sábado, 11 de abril de 2020

Textos literários e textos poéticos, ou o prazer da leitura.

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Foto: VisualHunt
Tentando afastar esta ociosidade que toma conta de mim, neste período de medo e resignação, tenho tentado abstrair-me do que paira ameaçador, ocupando o tempo com leituras.
A questão que normalmente se me apresenta é a de dada a quase permanência quase ininterrupta dos meios de comunicação que veiculam notícias as mais dramáticas, mas que por outro lado tentam encorajar-nos para a resistência, me causar o dilema da dúvida permanente e contra o habitual me leva à incapacidade de ler um livro de fio a pavio. Pego num e começo a ler, poucas páginas adiante pouso-o e fico com a sensação de que aquele tema, não se coaduna com a minha disposição actual. Resignado, um pouco mais tarde pego outro, na vã esperança que esse sim seja o que me vai interessar. Terá o mesmo epílogo do anterior.
Foi assim durante vários dias contrariando a minha tendência de ler quando tenho tempo. Foi assim desde a minha infância e não deveria ser diverso agora. Lutei contra esta falta de vontade tenaz e persistentemente durante uns tempos até que haverá uns cinco dias, de uma estante retirei dois livros comprados em Londres, um em 2008 e o outro em 2015. São ambos antologias de prosa e poesia inglesas. O de 2008 tem o título de "The Mac Millan Anthology Of English Prose” e é da responsabilidade de Edward Leeson publicado por Papermac. O segundo comprado em 2015 tem o título de " We Shall Figth On The Beaches " e foi compilado por Jacob F.Field publicado em 2013 por Michael O'Mara Books Limited. O primeiro citado é uma coletânea de textos sendo o primeiro de Sir Thomas Elliot (1490/1546) e o último de Anita Brookner (1928) sendo o segundo definido como "The Speeches That Inspired History ".
Estranhamente comecei a ler e como os textos são pequenos, de 2 a 4 páginas, foi fácil retomar a leitura sem bocejos. Razão maior para tal foi o facto de que eu esperava algo interessante e acabei lendo prosa interessantíssima, pela fluência que fui capaz de notar em todos eles e a beleza imanente da subjetividade dos temas descritos com harmonia , ritmo e gramaticalmente impolutos. Perguntarão os que me lêm: - És assim tão entendido nisso que te arrogues de "expert " na matéria? Direi, não, mas acrescentarei que para se ler e compreender prosa tão escorreita não precisamos de grande formação, pois a harmonia é tão sintética e elegante que a escrita dá à mensagem, leveza e clareza que só quem é de facto sensível é capaz de passar a letra redonda.
O segundo livro é mais pequeno e inclui textos de exortação escritos e proferidos por Péricles, Alexandre O grande, Papa Urbano II, Abraham Lincoln, Winston Churchill, este com quatro dos seus mais empolgantes discursos dirigidos à nação e até o discurso de Ronald Reagan em Berlim exortando os comunistas a desmantelarem o muro que dividia a cidade e as duas Alemanhas. Também o discurso de Haile Selassie da Etiópia clamando na Liga das Nações contra a ocupação do seu país pela Itália. Também traduzido para inglês magistralmente, o apelo de Giuseppe Garibaldi (1807 / 82) aos seus soldados, para a continuação do esforço para a Unificação da Itália.
Depois desta retoma pela leitura, pensei… Vou ver o que tenho nestas estantes que me agrade e me sirva para agora apreciar a subtileza da minha língua portuguesa.  Encontro Padre António Vieira e investigo os vários capítulos. Conheço suficientemente Vieira e admiro-o por ter sido tanto um clérigo de inteligência e visão larga, mas sobretudo pela sua sensibilidade para expor os problemas de humanidade que a linha dura da Igreja do seu tempo impunha às populações d'aquém e d'além Mar de quem ele foi defensor acérrimo, ganhando como prémio, o cárcere e a dor física juntas com a estupidez de quem a ele servia, uma igreja intolerante que ele porfiou por resgatar, sem conseguir e servindo um povo que cercado por esbirros da nobreza parasita que o sobrecarregava com taxas, violência e desprezo não levou a carta a Garçia, mas deixou prosa de fina filigrana. Li alguns sermões e nesse ato tão simples, deparo-me com um texto que eu conhecia e que desde a primeira leitura, muitos anos atrás, me delicia, chamado "O Estatuário". Abre como segue:  Arranca o Estatuário uma pedra destas montanhas/, tosca, bruta, dura, informe/ e depois que desbastou o mais grosso/, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem/, primeiro membro a membro e depois feição por feição/ até à mais miúda, ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa/, rasga-lhe os olhos afila-lhe o nariz/abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços/  ,espana-lhe as mãos, divide-lhe os dedos/, lança-lhe os vestidos/. Aqui despega, ali arruga, acolá recama/ . E fica um homem perfeito e talvez um Santo que se pode por no altar. /Faz parte do Sermão do Espírito Santo e tem por finalidade garantir direitos aos índios brasileiros. 
O ritmo desta prosa é de uma elevação que só um génio das letras e da retórica seria capaz de alinhar. A sucessão de verbos com pronome reflexo que começa em /Ondeia-lhe os cabelos e termina em lança -lhe os vestidos é de uma harmonia transcendente.
E assim me entusiasmei com a língua da minha gente Que beleza! Li depois Aquilino e a língua escrita é a mesma mas em tom mais livre. As descrições da ação são plasmadas com eficiência e de A Via Sinuosa retira este pedaço brilhante de língua do povo: Fomos descendo as courelas onde ranchos andavam ceifando. A folha já mal tinha aquela branda e indivisível ondulação dum mar benigno numas sortes os rolheiros esperavam já a carreta, noutras as espigas correndo, correndo ao sopro da brisa. Tão belo e tão humano, numa descrição soberba da vida do povo e da Natureza que me humedece os olhos e me amolece o coração.
Os últimos dias foram para a língua portuguesa que do Brasil pela pena de Olavo Bilac me encheu o coração e os sentidos com esta pequena maravilha. "LÍNGUA PORTUGUESA " /1/ Última flor de Lácio inculta e bela/ És a um tempo esplendor e sepultura/Ouro nativo que na ganga impura / A bruta mina entre o cascalho vela /2 /Amo-te assim, desconhecida e obscura / Tuba de alto clangor, lira singela / Que tens o trino e o silvo da procela / E o arrolo da saudade e da ternura /3/ Amo o teu viço agreste e o teu aroma / De virgens selvas e de oceano largo / Amo-te ó rude e doloroso idioma / Em que da voz materna ouvi , meu filho / E em que Camões chorou no asilo amargo / O génio sem ventura / E o amor sem brilho.
E assim vencendo o tédio e pulando as folhas do calendário vou passando os dias deste isolamento que nos tira a alegria e a confiança. Mas bem que ainda há livros escritos que contêm páginas cuja leitura é só comparável à nossa Felicidade perdida com esta calamidade.
Ainda nos resta um pouco de esperança em dias e obras que a mãe natureza qual mãe extremosa nos decida deixar ainda viver, com livros e música de boa qualidade.





Bragança 04/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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