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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

A batalha contra o vírus no interior

Bragança tem 157 casos positivos mas apenas seis mortos nos 785 nacionais. Reportagem entre os internados na enfermaria do hospital distrital.
UCI: Alice, 74 anos, irmã de Fernanda Pires, continua internada - Foto Leonel De Castro/global Imagens
Faz hoje um mês que Domingos Silva, 85 anos, viúvo, agricultor, entrou no Hospital de Bragança que serve a zona noroeste do país. Esteve no covidário, depois passou para a UCI - Unidade de Cuidados Intensivos, ficou aí 17 dias, metade deles num ventilador, a 9 de abril voltou para o internamento e agora aguarda a alta hospitalar.

O idoso é um dos 3142 de Bragança que já viviam sozinhos ou em isolamento social - são 41 868 em Portugal continental e a maioria está em Trás-os-Montes, com o número mais elevado estabelecido no distrito de Vila Real (4736); Lisboa terá 626 e o Porto 1026.

O seu caso merece sublimação: ultrapassou o tempo médio de permanência na UCI, que é ali de 11 dias, mas foi a sua interioridade geográfica, fator de discriminação negativa no pré-pandemia coronovírus, que o salvou e que é agora um princípio ativo de proteção - a que se juntam um estilo de vida mais saudável e de autossustentação que sai do cultivo da terra.
Domingos Silva, 85 anos, está prestes a ter alta - Foto Leonel De Castro/global Imagens
Os números provam: em Trás-os-Montes a densidade populacional por km2 é de 19,5 pessoas. Neste quadro, Bragança regista 98 casos de Covid-19, a doença respiratória aguda provocada pelo novo coronavírus, Vinhais tem 24, Mirandela 16, Macedo de Cavaleiros 19.

O total distrital, segundo dados do boletim da Direção-Geral de Saúde, é de 157 pessoas infetadas. Por comparação, no litoral da Área Metropolitana do Porto, a vida corre pelo lado pior: com uma densidade populacional por km2 de 843,1 pessoas, o Porto regista 1071 casos positivos, a Maia 742, Matosinhos 884 e Gaia 1066; o total é de 3763.

Os seis mortos do distrito
Domingos Silva, que o JN viu sair da UCI para a enfermaria, e que depois disso já ganhou cores, é mais um português que se vai juntar aos 917 recuperados da nova doença respiratória em todo o país. Acabado de chegar à enfermaria, que tem capacidade para 23 camas e regista 18 internados, estava muito desorientado, olhos descampados: sabia o seu nome, sabia que vive na Lagoa, aldeia de 312 pessoas, mas não sabia onde esteve estes dias e à pergunta da enfermeira Liliana Santos "sente-se aflito, sr. Domingos?", o idoso respondeu "não sei, menina".


É uma reação natural num pós-sedado, diz a jovem enfermeira que ali tem que trabalhar com máscara e viseira e luvas e um grande fato de proteção integral que a transforma numa figura de ficção tecnológica a mover-se numa paisagem lunar. "Ele é viúvo, sente-se sozinho, chorava imenso, estava cheio de ansiedades", diz a enfermeira a afagar-lhe a mão com as luvas elásticas de cor lilás.
Fernanda Pires, 65 anos, com os seus "dois anjos"
Até ao momento, o distrito de Bragança (três hospitais e 14 centros de saúde) continua a ter só seis mortes por Covid-19 entre os 762 que morreram no país. São cinco homens e uma mulher - o mais novo tinha 61 anos e o mais velho 91. O número valoroso mantém-se desde o domingo de Páscoa, quando o homem de 91 anos faleceu em Mirandela. Outro dado esperançado: no concelho de Mirandela, onde foi diagnosticado o primeiro caso do distrito, a 14 de março, já não regista qualquer infetado há oito dias consecutivos.

Há outras notícias boas, sublinha Eugénia Madureira, diretora clínica do Hospital de Bragança. Primeira: "Nós aqui, no interior, éramos sempre socialmente desfavorecidos e esquecidos, mas nesta pandemia temos menos casos que o litoral. Sim, a interioridade salva". Segunda: "Com o investimento no SNS, esta pandemia vai deixar-nos mais bem equipados, atenuando as assimetrias no interior" e exemplifica com os 28 ventiladores, o novo TAC, a máquina móvel de radiografias.

"É muito provável que os idosos do interior sejam mais saudáveis", concorda Tiago Loza, diretor da Urgência, a vincar não ter falta de material. "Estamos salvaguardados, a nossa capacidade equivale aos melhores hospitais do litoral", explica o clínico, que é portuense mas há 11 anos se dedicou ao interior.

Das quatro fases da pandemia previstas, Bragança entrou agora na fase 2, alargamento de serviços: pode internar 180 pessoas, tem 30 camas UCI, 2/3 do pessoal médico adstritos ao novo vírus. A fase 3 seria ter todo o hospital a tratar casos Covid e a 4, a mais grave, seria externalizar casos para o Pavilhão Multiusos local. "O pior já terá passado", diz o doutor Loza, otimista de coração.

Bravos os nossos velhos
A enfermeira Liliana Santos, que naquele dia cumpria turno com a enfermeira Cláudia Sá - ao todo são 14 enfermeiros e o seu regime é assim: no 1.0º dia trabalham das 8 às 20 horas; no 2.0º das 20 à 8 da manhã; e no 3.0º ficam de folga; quando voltam, tudo repete -, atualiza os dados de mais dois doentes com quem o JN falou: Fernanda Pires, 65 anos, de Lamas, Macedo de Cavaleiros, teve alta na segunda-feira após 12 dias internada e com passagem pela violência da UCI, mas que é um doce de boa-disposição; e Adriano Pereira, 75 anos, de Valdrez, Macedo de Cavaleiros, que já voltou a casa, apto após dois testes consecutivos negativos.

Adriano, que tem dois filhos e três netos que há demasiados dias não vê, foi um daqueles casos: antes de ser operado em Bragança por uma apendicite pontuda, passou pelos hospitais de Macedo e de Mirandela e contaminou-se lá. Diz ele de olhos muito abertos, agora sentado num cadeirão de inclinar: "Foi no hospital que apanhei o vírus, é uma grande porcaria, não é?".
Enfermeiras fazem turnos de 12 horas seguidas
E depois, ele que não chegou a ir ao ventilador e se safou cheio de bravura, põe-se a descrever o que sentia na pós-operação: "A barriga dura como um tambor e uma secura tão grande que parecia que tinha um deserto inteiro de areia na boca e a boca, a minha boca parecia lacrada, parecia que estava a arder", diz ele a abrir ainda mais os olhos penetrantes de azul.

Como está curado, a primeira coisa que fez ao chegar a casa, depois de beber água cristalina que caía a cantar, foi abraçar a mulher de 78 anos, beijar a testa terna da sua mãe - "ela tem 101, sim 101 anos, é bonito, não é?, está ótima a minha mãe!" - e depois pôs-se a conversar com o filho, que ainda mora com eles, e contou-lhe logo um sonho que andava a ter: "Sonhava que já estava em casa no meu cantinho, é aqui com eles que agora queria para sempre ficar". A enfermaria já passou, atrás dele ficaram os sons dos seus dois companheiros de quarto no ar: a respiração aflita e furada de um, os gemidos do outro, numa onda crescente de ais guturais.


Fernanda Pires, que esteve internada com mais duas idosas muito caladas - "coitadinhas, agora sossegaram, mas andam sempre a gritar" - é uma inspiração: a dado passo, ela brinda com um cálice de Porto imaginário na mão, "ai, faz aquecer, que bom", diz ela a polir a mão no peito. Depois relata que passou "muitos dias muito aérea, sem saber se estava aqui ou noutro sítio qualquer".
Tratamento a pacientes na unidade de cuidados intensivos - Foto Leonel De Castro / Global Imagens
O pior foi na UCI: "Não fiz ventilador, mas andei tão aflitinha, só eu sei, uma abafação, o respirar preso, pesado, parecia que me afogava de aflição" - e logo muda o seu espírito de feição: "Estas aqui", diz ela para as enfermeiras, "isto são dois anjos que aqui estão!". E a alegria só não é total porque Fernanda tem ainda a irmã Alice, 74 anos, viúva, internada na UCI. "Estou sempre a rezar por ela, peço todos os dias à Nossa Senhora do Campo que tem um santuário tão bonito na nossa aldeia de Lamas, ela vai-se salvar, é uma coisa que sinto, uma coisa que sei".


José Miguel Gaspar

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