Mariazinha lembrava-se muito bem; era todas as noites a mesma coisa: o cascalho dos arruamentos a reluzir, como se alguma fada caprichosa tivesse andado por ali a atirar às mãos-cheias punhados de pequeninos sóis; as grades do jardim, ao fundo, onde se enlaçava a vinha virgem de folhagem de rubis que a mãe mandara arrancar mais de cem vezes, e que voltara sempre não sabiam donde, não sabiam como, a enlaçar as grades em mil inflexíveis abraços, que nem a morte podia quebrar.
E as beladonas! Tantas! Havia-as em todos os canteiros. Brotavam da terra, misteriosas e perfumadas, vestidas de seda cor-de-rosa, aqui e ali, por toda a parte, às vezes até nas ruas do jardim! Nas ruas... que escândalo! Comentava o gesto brutal do velho jardineiro, arrancando-as e atirando-as para o lado sem piedade. Coitadinhas!... Tantas! Sem uma folha: a haste direita e o palmito ao alto! Toda a seiva se desentranhou em cor e perfume. Elas, todas, apenas são corola e alma! E as beladonas, toda a gente sabe, só brotam da terra, misteriosas e perfumadas, vestidas de seda cor-de-rosa, em Setembro. O ano tivera pois trezentas e sessenta e cinco noites de Setembro...
Mariazinha lembrava-se muito bem: Tantas! Parecia um milagre! O namorado até se ria de ver tantas, tantas, todas as noites mais, como se andassem por baixo do chão em qualquer misteriosa tarefa e surgissem à noite, à flor da terra, a beberem o luar. «Qualquer dia nasce-te uma no peito, vais ver...», dizia ele a rir, encostado às grades onde a vinha virgem se enlaçava. Fora sempre Setembro. Mariazinha lembrava-se muito bem...
Pois naquele ano, quando o namorado a via aparecer ao longe, no umbral da porta envidraçada, descer os degraus de mármore do terraço, surgir na grande avenida do jardim em direção às grades, muito branca, muito leve, quase imaterial, o seu desejo era cair de joelhos, como a uma aparição, e rezar.
Mariazinha de quinze anos, quase um bebê, e já uma senhora! O oval alongado daquele rosto de madona, aquele olhar ingênuo de menina-donzela, os cabelos lisos, sem uma onda, a emoldurar-lhe de ouro a face branca, aquele seu ar refletido e tímido, todo aquele conjunto era de uma tal candura, de uma tal pureza que, ao vê-la, a primeira impressão de toda a gente era de piedade: «Meu Deus, não lhe façam mal! Não lhe toquem... olhem que a desfolham...»
O namorado, encostado às grades onde a vinha virgem se enlaçava, via-a vir e sorria enlevado. Mariazinha de quinze anos, quase um bebê, e já uma senhora! Para os seus desiludidos trinta anos, ela era uma noiva-menina que Deus lhe dera para trazer ao colo. Via-a tão pura que não ousava estender a mão com medo que ela se esvaísse, via-a tão frágil que não se atrevia a tocar-lhe com receio que ela se esfolhasse... O seu cumprimento era todas as noites um sorriso. Mariazinha tão pura! Em vão o jardim voluptuoso multiplicava todas as suas seduções, desvendava todos os seus segredos numa febre ansiosa de tentar; em vão espalhava na noite luarenta todas as suas joias numa prodigalidade de avarento que, numa hora de demência, resolve atirar com todos os seus tesouros à rua; em vão queimava por ela todos os aromatas, em caçoilas de prata e urnas de cristal, no coração das flores. A vinha virgem agarrava-se com mais força, prendia mais os dedos, num espreguiçamento voluptuoso, lânguido e firme, doce e brutal, ao duro ferro das grades. O vento sacudia a cabeleira solta das árvores, que no escuro ondeavam como jubas de feras. Mariazinha sorria. A sua carne era como a carne das rosas, que mesmo aos beijos do sol fica fria, A rubra e ardente poesia da noite sensual fazia realçar ainda mais a límpida candura da virgem. O namorado, encostado às grades, dizia-lhe:
«Quando te vejo vir ao longe, tenho vontade de te rezar: Ave-Maria, cheia de graça... Maria! Toda tu és luz e iluminas-me, toda tu és clarão e incendeias-me! Toda tu és expressão e alma imaterial; as tuas formas são espírito revestindo outro espírito, como um manto de rendas sobre um vestido de prata. O teu olhar é mais profundo que os teus olhos, a tua boca é mais pequenina que o teu riso. Tu não pousas os pés no chão, eu bem vejo como tu andas, Maria! Vens para mim, da escuridão da noite, num andor coberto de açucenas, como uma aparição, e as flores do jardim acorrem todas à tua passagem, recolhidas e graves, à beira do caminho, de mãos postas, rezando: Ave-maria, cheia de graça, como se passasse a procissão...!»
Mariazinha sorria calada, e o sorriso iluminava-a toda. junto à grade, o vestido era uma opala a desmaiar...
«Não dizes nada? Porque te calas? Não há ninguém que nos ouça! E quem nos entenderia?! As minhas palavras só podem ungir os teus ouvidos, óleo santo que os teus sentidos recolhem como um orvalho do céu. Gosto tanto de ti! O meu amor já veio comigo quando eu nasci, entrou-me no peito como uma pomba e lá fez o ninho! Na minha boca andou sempre o teu sorriso, nos meus olhos o teu olhar, e foram os teus pés, maravilhosas flores de brancura, que traçaram a pétalas o caminho para eu vir ter contigo. Andei anos a procurar-te e achei-te! Procurar-te era achar-te já. Estavas comigo em espírito, divino espírito que se fez carne para me salvar! Maria!»
Mariazinha cruzava as mãos brancas no peito, num gesto brando, magoado e tímido; parecia uma andorinha que, ao cair da noite, no beiral onde tem o ninho, recolhe as asas apaziguada e contente.
«Porque te calas? Não dizes nada? Fechas os olhos como uma criancinha que quer dormir. Deixa-te estar assim, meu amor! Indigno sacrário que recolhe os teus gestos de beleza, só de joelhos devia ver-te sonhar. Indigno pecador, como foi que te mereci?! Para te pagar as horas inefáveis que das tuas mãos recebo, as horas de paz que deixas cair sobre o mundo, toda a minha alma em preces, de joelhos, de mãos postas, não é bastante, Maria! Por ti deixar-me-ia crucificar, as chagas das minhas mãos seriam purificadas pela fímbria do teu vestido. Estas grades de ferro defendem-te do hálito de toda a minha impureza, como as grades de prata que encerram, longínqua e puríssima, uma Virgem da minha terra. Não me atrevo a tocar-te: as minhas mãos seriam queimadas como as de um sacrílego. Para dizer as letras do teu nome, como quem passa as contas de um rosário, confesso primeiro os meus pecados para não blasfemar, Maria! Porque te calas? Tens medo da noite, meu amor?»
Mariazinha mexia os lábios como quem murmura mas não dizia nada. As mãozitas dobravam-se-lhe no regaço, como hastes que têm sede ao ardor do sol do meio-dia.
E todas as noites fora assim. Mariazinha lembrava-se muito bem. Todas as noites daquele ano em que não houvera Inverno, o namorado, encostado às grades, rezara a litania da sua puríssima paixão.
Mas um dia vieram dizer-lhe que ele tinha morrido. Morreu... pronto! Morreu. Foi só isto, Mariazinha. E depois? Depois... disseram-lhe, para a consolar, que ele tinha morrido como um herói, o corpo envolto na couraça, a cabeça cingida no elmo dos modernos cavaleiros andantes; que tinha o túmulo que merecera a sua grande alma ousada; que era preciso sacrificar, de vez em quando, o mais alto, o mais digno, para aplacar as cegas cóleras da Natureza a quem penetram os mistérios; que a bendita semente do exemplo era precisa no mundo, para não se colher só joio. Disseram-lhe ainda que a pátria apareceria mais alta tendo por pedestal o cadáver de um herói; que o seu audacioso e impávido coração de trinta anos era mais precioso imóvel e silencioso; que as suas fortes mãos de lutador, que domara e vencera os elementos e as forças más da Natureza, eram mais fortes na morte.
Mariazinha não percebeu nem tão-pouco disse nada. Encerrada em si mesma como num cofre selado, foi um túmulo fechado e mudo, onde as revoltas e os gritos, as censuras e as carícias iam despedaçar-se em vão.
À noite viam-na vaguear, horas e horas, sozinha, pelas ruas do jardim, sem se voltar, sem um gesto, sem um olhar de interesse pelas coisas que não via. Aproximava-se depois da grade onde a vinha virgem com os seus braços teimosos continuava a enlaçar os duros varões de ferro, e ali ficava horas esquecidas, pequenina estátua de mármore sobre um mausoléu, perdida num sonho que não era da Terra. Viam-na voltar mais frágil, mais embaciada, de uma palidez quase etérea. Instintivamente, procuravam-se-lhe as asas no seu corpito de ave que parecia ensaiar um voo. Os seus olhos tinham um olhar tão doce, tão desprendido das coisas deste mundo, que, sem querer, a gente procurava o sítio onde ela iria pousar.
O pai e a mãe inquietaram-se por fim. Interrogaram-na, e com lágrimas e súplicas pediram-lhe que falasse, que dissesse o que tinha, o que queria, o que queria que eles lhe dessem, que eles lhe fizessem para a prender na Terra. Tudo lhe fariam, tudo lhe dariam. Que ela pedisse tudo. Estavam prontos a fazer por ela todos os sacrifícios.
Foi então que a Mariazinha, noiva-menina de um noivo-morto, disse, pediu o que queria: queria ir para um convento.
«Isso não! Isso nunca!», clamaram os pais, numa revolta de toda a sua alma. Fora então para isso que a mãe a trouxera nas suas entranhas, que a alimentara aos seus peitos, que a embalara nos braços tantos anos! Fora então para isso que o pai lhe amparara os primeiros passos, que lhe arrancara do caminho todos os espinhos para ela passar! «Isso não! Isso nunca!»
Passaram dias, meses, passaram dois anos. O rosto miudinho era uma pétala de camélia, todo o corpito de ave um flocozinho de neve. Continuava a ir à grade onde ficava horas e horas a sorrir, de olhos baixos, com as mãos a tremer, num enleio de amor que não era deste mundo.
Um dia, vendo-a morrer assim aos poucos, os pais cederam de repente. Mariazinha, quando soube, chorou pela primeira vez e, encarando a mãe, com as lágrimas a correrem-lhe em fio pelas faces, balbuciou: «Coitadinha!»
Escolheram um convento de Toledo, onde a regra não era muito apertada nem muito severa. A mãe até tinha medo de a ver morrer no caminho. Levaram-na como quem acompanha uma filha morta ao túmulo onde há de ficar. E ela, perdida novamente na sua extática imobilidade de figurinha de cera, atravessou os fartos vales portugueses, os desolados campos de Castela, sem parecer ver nada à sua volta.
Chegou a Toledo numa manhã de chuva. A cidade, monástica e triste, parada na evolução dos séculos, tão curiosa com as suas ruas estreitas e tortuosas, os seus arcos, as suas escadinhas, o seu ar severo de monja, não lhe mereceu um olhar. Não a viu.
Ao separar-se da mãe, horas depois, repetiu apenas, a chorar, a mesma palavra que lhe viera aos lábios naquele dia em que soubera que entraria no convento: «Coitadinha!»
Quando as grandes portas se cerraram, pesadas e tristes, por detrás do vulto doloroso da mãe, Mariazinha, noiva-menina de um noivo-morto, olhou em volta e sorriu.
Todo o tempo que durou o seu noviciado, foi a mais obediente, a mais humilde, a mais submissa de todas. As mestras não tinham palavras para lhe elogiar a doçura, a docilidade; e era tão profunda a paz que no seu redor irradiava, que a própria superiora, severa e ríspida, esboçava um eflúvio de sorriso quando a via passar, branca e frágil, pelos longos corredores escuros. Foi como se num sombrio convento de Toledo tivesse entrado, pela primeira vez, um raio de sol de Portugal.
E a Mariazinha passava os dias a sorrir e a murmurar às vezes umas palavras sem nexo, uma estranha toada de oração que ninguém entendia. Na cerca, gostava de se sentar num banco, sob um dossel de vinha virgem que há muitos anos se abraçava ao tronco carcomido de uma acácia velha. Contemplava-lhe as folhas, joias cravejadas de rubis, os dedos que se crispavam no tronco musgoso... e sorria enlevada, pendendo as mãos no regaço.
E assim passaram longos meses, e chegou o dia em que a Mariazinha professou. Sob o hábito, que lhe ficava tão bem como um vestido de noivado, tinha estranhas parecenças com uma Nossa Senhora do convento que, numa capelinha cheia de luz à direita do altar-mor, sorria a um menino que lhe estendia os braços.
Nessa noite, quando a Mariazinha entrou na solidão da sua cela branca e nua, quando se deitou na dura enxerga que devia ser até à morte o seu fofo leito de penas, quando a Mariazinha adormeceu, acordou Sóror Maria da Pureza.
Sóror Maria da Pureza parecia-se com a Mariazinha, com a noiva-menina de um noivo-morto, como duas gotas de água caídas da mesma fonte, como dois raios de Sol tombados na mesma flor, mas não era ela. Não, não era ela...
Pelos claustros, onde se ouvia sempre o gorjeio de um veiozinho de água que se perdia numa moita de lírios roxos no jardim abandonado, Sóror Maria da Pureza sorria e falava.
As outras monjas ouviam-na, ficavam-se enlevadas a escutar:
«Porque me calo?» dizia ela. «Ave-maria, cheia de graça... Se a minha luz te ilumina, se o meu clarão te incendeia, tu és o sol que se reflete em mim. As minhas formas foram criadas, assim imateriais, para que revestissem um espírito onde tu és amor e adoração, como um manto de rendas sobre um vestido de prata. Quando eu passo, as flores acorrem todas à beira do caminho, recolhidas e graves, de mãos postas, a incensar-me, para que eu seja toda pureza ao aproximar-me de ti. Ave-maria, cheia de graça!»
Começou a correr com insistência no convento, entre as freiras e as educandas, que Sóror Maria da Pureza compunha orações mais lindas, mais fervorosas que as orações de Santa Teresa. Todas as monjas corriam a ouvi-la quando no seu banco, onde a vinha virgem se enlaçava ao tronco carcomido de uma acácia que já não dava flores, balbuciava, sorrindo, com as diáfanas mãos em cruz no peito:
«Sim, as tuas palavras só eu as posso entender, só podem ungir os meus ouvidos, óleo santo que os meus sentidos recolhem como um orvalho do céu. Amo-te e adoro-te. Quando nasci, também já nasceste comigo; foram os teus divinos passos, que eu ouvi quando fui ao teu encontro, que traçaram no chão esse caminho de flores. Se me encontraste foi porque eu te procurava, porque os meus braços em cruz se estendiam para a tua presença. Já estava contigo em espírito, espírito eleito, essência perfeita e invisível que se fez carne para me salvar!»
As monjas decoravam as palavras que andavam já de boca em boca, que as mestras ensinavam às educandas, que eram rezadas por todas, aos pés dos altares, com o maior fervor e devoção.
«Indigna pecadora, como foi que eu te mereci?! Indigno sacrário, onde misericordiosamente deixas cair o mel das tuas palavras de amor! Toda a minha alma em preces, de joelhos, de mãos postas, não é bastante para te pagar o bem que sobre mim desce das tuas mãos abertas, a altura a que me elevas, o êxtase em que vivo a esperar-te. Bendito sejas! Por ti, deixar-me-ia crucificar, o sangue das minhas chagas beijá-lo-ia para resgatar os meus pecados. Não tenho medo da noite, meu Amor: a noite é que te traz no seu manto estrelado. Não me atrevo a estender para ti as minhas mãos, teria receio de me queimar ao fogo abrasador do teu divino amor por mim. Tenho medo de blasfemar quando passam pelos meus lábios, como as contas de um rosário, as letras do teu nome; tenho medo de as não ungir com todo o fervor da minha devoção.»
No convento cada vez se dizia com mais insistência que Sóror Maria da Pureza era santa. Tinha êxtases e visões. Mal pousava os pés no chão, não comia, não se deitava. De noite, estendia os braços em cruz, e sorria. O velho capelão curvava-se reverente quando ela passava, quase imaterial, pelos corredores escuros. Tinha o andar baloiçado e sereno de quem caminha num andor em procissão. Resplandecia. Parecia feita de luz. Uma das pequeninas dizia ter visto a velha acácia que já não dava flores deixar cair pétalas no chão aos pés da vinha virgem, uma tarde em que Sóror Maria da Pureza lá rezara uma oração.
E no plácido silêncio dos claustros, onde o gorjeio do veiozinho de água continuava a afagar os lírios roxos, no coro onde os vitrais transformavam como alquimistas o Sol em pedras preciosas, na cerca cheia de murmúrios e risos de passarinhos, na igreja onde a Nossa Senhora da capelinha cheia de luz continuava dia e noite a sorrir ao menino que lhe estendia os braços, no banco, sob o dossel da vinha virgem, por toda a parte, enfim, Sóror Maria da Pureza, indiferente a tudo, cada vez mais exangue, mais frágil, mais luminosa, continuava a rezar as suas orações, que andavam de boca em boca e que eram mais lindas e mais fervorosas que as de Santa Teresa.
Orações de amor, sacrílegas, blasfemas orações de pecado, a um noivo-morto, rezadas num convento de Toledo, aos pés dos altares, por bocas puras, que estranhas orações de pecado!...
De pecado?... Não... que Sóror Clara das Cinco Chagas, a severa e ríspida superiora, ao ouvi-las rezar um dia por uma das pequeninas na capela do Sagrado Coração, dissera suavemente, erguendo os olhos ao céu:
«Sagrado Coração do Senhor, ouvi-a!»
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)
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