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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A SALUBRIDADE E SANEAMENTO PÚBLICOS EM BRAGANÇA

Pela sua importância óbvia, as questões da salubridade e saneamento públicos, claramente indissociáveis, mereceram a frequente atenção por parte das sucessivas vereações. Contudo, sucedia frequentemente que a inexistência de outras condições complementares tinha como efeito o rápido amortecimento dos efeitos enunciados em posturas municipais bem-intencionadas.
Bairro de Além do Rio na atualidade
Era frequente a intimação dos moradores para não fazerem despejos para a Rua de Santo António (Tombeirinho), para a Travessa do Corpo da Guarda, para a Rua de Fora de Portas e outros arruamentos. São também conhecidas outras orientações, como as que ordenavam a abertura dos “canos necessários para a Rua de Fora de Portas”, de modo a irem entroncar no cano de saneamento geral da Travessa do Forte de S. João de Deus. Logo a seguir, eram os marchantes que se organizavam e relatavam à Câmara que mesmo à porta do matadouro estava aberto o cano ou aqueduto de uma cloaca que exalava um cheiro “insuportável”.

De acordo com as possibilidades, a edilidade procurou solucionar as dificuldades que iam surgindo, enquanto alguns vereadores propunham outras soluções. Foi assim que, logo nos começos de 1864, se propôs que as ruas da Cidade fossem percorridas por dois carros que recebiam o lixo que os moradores entregassem às quartas e sábados de cada semana. Neste serviço, que devia ser prestado por arrematação, compreender-se-ia “o esterco que estiver acumulado nas ruas”, cabendo aos carreiros o seu transporte para sítios afastados do casario. Contudo, a tentativa de criação de um serviço regular de limpeza urbana não contaria com os votos suficientes para ser aplicado.
A falta de meios financeiros inibia frequentemente a ação camarária. Por este motivo recorreu-se, em maio de 1865, aos ofícios do Governador Civil, na perspetiva de se obter o seu apoio ao desbloqueamento da construção de um cano geral para “escoamento da privada do hospital da Misericórdia”, tanto mais que se temia um surto de cólera. Por isso se tomavam providências que ajudassem a evitar este flagelo. Algumas, como a limpeza das ruas, travessas e becos, eram repetitivas. Outras alargavam os seus efeitos ao matadouro, “urinóis públicos” e pugnavam com maior ênfase pela reparação do “cano real”, que desaguava junto do matadouro e construção de cloacas públicas. Do matadouro deviam ser removidos os intestinos e os couros dos animais, que deviam ser impedidos, especialmente os porcos, de vaguearem pelas ruas. Ao juiz da freguesia de Santa Maria, uma das duas da Cidade, recomendava-se particular vigilância na limpeza “das imundices que se encontram nos bairros dos Batocos e de Além do Rio, que precisam de ser limpos com a maior urgência, e os urinóis das portas das igrejas de Santa Maria e de S. Vicente”.
Era junto a S. Vicente que residia Paulino de Moura, o clérigo que requereu à Câmara a autorização para tapar a expensas próprias um “calejo”, situado ao pé da sua casa, nas Portas da Cadeia, que servia apenas para evacuação das águas pluviais que iam da Cidade para o Rio Fervença, as quais, por serem de “despejo e limpeza geral da Cidade, são incómodas e nocivas à saúde”.
Problemas do mesmo tipo afligiam algumas casas da fidalguia e a área da sua vizinhança. Veja-se, por exemplo, uma representação dos moradores da Rua do Espírito Santo, em que alegavam sobre a necessidade premente “de se mandar fazer um cano de despejo na casa denominada do Arco e de se vedar completamente por meio de parede uma latrina” que pertencia à mesma casa.
O despacho favorável enquadrava-se nas preocupações de melhoramento dos níveis de higiene pública.
Neste âmbito, legislava-se determinando os sítios do Fervença onde se poderia lavar a roupa suja ou as tripas dos animais que se abatiam. Para a primeira função estipulava-se o segmento de rio compreendido entre as poldras que permitiam o acesso à Fonte das Fontainhas e a zona a jusante da Ponte dos Açougues. Já as tripeiras deviam limitar-se a esta área, “junto à queda que o rio dá para o Batoco denominado de baixo”.

A criação anual de um ou mais suínos era sinónimo de fartura e permitia que as famílias ultrapassassem várias dificuldades alimentares. Por isso, a partir dos primeiros gelos, sucediam-se as matanças, cumprindo um ritual com grande interesse etnológico. Só que estas operações, envolvendo, como se sabe, água, sangue e fogo, ocorriam maioritariamente nas ruas públicas. Dando-as como “impróprias para os viandantes, por onde passa o sagrado viático que vai visitar os enfermos e préstitos fúnebres, acompanhados muitas vezes pela força armada”, justificava-se “a matança e chamusca dos animais suínos [como um ato] contra a civilização que se dá em terras de segunda e terceira ordem, entrando neste número a Cidade de Bragança”. Portanto, o que havia a fazer era decretar a proibição “durante o dia, de hoje para o futuro, nesta Cidade e seus bairros”, da matança, chamusca e lavagem dos porcos que, assim, só poderia fazer-se de noite, “de sorte que ao toque de Ave Marias de manhã cedo, estará varrida e limpa a rua”.
Ainda a respeito da salubridade, diga-se que, por vezes, a aproximação à imagem das cidades também pode ser construída a partir de pequenas notícias, ainda que pintadas com as tintas do enaltecimento biográfico.
Quando numa folha local se recordava a memória de António de Sousa Pinto, um autarca falecido em 17 de julho de 1905, destacava-se a sua dedicação à terra e davam-se exemplos, frisando a sua capacidade de decisão que o levou a fazer “demolir casas arruinadas e construir outras novas no lugar delas; obrigou os proprietários da Cidade a caiar prédios e muros de escura e suja alvenaria; mandou levantar o nível da rua que liga a Avenida de Fora de Portas à Praça de Camões, construindo ali um tanque”, para além de ter concluído a liquidação judicial entre a Câmara e os empreiteiros da praça-mercado de Santa Clara e de ter mandado plantar árvores e ajardinado largos.
Selecionámos esta notícia apenas por exemplificar como os aglomerados urbanos se modificam e evoluem em consequência de obras de fundo, como a correção do perfil dos arruamentos, dos pontos de abastecimento de água e ainda daquilo a que, usando uma terminologia corrente nos dias de hoje, chamaríamos uma política de cor, a qual, pelo uso intensivo de cal e das suas propriedades desinfetantes, abonava as intenções profiláticas.
É que mesmo na área adjacente à Praça da Sé, então já uma centralidade estável, ainda existiam indefinições urbanísticas e sórdidas lixeiras. A este respeito é importante que foquemos a atenção numa exposição apresentada à Câmara, em outubro de 1905, pelo cidadão João José Alves, justamente por se salientar a reconhecida necessidade de se proceder “ao saneamento da caleja formada entre as traseiras de algumas casas da Rua Alexandre Herculano, antiga Rua de Fora de Portas e o muro da cerca do Seminário desta Diocese”.
Sinais de pobreza e insalubridade em Bragança, nos meados do século XX
Para isso, seria imprescindível alargar e prolongar o “calejo”, tornando-o uma rua acessível ao trânsito público “e de modo que os dejetos nela acumulados tenham fácil esgoto”. Para tal, argumentava João José Alves, era indispensável “expropriar terreno na superfície de 840 metros quadrados pertencente à cerca daquele Seminário [de S. José] pertencente ao corpo capitular da mesma Diocese”.
Vivendo-se uma situação financeira de algum desafogo, propunha-se que a Câmara negociasse com o cabido “a expropriação amigável do indicado terreno pela importância de 100$000 réis, fazendo-se as despesas de vedação por conta deste Município”, como preceituavam os artigos 6.º e 7.º da lei de 23 de julho de 1850 e a lei de 8 de junho de 1859, à luz das quais se devia informar o processo.
Na mesma altura e sobre a mesma matéria, chegava à Câmara um ofício dos capitulares, em que se mostravam reconhecer “as vantagens da salubridade pública que resultariam da expropriação da parte da cerca do Seminário”, só que o cabido não podia aceitar as condições propostas na medida em que precisava da autorização da nunciatura para dar o seu consentimento à expropriação amigável. Como se dizia que a nunciatura tinha o expediente paralisado, alguns vereadores insistiam na urgente conveniência de se decretar a expropriação por utilidade pública de terrenos da cerca do Seminário de S. José, o que permitiria definir, “no calejo formado pelo muro daquela cerca e algumas casas das traseiras da Rua de Fora de Portas”, a atual Rua da República. Ao mesmo tempo não se perdia de vista que a urgência da expropriação era do interesse público por desbloquear a possibilidade de sanear um local “que pode facilmente converter-se em foco de epidemias”, como já tinha sido atestado pelo subdelegado de saúde.
A continuidade deste processo ditou uma assinalável mutação urbana na área da cerca do antigo colégio da Companhia de Jesus e, depois, do Seminário de S. José, já que aí se construiu o Jardim António José de Almeida que, com as obras da Rua da República, originou reformulações em algum casario implantado na zona envolvente.
Dois exemplos. O primeiro refere-se a um requerimento de Domingos Manuel Lopes, analisado na sessão de 1 de março de 1937, pretendendo informações sobre as possibilidades legais de anular um desnível existente junto da sua casa na Rua Alexandre Herculano, “parte da antiga casa do Rei”, para mandar laborar a planta. O segundo caso, na mesma sessão municipal, refere-se ao pedido de pagamento que Francisco Cândido Cordeiro apresentou por lhe terem expropriado uma casa que era necessário derrubar para se poder alargar a entrada para o Jardim António José de Almeida.
Apesar da pequena escala, a matéria destes dois exemplos é particularmente significativa das transformações que se operavam no coração da Cidade num tempo em que já iam altas as luzes do século XX. Aliás, e em regra, no período moderno os principais municípios do País mostraram um elevado grau de preocupação com a higiene e o saneamento públicos. Não se afastando desta tendência, algumas vereações bragançanas tentaram efetivar a aplicação de medidas que contrariassem o arreigado costume de se gritar três vezes “água vai”, como forma de avisar o transeunte despreocupado a tomar as devidas cautelas. Todavia, neste domínio, as diretivas mais aceites, porque eram pouco numerosas, caracterizam-se por serem constantemente repetidas, e limitavam o seu âmbito à definição dos sítios das “montureiras” e à proibição de lançar “surradas” ao Rio Fervença a montante da Ponte dos Açougues, especialmente por parte de algum mester relacionado com os curtumes.
Sinais de pobreza e insalubridade em Bragança, nos meados do século XX
Já visível em finais do século XVIII, a modificação destas condições passaria a seu uma exigência na centúria seguinte, quando o tema passou a ser frequente nas reuniões de vereação e nas conversas de particulares.
De resto, temos conta da importância que o Município votava a esta matéria, razão pela qual, em meados do século XIX, se investiram mais de 20% dos recursos financeiros da Câmara na construção de canos reais que permitissem o saneamento das principais ruas. Um esforço financeiro que se continuou a operar durante várias décadas. E, mais do que uma vez, como ocorreu entre 1899 e 1904, a Câmara viu-se na necessidade de desviar verbas do fundo de viação municipal para satisfazer compromissos com o saneamento da Cidade.
Neste domínio, de um modo geral, as campanhas de trabalhos realizados durante o período da Regeneração serviram a Cidade até ao século seguinte, tendo alguns desses empreendimentos mostrado a sua utilidade até às décadas de 1930-1940, com a reformulação dos coletores das principais ruas da Cidade, aproveitando as obras de pavimentação então efetuadas. Basicamente, foi este sistema que prevaleceu até aos derradeiros anos da centúria de Novecentos, altura em que o aumento populacional na Cidade e a generalização da rede obrigaram à ampliação das suas capacidades e à sua completa modernização.
Até este momento, os canos-mestres mantinham a construção em alvenaria cimentada e cobertura de grandes lajes de pedra, mostrando aqui e ali os problemas da idade e lançando os resíduos das habitações, das escolas e dos hospitais, diretamente em vários pontos do Rio Fervença. Pela fraqueza do seu pequeno caudal, particularmente no verão ou em épocas de seca, estava longe de possibilitar uma boa drenagem. Em consequência, de modo progressivo, o rio ia sendo transformado num autêntico coletor geral, perdendo a sua vida própria, vegetal e animal, afastando os habitantes que procuravam o Jardim Dr. José António de Almeida, situado na sua margem, e causando má impressão aos visitantes.
Embora nos últimos anos a situação fosse insustentável, o problema, embora com menos grandeza, era mais antigo. Todavia, o Município de Bragança não dispunha dos recursos necessários para o combater através de estruturas que anulassem ou minorassem os perniciosos efeitos provocados pelo lançamento direto dos efluentes na água do rio.
ETAR de Bragança, paradigma da recente evolução das condições de salubridade urbana
Mesmo assim, as obras de saneamento prosseguiram, destacando-se a construção de um grande coletor ao longo do rio, que recebia os esgotos secundários. Não obstante, seriam lançados no rio, quase no centro da Cidade, junto da central elétrica, embora em local de menor visibilidade pública e habitado por pessoas de fracos recursos.
Paralelamente, prosseguiu-se a remodelação e ampliação da rede de esgotos e a construção de retretes públicas na Avenida João da Cruz e no Jardim Dr. José António de Almeida.
Um outro problema, já no último quartel o século XX, relacionava-se com os lixos sólidos, da lixeira que se instalou junto ao Campo de Aviação, quase à entrada da Cidade, e ao lado da estrada de ligação a Vinhais. Sem qualquer tratamento, periodicamente, a vasta montureira era incendiada, acontecendo com frequência que a Cidade fosse coberta por uma espessa e incomodativa nuvem de fumo. Inconvenientes semelhantes, embora de outra ordem, eram provocados por um outro grande coletor que descarregava os esgotos a céu aberto na zona da Estacada, também sem qualquer tratamento e ao arrepio do interesse público e dos modernos preceitos de higiene. Práticas que, em tempos mais recentes, se corrigiram com recurso a novas estruturas dotadas de equipamentos e tecnologias avançadas.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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