(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
A vida era diferente, nem melhor, nem pior. Como tudo na vida é relativo, umas coisas eram melhores, outras piores. Mas foi o tempo que nos coube vivermos e como em todas as gerações deixou marcas indeléveis em todos e em cada um.
Recordo-me dum tempo inseguro em que a semelhança com a angústia actual não estava longe! Posso, a esta distância temporal e à falta de melhor exemplo usar o que era a expectativa que pesava na comunidade no tempo em que a Tuberculose era o inimigo principal da sociedade portuguesa. Claro que esta enfermidade era de origem diferente desta, pois era causada por um bacilo e esta é de origem viral.
Os espaços temporais entre a infetação e a cura, ou a morte, eram incomparáveis, mas era igual a angústia da população já que se tratava de uma doença infecto-contagiosa que quando se instalava, destruía a paz nas famílias e no auge da epidemia, desconhecida como era, portava com ela a ameaça do sofrimento e da incerteza.
Foi longo o caminho até à sua erradicação e foi necessária muita tenacidade do povo, do Estado e das Ciências-Médicas até que lentamente se foi afastando e depois quase esquecida. Reapareceu de novo há uns poucos anos mas já sob a capacidade científica para a combater e salvar vidas com o conhecimento de todos os fatores que a transformam numa ameaça para a sociedade. Conheci algumas pessoas que passaram por esse pesadelo e guardo ainda a perceção do quanto esta doença foi estigmatizante.
A sociedade estava mais estratificada e o nível cultural desta era incomparável ao dos dias de hoje. As classes alta e média-alta estavam mais protegidas naturalmente, pois que a doença era prolífica onde a higiene não fosse levada à risca e a alimentação escasseasse e ou onde o vício particularmente o do cigarro campeasse.
É evidente que a classe média-baixa e a base da pirâmide, o povo, estavam mais expostos e por razão de todos estes fatores era mais atingidos. Foram tempos comparáveis aos atuais, mas de menos rapidez nos processos de contaminação e desfecho. As referências que faço devem ser tomadas como informação simplificada e sem pretensão a qualquer análise científica.
Mas a vida da gente continuava no seu dia a dia, no trabalho, no convívio, nas instituições, em pleno gozo dos seus direitos e obrigações e sem esta ameaça constante que começa a envenenar o nosso sentido gregário.
Começa nas advertências primárias dadas pelas Autoridades à população como sejam: não apertar a mão, manter-se afastado dois metros da pessoa mais perto de si, lavar as mãos frequentemente, usar luvas de borracha e máscara cirúrgica etc,etc,. Tudo isto como estratégia para conseguirmos extirpar o vírus que sendo altamente mortífero não tem preferências de atacar as classes alta, média ou baixa. Leva tudo sem se saciar jamais. Felizmente o povo está hoje mais culto, mais sereno, mais abastado e mais paciente. E é aqui que está a força que a educação, a Escola e a ciência deram ao povo a partir do fim da segunda Guerra Mundial e que só como termo de comparação posso dar para que se veja a diferença entre as probabilidades de não se ser infectado hoje e comparativamente com o tempo da minha criação.
O número de pessoas a viverem em condições de insalubridade é ínfimo.
A capacidade de tomar decisões sensatas e cientificamente orientadas deixa a sociedade do meio do século passado a anos-luz da atual.
Há, muito bem implantado, um SNS que a todos atende de igual forma e há uma comunicação social que não dá tréguas aos erros dos responsáveis e os confronta permanentemente no ajuizar de actos e omissões. Em suma estamos mais avançados e conseguimos encurtar as diferenças entre o nosso país e os considerados de vanguarda.
Ao correr da pena e quando escrevia as últimas frases ocorreu-me uma passagem que por insólita ainda hoje recordo com alguma condescendência, porque ilustra a diferença de conceito de vida de nos sentirmos membros de uma sociedade mais esclarecida e mais humanizada. Devia ter os meus doze anos, trabalhava na Pastelaria Ribeiro e o forno onde se cozia a pastelaria era aquecido com estevas e giestas que algumas mulheres da Boavista, apanhavam nos bosques que circundavam a cidade muito particularmente na Quinta do Lima ou do Calaia e outras, mas sempre em contravenção, já que vezes sem conta eram obrigadas a deixar o feixe pois os caseiros as apanhavam em flagrante e a lei do mais forte prevalecia. Dado que o cerco havia apertado um pouco, as mulheres passaram a ir menos vezes ao monte e naturalmente o "Stock" de lenha seca no sequeiro começou a baixar perigosamente.
Era quase Páscoa e a azáfama era muita e o consumo de lenha estava no auge. Posto isto o patrão mandou-me à Boavista a casa da tia Carrachela, que mulher esta, só comparável à Padeira de Aljubarrota, para lhe dizer que estávamos quase sem lenha e que urgia procurá-la. Sigo para a Tia Carrachela e bato à porta. Sai-me o seu marido , homem já de uma provecta idade, mas também ele homem de armas e sempre pronto a contar uma história .
Eu conhecia toda a gente da Boavista e o Tio Carrachelo era meu amigo. Saudamo-nos e eu perguntei-lhe pela esposa e pu-lo ao corrente do que me levava ali. Respondeu-me que ela não estava, pois tinha saído com o burro pela arreata, na intenção de juntar alguns guiços para queimar à lareira pois ele era já ancião e tinha frio sem lume na lareira. Mas ... o patrão precisa das estevas para aquecer o forno, ripostei. Disse-me então: -Entra para aqui que te vou contar uma história. E eu entrei. Sentou-se e disse-me: -Há uns anos a "Minha" teve necessidade de ir ao rebusco e o meu rapaz mais velho ainda mamava na teta. Disse-me: -Homem toma conta do garoto que eu demoro pouco. Assenti e o garoto ficou aí. Pouco depois o rapaz quis mamar na teta e eu não tenho teta e também não tinha leite. O moço berrava parecia que deitava a casa abaixo. Quando passou a ser de mais e ele não parava de berrar pela teta, fartei-me e pensei… que lhe dou em vez da teta? Decidi ir buscar o presunto que tinha lá em baixo na adega e cortei um bom pedaço que chegasse para ele e para mim. Cortei de novo o que era para mim e dei-lhe o que achei que ele seria capaz de comer. Quando lho passei para a mão levou-o à boca e com os olhos cravados em mim começou a moer. Gostou, comeu-o todo e nunca mais pediu teta.
Eu estava bem atento à narrativa e com este desfecho ri à gargalhada e perguntei: -Mas..., e a lenha? Que resposta dou? Contas-lhe esta história, eu não tinha teta nem tinha leite, usei o presunto. Ele não tem estevas nem tão pouco giestas, que queime a mobília.
Saí e o Tio Carrachelo sorria como quem dá uma grande lição ao aluno que ávido de saber, aproveitará o tempo para concluir que para grandes males grandes remédios.
Todos os membros da nossa sociedade deveriam saber esta história e pensarem que estamos diante de uma calamidade que só se resolve com desprendimento, sentido de sobrevivência e tenacidade. O tio Carrachelo abriu a reserva do seu tesouro por rusticidade, mas sentido prático.
E eu aprendi que há um tempo para poupar e outro para tomarmos decisões que nos salvem a vida.
... O que a Pandemia me está a fazer à cabeça!!!
Bragança 01/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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