inclinar: "Foi no hospital que apanhei o vírus, é uma grande porcaria, não é?".
Enfermeiras fazem turnos de 12 horas seguidas
E depois, ele que não chegou a ir ao ventilador e se safou cheio de bravura, põe-se a descrever o que sentia na pós-operação: "A barriga dura como um tambor e uma secura tão grande que parecia que tinha um deserto inteiro de areia na boca e a boca, a minha boca parecia lacrada, parecia que estava a arder", diz ele a abrir ainda mais os olhos penetrantes de azul.

Como está curado, a primeira coisa que fez ao chegar a casa, depois de beber água cristalina que caía a cantar, foi abraçar a mulher de 78 anos, beijar a testa terna da sua mãe - "ela tem 101, sim 101 anos, é bonito, não é?, está ótima a minha mãe!" - e depois pôs-se a conversar com o filho, que ainda mora com eles, e contou-lhe logo um sonho que andava a ter: "Sonhava que já estava em casa no meu cantinho, é aqui com eles que agora queria para sempre ficar". A enfermaria já passou, atrás dele ficaram os sons dos seus dois companheiros de quarto no ar: a respiração aflita e furada de um, os gemidos do outro, numa onda crescente de ais guturais.


Fernanda Pires, que esteve internada com mais duas idosas muito caladas - "coitadinhas, agora sossegaram, mas andam sempre a gritar" - é uma inspiração: a dado passo, ela brinda com um cálice de Porto imaginário na mão, "ai, faz aquecer, que bom", diz ela a polir a mão no peito. Depois relata que passou "muitos dias muito aérea, sem saber se estava aqui ou noutro sítio qualquer".
Tratamento a pacientes na unidade de cuidados intensivos - Foto Leonel De Castro / Global Imagens
O pior foi na UCI: "Não fiz ventilador, mas andei tão aflitinha, só eu sei, uma abafação, o respirar preso, pesado, parecia que me afogava de aflição" - e logo muda o seu espírito de feição: "Estas aqui", diz ela para as enfermeiras, "isto são dois anjos que aqui estão!". E a alegria só não é total porque Fernanda tem ainda a irmã Alice, 74 anos, viúva, internada na UCI. "Estou sempre a rezar por ela, peço todos os dias à Nossa Senhora do Campo que tem um santuário tão bonito na nossa aldeia de Lamas, ela vai-se salvar, é uma coisa que sinto, uma coisa que sei".


José Miguel Gaspar

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