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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Florbela Espanca: "As Orações de Soror Maria da Pureza"

 No mundo, era branca e loira; tinha quinze anos e chamava-se Maria. Morava  numa grande casa cor-de-rosa que dia e noite espreitava para a estrada, através  da espessa folhagem das frondosas tílias de um jardim. Mariazinha, branca e  loira, tinha um namorado, e já havia um ano que lhe tinham dado licença para  falar com ele às grades do jardim da sua casa cor-de-rosa. Já havia um ano. E a  Mariazinha pouco mais era ainda que um bebê! Como o ano tinha passado  depressa! E que estranho ano aquele, sem Inverno! Mariazinha nunca vira um  ano assim, um ano que só tivera noites, trezentas e sessenta e cinco noites de  Setembro, tépidas, cariciosas, luarentas. Dos dias não se lembrava, e Inverno  não teve com certeza. Floriram as azáleas por acaso?... As magnólias da grande  avenida cobriram o chão de neve, porventura? O velho jardineiro diz que sim.  Mas que sabem os velhos jardineiros de estes anos estranhos, só com noites  de Setembro?!

Mariazinha lembrava-se muito bem; era todas as noites a mesma coisa: o  cascalho dos arruamentos a reluzir, como se alguma fada caprichosa tivesse  andado por ali a atirar às mãos-cheias punhados de pequeninos sóis; as grades  do jardim, ao fundo, onde se enlaçava a vinha virgem de folhagem de rubis  que a mãe mandara arrancar mais de cem vezes, e que voltara sempre não  sabiam donde, não sabiam como, a enlaçar as grades em mil inflexíveis  abraços, que nem a morte podia quebrar.

E as beladonas! Tantas! Havia-as em todos os canteiros. Brotavam da terra,  misteriosas e perfumadas, vestidas de seda cor-de-rosa, aqui e ali, por toda a  parte, às vezes até nas ruas do jardim! Nas ruas... que escândalo! Comentava o  gesto brutal do velho jardineiro, arrancando-as e atirando-as para o lado sem  piedade. Coitadinhas!... Tantas! Sem uma folha: a haste direita e o palmito ao  alto! Toda a seiva se desentranhou em cor e perfume. Elas, todas, apenas são  corola e alma! E as beladonas, toda a gente sabe, só brotam da terra,  misteriosas e perfumadas, vestidas de seda cor-de-rosa, em Setembro. O ano  tivera pois trezentas e sessenta e cinco noites de Setembro...

Mariazinha lembrava-se muito bem: Tantas! Parecia um milagre! O namorado  até se ria de ver tantas, tantas, todas as noites mais, como se andassem por  baixo do chão em qualquer misteriosa tarefa e surgissem à noite, à flor da  terra, a beberem o luar. «Qualquer dia nasce-te uma no peito, vais ver...», dizia  ele a rir, encostado às grades onde a vinha virgem se enlaçava. Fora sempre  Setembro. Mariazinha lembrava-se muito bem...

Pois naquele ano, quando o namorado a via aparecer ao longe, no umbral da  porta envidraçada, descer os degraus de mármore do terraço, surgir na grande  avenida do jardim em direção às grades, muito branca, muito leve, quase  imaterial, o seu desejo era cair de joelhos, como a uma aparição, e rezar.

Mariazinha de quinze anos, quase um bebê, e já uma senhora! O oval  alongado daquele rosto de madona, aquele olhar ingênuo de menina-donzela,  os cabelos lisos, sem uma onda, a emoldurar-lhe de ouro a face branca, aquele  seu ar refletido e tímido, todo aquele conjunto era de uma tal candura, de uma  tal pureza que, ao vê-la, a primeira impressão de toda a gente era de piedade:  «Meu Deus, não lhe façam mal! Não lhe toquem... olhem que a desfolham...»

O namorado, encostado às grades onde a vinha virgem se enlaçava, via-a vir e  sorria enlevado. Mariazinha de quinze anos, quase um bebê, e já uma senhora!  Para os seus desiludidos trinta anos, ela era uma noiva-menina que Deus lhe  dera para trazer ao colo. Via-a tão pura que não ousava estender a mão com  medo que ela se esvaísse, via-a tão frágil que não se atrevia a tocar-lhe com  receio que ela se esfolhasse... O seu cumprimento era todas as noites um  sorriso. Mariazinha tão pura! Em vão o jardim voluptuoso multiplicava todas  as suas seduções, desvendava todos os seus segredos numa febre ansiosa de  tentar; em vão espalhava na noite luarenta todas as suas joias numa  prodigalidade de avarento que, numa hora de demência, resolve atirar com  todos os seus tesouros à rua; em vão queimava por ela todos os aromatas, em  caçoilas de prata e urnas de cristal, no coração das flores. A vinha virgem  agarrava-se com mais força, prendia mais os dedos, num espreguiçamento  voluptuoso, lânguido e firme, doce e brutal, ao duro ferro das grades. O vento  sacudia a cabeleira solta das árvores, que no escuro ondeavam como jubas de  feras. Mariazinha sorria. A sua carne era como a carne das rosas, que mesmo  aos beijos do sol fica fria, A rubra e ardente poesia da noite sensual fazia  realçar ainda mais a límpida candura da virgem. O namorado, encostado às  grades, dizia-lhe:

«Quando te vejo vir ao longe, tenho vontade de te rezar: Ave-Maria, cheia de  graça... Maria! Toda tu és luz e iluminas-me, toda tu és clarão e incendeias-me!  Toda tu és expressão e alma imaterial; as tuas formas são espírito revestindo  outro espírito, como um manto de rendas sobre um vestido de prata. O teu  olhar é mais profundo que os teus olhos, a tua boca é mais pequenina que o  teu riso. Tu não pousas os pés no chão, eu bem vejo como tu andas, Maria!  Vens para mim, da escuridão da noite, num andor coberto de açucenas, como  uma aparição, e as flores do jardim acorrem todas à tua passagem, recolhidas e  graves, à beira do caminho, de mãos postas, rezando: Ave-maria, cheia de graça, como se passasse a procissão...!»

Mariazinha sorria calada, e o sorriso iluminava-a toda. junto à grade, o vestido  era uma opala a desmaiar...

«Não dizes nada? Porque te calas? Não há ninguém que nos ouça! E quem nos  entenderia?! As minhas palavras só podem ungir os teus ouvidos, óleo santo  que os teus sentidos recolhem como um orvalho do céu. Gosto tanto de ti! O  meu amor já veio comigo quando eu nasci, entrou-me no peito como uma  pomba e lá fez o ninho! Na minha boca andou sempre o teu sorriso, nos meus  olhos o teu olhar, e foram os teus pés, maravilhosas flores de brancura, que  traçaram a pétalas o caminho para eu vir ter contigo. Andei anos a procurar-te  e achei-te! Procurar-te era achar-te já. Estavas comigo em espírito, divino  espírito que se fez carne para me salvar! Maria!»

Mariazinha cruzava as mãos brancas no peito, num gesto brando, magoado e  tímido; parecia uma andorinha que, ao cair da noite, no beiral onde tem o  ninho, recolhe as asas apaziguada e contente.

«Porque te calas? Não dizes nada? Fechas os olhos como uma criancinha que  quer dormir. Deixa-te estar assim, meu amor! Indigno sacrário que recolhe os  teus gestos de beleza, só de joelhos devia ver-te sonhar. Indigno pecador,  como foi que te mereci?! Para te pagar as horas inefáveis que das tuas mãos  recebo, as horas de paz que deixas cair sobre o mundo, toda a minha alma em  preces, de joelhos, de mãos postas, não é bastante, Maria! Por ti deixar-me-ia  crucificar, as chagas das minhas mãos seriam purificadas pela fímbria do teu  vestido. Estas grades de ferro defendem-te do hálito de toda a minha  impureza, como as grades de prata que encerram, longínqua e puríssima, uma  Virgem da minha terra. Não me atrevo a tocar-te: as minhas mãos seriam  queimadas como as de um sacrílego. Para dizer as letras do teu nome, como  quem passa as contas de um rosário, confesso primeiro os meus pecados para  não blasfemar, Maria! Porque te calas? Tens medo da noite, meu amor?»  

Mariazinha mexia os lábios como quem murmura mas não dizia nada. As  mãozitas dobravam-se-lhe no regaço, como hastes que têm sede ao ardor do  sol do meio-dia.

E todas as noites fora assim. Mariazinha lembrava-se muito bem. Todas as  noites daquele ano em que não houvera Inverno, o namorado, encostado às  grades, rezara a litania da sua puríssima paixão.

Mas um dia vieram dizer-lhe que ele tinha morrido. Morreu... pronto! Morreu.  Foi só isto, Mariazinha. E depois? Depois... disseram-lhe, para a consolar, que  ele tinha morrido como um herói, o corpo envolto na couraça, a cabeça  cingida no elmo dos modernos cavaleiros andantes; que tinha o túmulo que  merecera a sua grande alma ousada; que era preciso sacrificar, de vez em  quando, o mais alto, o mais digno, para aplacar as cegas cóleras da Natureza a  quem penetram os mistérios; que a bendita semente do exemplo era precisa  no mundo, para não se colher só joio. Disseram-lhe ainda que a pátria  apareceria mais alta tendo por pedestal o cadáver de um herói; que o seu  audacioso e impávido coração de trinta anos era mais precioso imóvel e  silencioso; que as suas fortes mãos de lutador, que domara e vencera os  elementos e as forças más da Natureza, eram mais fortes na morte.

Mariazinha não percebeu nem tão-pouco disse nada. Encerrada em si mesma  como num cofre selado, foi um túmulo fechado e mudo, onde as revoltas e os  gritos, as censuras e as carícias iam despedaçar-se em vão.  

À noite viam-na vaguear, horas e horas, sozinha, pelas ruas do jardim, sem se  voltar, sem um gesto, sem um olhar de interesse pelas coisas que não via.  Aproximava-se depois da grade onde a vinha virgem com os seus braços  teimosos continuava a enlaçar os duros varões de ferro, e ali ficava horas  esquecidas, pequenina estátua de mármore sobre um mausoléu, perdida num  sonho que não era da Terra. Viam-na voltar mais frágil, mais embaciada, de  uma palidez quase etérea. Instintivamente, procuravam-se-lhe as asas no seu  corpito de ave que parecia ensaiar um voo. Os seus olhos tinham um olhar tão  doce, tão desprendido das coisas deste mundo, que, sem querer, a gente  procurava o sítio onde ela iria pousar.

O pai e a mãe inquietaram-se por fim. Interrogaram-na, e com lágrimas e  súplicas pediram-lhe que falasse, que dissesse o que tinha, o que queria, o que  queria que eles lhe dessem, que eles lhe fizessem para a prender na Terra.  Tudo lhe fariam, tudo lhe dariam. Que ela pedisse tudo. Estavam prontos a  fazer por ela todos os sacrifícios.

Foi então que a Mariazinha, noiva-menina de um noivo-morto, disse, pediu o  que queria: queria ir para um convento.

«Isso não! Isso nunca!», clamaram os pais, numa revolta de toda a sua alma.  Fora então para isso que a mãe a trouxera nas suas entranhas, que a alimentara  aos seus peitos, que a embalara nos braços tantos anos! Fora então para isso  que o pai lhe amparara os primeiros passos, que lhe arrancara do caminho  todos os espinhos para ela passar! «Isso não! Isso nunca!»

Passaram dias, meses, passaram dois anos. O rosto miudinho era uma pétala  de camélia, todo o corpito de ave um flocozinho de neve. Continuava a ir à  grade onde ficava horas e horas a sorrir, de olhos baixos, com as mãos a  tremer, num enleio de amor que não era deste mundo.

Um dia, vendo-a morrer assim aos poucos, os pais cederam de repente.  Mariazinha, quando soube, chorou pela primeira vez e, encarando a mãe, com  as lágrimas a correrem-lhe em fio pelas faces, balbuciou: «Coitadinha!»

Escolheram um convento de Toledo, onde a regra não era muito apertada  nem muito severa. A mãe até tinha medo de a ver morrer no caminho.  Levaram-na como quem acompanha uma filha morta ao túmulo onde há de  ficar. E ela, perdida novamente na sua extática imobilidade de figurinha de  cera, atravessou os fartos vales portugueses, os desolados campos de Castela,  sem parecer ver nada à sua volta.

Chegou a Toledo numa manhã de chuva. A cidade, monástica e triste, parada  na evolução dos séculos, tão curiosa com as suas ruas estreitas e tortuosas, os  seus arcos, as suas escadinhas, o seu ar severo de monja, não lhe mereceu um  olhar. Não a viu.

Ao separar-se da mãe, horas depois, repetiu apenas, a chorar, a mesma palavra  que lhe viera aos lábios naquele dia em que soubera que entraria no convento:  «Coitadinha!»

Quando as grandes portas se cerraram, pesadas e tristes, por detrás do vulto  doloroso da mãe, Mariazinha, noiva-menina de um noivo-morto, olhou em  volta e sorriu.

Todo o tempo que durou o seu noviciado, foi a mais obediente, a mais  humilde, a mais submissa de todas. As mestras não tinham palavras para lhe  elogiar a doçura, a docilidade; e era tão profunda a paz que no seu redor  irradiava, que a própria superiora, severa e ríspida, esboçava um eflúvio de  sorriso quando a via passar, branca e frágil, pelos longos corredores escuros.  Foi como se num sombrio convento de Toledo tivesse entrado, pela primeira  vez, um raio de sol de Portugal.

E a Mariazinha passava os dias a sorrir e a murmurar às vezes umas palavras  sem nexo, uma estranha toada de oração que ninguém entendia. Na cerca,  gostava de se sentar num banco, sob um dossel de vinha virgem que há  muitos anos se abraçava ao tronco carcomido de uma acácia velha.  Contemplava-lhe as folhas, joias cravejadas de rubis, os dedos que se  crispavam no tronco musgoso... e sorria enlevada, pendendo as mãos no  regaço.

E assim passaram longos meses, e chegou o dia em que a Mariazinha  professou. Sob o hábito, que lhe ficava tão bem como um vestido de noivado,  tinha estranhas parecenças com uma Nossa Senhora do convento que, numa  capelinha cheia de luz à direita do altar-mor, sorria a um menino que lhe  estendia os braços.

Nessa noite, quando a Mariazinha entrou na solidão da sua cela branca e nua,  quando se deitou na dura enxerga que devia ser até à morte o seu fofo leito de  penas, quando a Mariazinha adormeceu, acordou Sóror Maria da Pureza.  

Sóror Maria da Pureza parecia-se com a Mariazinha, com a noiva-menina de  um noivo-morto, como duas gotas de água caídas da mesma fonte, como dois  raios de Sol tombados na mesma flor, mas não era ela. Não, não era ela...

Pelos claustros, onde se ouvia sempre o gorjeio de um veiozinho de água que  se perdia numa moita de lírios roxos no jardim abandonado, Sóror Maria da  Pureza sorria e falava.

As outras monjas ouviam-na, ficavam-se enlevadas a escutar:

«Porque me calo?» dizia ela. «Ave-maria, cheia de graça... Se a minha luz te  ilumina, se o meu clarão te incendeia, tu és o sol que se reflete em mim. As  minhas formas foram criadas, assim imateriais, para que revestissem um  espírito onde tu és amor e adoração, como um manto de rendas sobre um  vestido de prata. Quando eu passo, as flores acorrem todas à beira do   caminho, recolhidas e graves, de mãos postas, a incensar-me, para que eu seja  toda pureza ao aproximar-me de ti. Ave-maria, cheia de graça!»

Começou a correr com insistência no convento, entre as freiras e as  educandas, que Sóror Maria da Pureza compunha orações mais lindas, mais  fervorosas que as orações de Santa Teresa. Todas as monjas corriam a ouvi-la  quando no seu banco, onde a vinha virgem se enlaçava ao tronco carcomido  de uma acácia que já não dava flores, balbuciava, sorrindo, com as diáfanas  mãos em cruz no peito:

«Sim, as tuas palavras só eu as posso entender, só podem ungir os meus  ouvidos, óleo santo que os meus sentidos recolhem como um orvalho do céu.  Amo-te e adoro-te. Quando nasci, também já nasceste comigo; foram os teus  divinos passos, que eu ouvi quando fui ao teu encontro, que traçaram no chão  esse caminho de flores. Se me encontraste foi porque eu te procurava, porque  os meus braços em cruz se estendiam para a tua presença. Já estava contigo  em espírito, espírito eleito, essência perfeita e invisível que se fez carne para  me salvar!»

As monjas decoravam as palavras que andavam já de boca em boca, que as  mestras ensinavam às educandas, que eram rezadas por todas, aos pés dos  altares, com o maior fervor e devoção.

«Indigna pecadora, como foi que eu te mereci?! Indigno sacrário, onde  misericordiosamente deixas cair o mel das tuas palavras de amor! Toda a  minha alma em preces, de joelhos, de mãos postas, não é bastante para te  pagar o bem que sobre mim desce das tuas mãos abertas, a altura a que me  elevas, o êxtase em que vivo a esperar-te. Bendito sejas! Por ti, deixar-me-ia  crucificar, o sangue das minhas chagas beijá-lo-ia para resgatar os meus  pecados. Não tenho medo da noite, meu Amor: a noite é que te traz no seu  manto estrelado. Não me atrevo a estender para ti as minhas mãos, teria  receio de me queimar ao fogo abrasador do teu divino amor por mim. Tenho  medo de blasfemar quando passam pelos meus lábios, como as contas de um  rosário, as letras do teu nome; tenho medo de as não ungir com todo o fervor  da minha devoção.»

No convento cada vez se dizia com mais insistência que Sóror Maria da  Pureza era santa. Tinha êxtases e visões. Mal pousava os pés no chão, não  comia, não se deitava. De noite, estendia os braços em cruz, e sorria. O velho  capelão curvava-se reverente quando ela passava, quase imaterial, pelos  corredores escuros. Tinha o andar baloiçado e sereno de quem caminha num  andor em procissão. Resplandecia. Parecia feita de luz. Uma das pequeninas  dizia ter visto a velha acácia que já não dava flores deixar cair pétalas no chão  aos pés da vinha virgem, uma tarde em que Sóror Maria da Pureza lá rezara  uma oração.

E no plácido silêncio dos claustros, onde o gorjeio do veiozinho de água  continuava a afagar os lírios roxos, no coro onde os vitrais transformavam  como alquimistas o Sol em pedras preciosas, na cerca cheia de murmúrios e  risos de passarinhos, na igreja onde a Nossa Senhora da capelinha cheia de luz  continuava dia e noite a sorrir ao menino que lhe estendia os braços, no  banco, sob o dossel da vinha virgem, por toda a parte, enfim, Sóror Maria da  Pureza, indiferente a tudo, cada vez mais exangue, mais frágil, mais luminosa,  continuava a rezar as suas orações, que andavam de boca em boca e que eram  mais lindas e mais fervorosas que as de Santa Teresa.

Orações de amor, sacrílegas, blasfemas orações de pecado, a um noivo-morto,  rezadas num convento de Toledo, aos pés dos altares, por bocas puras, que  estranhas orações de pecado!...

De pecado?... Não... que Sóror Clara das Cinco Chagas, a severa e ríspida  superiora, ao ouvi-las rezar um dia por uma das pequeninas na capela do  Sagrado Coração, dissera suavemente, erguendo os olhos ao céu:

«Sagrado Coração do Senhor, ouvi-a!»

Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)

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