A única luz era a da lua, quase cheia, quando do nada surgiram dois faróis, quais cometas em câmara lenta, aproximando-se da Casa da Lama Grande, perto do topo da serra de Montesinho, onde a minha pequena tenda estava montada para uma breve pernoita, entre o pôr e o nascer do Sol. Já tinha acabado de jantar alguns pedaços de pão com chouriço e salpicão que trouxera da aldeia de França, regados com meia de tinto da casa, qual magnífico carrascão Reserva!
Faço sinais de luzes com o meu frontal; respondem-me no mesmo código. São eles que chegam, mas aqui o extraterrestre sou eu. “Então vai passar aqui a noite sozinho?” pergunta-me o casal, a bordo de uma pickup. “Sozinho não”, respondo, “com as vossas vacas. Os senhores são os donos delas, não é? São para aí umas vinte?”. “Qual quê? São quase cem”, reage a mulher, para continuar alegremente: “Pode ir para o meio delas que são muito meigas e não deixam os lobos fazerem-lhe mal. Elas estão de férias, passam o Verão todo cá em cima. Andam por aí à solta…”.
“Em liberdade total?”, indago. “Claro, sem fronteiras”, diz ela. “Até temos uma mirandesa perdida ali em Espanha”, ri-se o homem. Ali fica a algumas centenas de metros. “Além dela”, continua, “temos só mais outra mirandesa, o resto são charolesas e limusinas.” Bem me parecia que isto era um hotel de luxo, tantas estrelas e uma fila de limusinas à porta. “Estas devem ser as vacas mais altas de Portugal” exclamo, na despedida, o que os deixa babados das suas meninas.
“Boa noite, bom descanso!”.
Este postal de pastagem de altitude poderia assemelhar-se, para muitos de nós, a uma das maravilhosas fotografias a preto e branco com que Georges Dussaud guarda o reino transmontano; e não apenas por ter sido, neste caso, uma imagem nocturna, mas também porque pode parecer ter contornos de um momento em vias de extinção. Pelo contrário, Carlos Aguiar, investigador do Centro de Investigação de Montanha (CIMO) do Instituto Politécnico de Bragança, vê aqui um frame com cores de amanhã.
“É preciso devolver algumas destas montanhas, como Montesinho, aos grandes herbívoros. E estou a falar de vacas, ovelhas e cabras. Isso é fundamental. E, no fim de contas, é devolver ao país aquilo que ele é. Nós somos um povo de pastores.”
Este professor da Escola Superior Agrária atravessa esta serra há mais de quatro décadas. Vinha do Porto desde 1978, surfava o vento agarrado às janelas do comboio do Tua, subindo da Terra Quente a este cotovelo da Terra Fria. Dormia no sopé do castelo e depois seguia para as aldeias. “Era uma aventura fabulosa. Fazia isto tudo a pé: era e ainda é muito bonito.”
Na conversa, na sua improvisada mesa de trabalho na esplanada do Café Torrão, em Bragança, com uma cerejeira por trás, entrelaçam-se as razões que explicam a “mudança radical” que ele testemunhou nesta paisagem, fruto do percurso do próprio século XX.
Ele viu o último grande episódio, mas estudou os anteriores. A sabatina que ele me dá – como se eu estivesse numa aula de introdução de uma cadeira que, imagino, poderia chamar-se “Conservação Cultural da Natureza”, roubando o título a um livro de Jaime Izquierdo Vallina que compro em frente à Sé –, irá acrescentar significados aos meus passos em volta da Malhada Grande, o ponto mais alto da serra de Montesinho em território português, que também há quem chame de Lombada Grande, mas que os antigos da aldeia tratam por Malhada da Cova, precisamente pela cova que o Sabor faz naquele lugar, ainda rio bebé.
Já é homem crescido, o Sabor, quando passa pela ponte de França, depois de ter recebido as águas da Ribeira das Andorinhas, num pequeno vale que é um dos mais bonitos que alguma vez vi. Nesta serra, o pequeno juntando-se ao pequeno torna tudo grandiosamente belo. Não sei se haverá cama mais fofa no mundo para uma sesta do que a erva destes lameiros, depois de um saboroso banho gelado, com as trutinhas a fazerem- me cócegas nas pernas.
Espectáculo de serenidade
Quando passei um dia inteiro nos lameiros de França com o pastor Manuel, há mais de uma quinzena de anos, ele e Lurdes tinham então cerca de 150 ovelhas. Hoje sobram apenas 20. Vou reencontrá-lo à janela de casa, num primeiro andar envidraçado, o seu pouco cabelo branco coberto pelas nuvens que, cá de baixo, vejo reflectidas em toda a vidraça. Que pena o Nelson Garrido ainda não ter chegado, que quadro este: Manuel rodeado de nuvens quando os joelhos com mais de 80 anos já não o deixam andar por aí, rodeado das suas ovelhas.
Uma ou duas horas depois, o céu já não está pintalgado de ovelhinhas e Manuel vai limpando cabeças de alho num telheiro térreo. “É para as senhoras não sujarem as mãos”, ri-se, entre memórias dos tempos mais rudes com “uma carocha de pão com queijo e presunto e uma malga para beber o leite directamente das cabras”. “Há ali uns castanheiros e umas nogueiras na borda do rio. Foi uma história que eu fiz. Depois, vêem logo uma canada à esquerda e está ali a curriça”, indica-nos o pastor, quando eu e o Nelson lhe dizemos que gostávamos mesmo muito de ver os animais.
A Lurdes que ficou na objectiva poderia ter sido um dos rostos das telas de Graça Morais. Nas suas mãos há mais caminhos do que aqueles que cabem num mapa. Ampara-se em dois bordões: “Toda a minha vida andei pelos altos dos montes. Estas tontinhas são umas marotas, ariscas.
Até ao meu marido elas já estranham”, tão raras são as vezes que Manuel regressa ao pouco que sobra do rebanho. Lembro-me que ele até dava nomes a algumas daquelas 150 ovelhas dos inícios de 2000. Baptizou uma de Europa, nasceu horas depois de ele ter pastoreado comigo uma manhã na rádio. Era um 9 de Maio.
E lá vai Lurdes, levando as sobreviventes para os lameiros. Carlos Aguiar, que fez parte do projecto SOS Lameiros, englobando várias instituições universitárias do Sudoeste da Europa ligadas à montanha, realça a importância da renovação deste tipo de habitat de vegetação seminatural, dependente de pastoreio e de corte, mas em cujo interior e orla vive alguma da flora mais rica desta serra. Os lameiros são apenas um dos exemplos – porventura o mais simbólico ao olhar de um viajante leigo – de como este investigador vê futuro, não obviamente num regresso à lavoura quase escrava, mas sim na simbiose de um saber humano acumulado com o saber científico que permita renovar, inclusive aperfeiçoar, um ecossistema misto que, para além de toda a sua função económico-social, seria fundamental para esfriar os fogos.
“Porque se houver animais, o que muda é o perfil do fogo. Ele não desaparece, mas o que nos interessa é que esse fogo seja diferente”, conclui o professor e investigador. Por instantes, claro que reflicto sobre os Alpes e os Pirenéus. Mas penso também que os filhos de Manuel e Lurdes não são pastores. E na vizinha aldeia de Montesinho, na primeira vez que lá estive, nos anos 1980 (lembras-te, Manel?), havia rebanhos e algumas crianças. Nos anos 1990, ainda havia ovelhas e já rareavam as crianças.
Agora estão ambas em vias de extinção. SOS Lameiros!
Passamos junto ao pinhal do Alto de Montesinho, que não é o ponto mais alto desta serra, avistando as copas dos castanheiros e a íngreme lousa nos telhados das casas da aldeia que dá o nome a isto tudo, desenhando naquela encosta uma presença humana tão serena. Será essa a palavra que busco: esta serra de serranias é um espectáculo de serenidade, “traz montes” de calma.
Na barragem da Serra Serrada, despeço-me do Nelson, que envia um drone fotográfico atrás de mim por umas centenas de metros. O pequeno objecto robótico deve ter moldado o meu olhar, pois logo julgo ver, numa pedra redonda gigante de granito, um disco voador. Já sozinho, chego ao minúsculo altar da Nossa Senhora dos Viajantes, para o mapa, ou Senhora do Bom Caminho, na voz do povo.
Preciso de ambas, por isso prometo lá voltar no Outono, quando este reino é ainda mais maravilhoso, se esta viagem das sete montanhas chegar ao seu último cais. Acampado na Lama Grande, rodeado de vacas profanas, adormeço questionando-me: será que tal promessa ofende a minha alma ateia em corpo agnóstico?
Na manhã seguinte, ao ritmo do Sol ainda crescente, sigo até “junto das amarras com Espanha”, tal como recomendara Sérgio no café de França.
Aquilo que alguns classificam como marcos de fronteira, eles chamam de amarras: territórios atracados um no outro, a mesma jangada de urze. Por isso é que o neologismo pirenaico afrontera se aplica tanto a lugares assim.
Quase sem darmos por ela, estamos no alto da Malhada Grande. A subida acaba aqui, entre a urze e a carqueja, nesta carapinha loura de restos de cereais, lembrando que há meio século os mais altos e mais remotos campos ainda eram cultivados e segados, “fabricados”, como se dizia nesse tempo da economia do pão. A sul, a serra da Nogueira, em primeiro plano; ao fundo só pode ser a Estrela. No azimute ocidental alcançarei o Larouco, nosso próximo cume? Ajudava-me um mapa de vistas mais largas. Mas, sob os meus pés, delicio-me com as fraldas da galega “serra da Gamoeda” a disputar à mesmíssima mas leonesa “sierra de la Gamoneda” cada topónimo na carta militar portuguesa, as línguas insinuando-se além das fronteiras outrora delimitadas, mais acolá para os lados de Moimenta, pela Fraga dos Três Reinos, onde Portugal, Galiza e Leão davam o seu beijo medieval. O primeiro município galego chama-se A Mezquita. Nas montanhas, a geopoética derrota quase sempre a geopolítica.
Amadas montanhas.
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